Contos de um mundo meu — 1
Histórias esparsas como gotas que iniciam chuva...
As Aves de Valbal
A névoa cobria dois terços da altura das árvores, começando do chão. E apenas de longe é que se podia ver o que a névoa não cobria: os picos de poucos galhos e de poucas folhas também. De longe lembravam moitas ralas e suspensas.
Mas os aztanos já haviam se acostumado com o fato e não se davam ao trabalho de se distanciarem da cidade apenas para vê-los. Na verdade, os aztanos nunca deixavam a névoa; a não ser que fosse definitivo. Além do mais, o que haveriam de encontrar naqueles picos que nunca davam frutos e nenhuma novidade, senão folhas secas e que pareciam jorrar perenemente como uma cachoeira? A resposta era sempre "nada".
Certo dia (saiba, portanto, que dia e noite nas Terras Nevoeiras eram difíceis de ser separados), um garoto saiu correndo por entre a neblina atrás de um cachorro magrelo que ali aparecera e quando deu por si estava já afastado da cidade. Seu desespero aumentou quando de repente não via mais o cão. Estava agora sozinho. E, apesar de naquele ponto o sol se fazer presente, e para qualquer outro a luz ser sempre apaziguadora e confortante, para os aztanos, na verdade, a claridade era atordoante e desnorteadora. O garoto, então, agora além de sozinho estava perdido também, e não mexia um músculo, parado sobre os pés.
Soprava um vento morno e muito calmo naquele lugar. Tudo estava tão sereno que por um instante até mesmo o garoto parecia estar. Mas, claro, não era verdade. Com os olhos fechados e o coraçãozinho batendo às pressas, só ele mesmo sabia o que se passava consigo. Era assustador. E a sensação parecia não ter fim. Contudo, nada que não pudesse piorar.
E foi nesse instante que um som indecifrável invadiu seus ouvidos e o fez estremecer de medo. O som não vinha de tão longe e parecia, na verdade, que caminhava em sua direção; ou melhor, corria. O garoto abriu uma pequena fresta em dos olhos mas o espaço e a nitidez foram suficientes para enxergar apenas um vulto de baixa estatura; um que andava sobre quatro patas. Imaginou logo que fosse o cachorro voltando agora para se desculpar, mas o som que ouvira e ainda ouvia se aproximando não era latidos ou qualquer outro ruído de cão. Tentou pensar qualquer coisa mas nada lhe vinha. Por fim o garoto abriu completamente o olho direito e mirou o bicho banhado pelo clarão do sol.
Mas a essa altura já era tarde. O animal pulou sobre o garoto e o derrubou no chão com violência. Para se defender o menino levou o braço em frente ao rosto. E defendeu a feroz mordida que lhe vinha mesmo ao pescoço. Mas o braço sofreu, como sofreu! E o sangue começou a escorrer por entre a mordida. "Saia, saia!", o garoto gritava, sentindo tamanha dor.
O peso do animal era outra coisa incalculável. O garoto empurrava, empurrava, tentava rolar, mas nada adiantava. O bicho cada vez mais parecia afundá-lo no chão. E as garras, ó, as garras!, cravadas em suas costelas tornavam as coisas tão dolorosas quanto possíveis. "Saia, saia! Socorro!", seus gritos eram muito mais altos.
De repente, o animal rejeitou aquele bracinho magrelo e abriu uma nova bocarra de incontáveis dentes. Nesse ponto a fatalidade era mais real que aqueles dois ali no chão, sujos de terra. O garoto simplesmente fechou os olhos. E o animal desceu a nova mordida em direção à finalização. Mas antes que pudesse cerrar os dentes contra o pescoço do menino, algo o atingiu em sua lateral e fora tão rápido e violento que num instante já não sobrepujava sua presa; fora jogado longe, e rolou como uma pedra. O garoto, então, levantou a cabeça até onde pôde mas não viu ninguém por perto; apenas o animal, que agora vendo quase nítido, era um lobo (lobos não eram comuns ali), mas continuava caído. Pensou logo: minha chance. Levantou-se sem muito jeito e força, sem apoio em nada, pressionando apenas a ferida do seu braço, e mirou um rumo na névoa. Infelizmente, dera as costas ao animal.
E ele não perdoou. Jogando terra para trás, avançou tão rápido que o som das passadas chegou só depois. Seu olhar era sanguinário. O lobo babava de raiva. E a uma distância considerável, então, pulou com toda a sua fúria. E atingiria em cheio o garoto se não fosse o mesmo baque misterioso de antes lhe pegando outra vez de surpresa. As garras do lobo chegaram a encostar nas costas do menino, mas fora tão superficial que ao envés de cortar, fez cócegas; mas não era tempo de risos.
O menino se virou rapidamente mas já estava entre a névoa. Então, o que viu no chão, mais afastado, debaixo do sol, foi a imagem turva de um lobo moribundo, gemendo dolorosamente. Como a visão não era limpa, e nem queria aparecer novamente além da névoa, não pôde precisar, mas jurou ter visto um rasgo monstruoso nas costelas do animal. O vermelho do sangue e o acinzentado da neblina formavam uma cor opaca a sua vista.
A Terra Nevoeira, naquele tempo, era desprovida de qualquer defesa física ao redor da cidade; claro, sabemos que a névoa era, até certo ponto, uma espécie de escudo e refúgio, porque nenhum animal ousava atravessa-la, contudo, fato é que o ataque do lobo deixou os aztanos bem abalados. "Estamos acuados, aqui dentro", diziam uns. "E se formos atacados? Que será de nós?", questionavam outros. Mas somente depois, muito tempo depois é que foi erguido o Muro Cinza, feito de pedras vindas de longe.
Mas, e o garoto? O tempo passou e o garoto nunca soube o que, ou quem, lhe ajudara naquele momento infeliz. Dia e noite ele voltava no lugar do desespero, claro, apenas por lembranças, e tentava enxergar novos vultos que no dia ele deixou passar despercebido mas que sabia, de alguma forma, ter visto. Nunca conseguia. Na verdade, não tinha o que conseguir. De tudo o que se lembrava era tudo o que havia visto. E isso o chateava.
Acontece que, como o menino não sabia, e nem ninguém também, nos picos inertes e sem qualquer novidade das árvores de dois terços cobertos havia, agora, algo novo. E o descobriram quando cascas de grandes ovos começaram a cair das árvores. Um grupo de aztanos, então, foi escolhido a dedo para a perigosa missão de se afastarem da névoa e avistarem as moitas suspensas. Mas tiveram bastante cuidado, claro, andando devagar e com jeito. E quando enfim se distanciaram o bastante, e se acharam seguros, a missão foi bem sucedida e nos picos das árvores o grupo viu enormes aves empoleiradas. "São águias? São enormes!", disse um. E o garoto, que fizera questão de acompanhar o grupo, soube na hora que foram elas que o ajudaram contra o lobo. "Elas, sim, foram elas, eu sei", disse ele agitado. O grupo entendeu logo, e, de certo modo, agitou-se com ele.
"Qual o seu nome, garoto?", o líder do grupo perguntou. "Meu nome é Valbal, senhor, Valbal", no garoto não cabia mais contentamento. O líder então se aproximou do menino e cochichou a ele, num volume que todos ouviram: "Que tal serem suas essas aves? Só não diga a ninguém". O menino se alegrou ainda mais. E todos riram.