A Ilha do Amor - parte 2
Escalou mais uma vez as pedras e iniciou uma descida pela trilha misteriosa. Já no início, algo lhe chamou a atenção. Os abetos que a margeavam deixavam muito pouco espaço entre si, o que dificultava a visão além deles. Os galhos, incomumente enfolhados, desciam até quase tocarem o solo, formando um cortinado verde intermitente. O chão úmido, afofado por suas pisadelas, exibia pétalas lilases de um brilho ofuscante. André parou e se voltou assustado, ao pressentir que era seguido. Nada viu, porém. Continuou a caminhar. Foi chamado, desta vez, pelo nome. O sangue gelou-lhe nas veias. Na sua lateral, surgido entre as folhagens, viu o rosto de Beatriz, muito mais jovem, a lhe sorrir. Mas, um fato o impediu de chegar até ele. Ao dar o primeiro passo naquela direção, André não sentiu o solo. Este se abrira sob seus pés, projetando-o para baixo, em vertiginosa queda. Uma chuva de pétalas inundou o local. Um redemoinho verde e lilás surgiu e desapareceu, deixando tudo envolto num brilho inédito e sedutor.
Caía, assim, para o infinito. Interminável descida. Lânguido e sem sentido, seu corpo varreu a amplidão do vácuo e se fez leve, entregue e indiferente. E, como pena, caída de um precipício, andou ao léu, nas mãos do destino e, sem choques, sem dor e sem culpa, aterrissou. Dormiu horas até despertar de um sono reparador, mas vazio de lembranças. Doía-lhe um pouco a cabeça. Precisou de alguns instantes para perceber a realidade do local onde se encontrava. Na verdade, nada tinha de real para ele. Embotava-lhe totalmente a razão. Uma espécie de caverna imensa, no centro, um lago de água azul anil e várias escadas de mármore, de poucos degraus, conduziam a saídas diversas por portas que não paravam de abrir e fechar, exibindo por cada uma delas impressionante variedade de cores dissipadas em nevoeiros. Com a força do vento que invadia o local, a bruma penetrava, trazendo para o ambiente um conjun to de cores deslumbrantes e afogueadas. Tons de rosa, violeta, púrpura e laranja bailavam de alto abaixo em suas respectivas entradas, tornando difícil a distinção entre o interior e o exterior. Por toda extensão da caverna viam-se gaiolas dependuradas por grossos cordões de ouro. Gaiolas de prata, de 1 metro de altura, cujo interior abrigava, pasmem, crianças. Crianças que deviam ter, quando muito, dez anos de idade. A maioria, loira. Podiam-se contar dezenas delas pairando a cerca de cinco metros do solo graminoso e muitas sobre o azul do lago. As fisionomias crispadas denotavam o terror de uma morte repentina.
O mais estranho, o mais enigmático fenômeno, desconcertava e aniquilava o que restava de sua lucidez. Todas, sem exceção, apresentavam o mesmo rosto, a mesma fisionomia. Ou seja, todas eram Beatriz e Beatriz estava em todas elas. Depois de olhar tudo aquilo, reuniu forças para se sentar onde havia caído. Um jato multicor, de verde predominante, entrou por uma das portas enquanto se abria para a chegada de uma menina. Estava nua, em início de puberdade. Tinha sobre os seios recém formados círculos pontilhados em tinta vermelha de um lado e amarela do outro. Nas mãos trazia um arco e na outra um punhado de flechas. Aproximou-se de André, olhou-o demoradamente e bateu duas palmas. Outra igual a ela, porém mais jovem, surgiu do mesmo local, entregou à primeira uma cuia contendo um líquido escuro e retirou-se.
– Tome isto e em seguida poderá conhecer mamãe.
– Onde estou? Quem são vocês? – Tentou se levantar, mas sentiu grande tontura e caiu sentado novamente.
– Este é o elixir da ilha. Ao tomá-lo, irá se sentir melhor – ela falou, abaixando-se na frente dele e estendendo-lhe novamente o recipiente. André pegou a bebida e de um só gesto, virou-a na garganta como que saciando uma terrível sede. Atirou no chão a vasilha e levantou-se, desta vez, reanimado. Da porta, ela já o esperava. Fez um sinal para que a seguisse e saiu.
O cenário onde agora se encontravam era qualquer coisa incomum, de beleza ofuscante. André precisou esfregar os olhos para acostumar-se àquela luz. O brilho vinha de todos os lados. Como num quadro de tonalidades quentes, os detalhes impressionavam. O chão era um tapete de folhagem multicor, recém caída das árvores que se entrelaçavam, formando um só conjunto. Nenúfares brancos surgiam de todos os lados, saídos de galhos entrecrucruzados. Um mundo verde os envolvia. A ramaria alaranjada confundia-se com outros galhos ornados de rubras pétalas em fase de mutação. O sol coava-se entre os poucos espaços existentes, mas sua luz forte e insistente predominava com magia e altivez toda aquela paisagem que, assim iluminada, irradiava paz e quietude. Era quente a temperatura. Nas copas de algumas árvores revoluteavam andorinhas.
Caminharam por este cenário até que chegaram às margens de um pequeno lago. Por cima deste, uma ponte de madeira, arqueada por grossas e possantes cordas, conduziu-os a outra margem. As águas cristalinas que os viam passar refletiam naquele trecho todo brilho e intensidade do sol. O azul da água silente e afogueada reproduzia com nitidez a imagem de André e da criança. Luzes brancas enfeitavam as margens e peixes coloridos bailavam harmoniosamente. Um perfume agridoce pervagou no ar. Ao roçagar o chão margeante de ervas, a brisa já insinuante, emprestava ao cenário toda sua frescura.
Já do outro lado, a paisagem anterior ressurgiu, desta vez, bem mais densa e esverdeada, apresentando o aspecto de uma verdadeira floresta. Ouviu-se, ao longe, o delicioso som de um pica-pau construindo seu ninho. Duas araras, assustadas pela aproximação deles, alçaram um vôo repentino, batendo fortemente as asas e desapareceram no horizonte da mata. Atravessaram um trecho de terreno e penetraram em uma clareira. André assustou-se com um pequeno esquilo que passou a sua frente para logo desaparecer dentro de uns arbustos de cedro. Chamou-lhe agora a atenção, no outro extremo do terreno, uma choupana. Tinha o formato arredondado, com uma pequena entrada. Era construída em madeira, mais precisamente, de possantes troncos dispostos simetricamente. Enormes toras guarneciam a cobertura que era reforçada por fibras de palmeiras e cordas de envira em toda a sua extensão.
O rio continuava ali o seu trajeto, tendo alargado as suas margens, tornando-se mais caudaloso e veloz. Mais uma vez surpreendeu André a grande quantidade de meninas que navegavam em seu curso remando em compridas canoas azuladas. Sem ligarem ao espanto e admiração do moço, elas surgiam perfiladas, trajando minúsculas tangas amarelas. Tinham o tronco nu e as cabeças ornadas por belas tiaras multicores. Os cabelos longos chegavam ao meio das costas. Eram todas loiras como Beatriz e possuíam exatamente a mesma fisionomia. Só que, no lugar do sorriso e da alegria tão comuns a ela, exibiam uma tristeza e uma contagiante angústia. As canoas não paravam de descer e cada vez mais velozes. Surgidas de uma curva, elas passavam por ele e desapareciam mais adiante. Súbito, uma voz chegou aos ouvidos de André.