O Atelier
O Atelier
Noite de junho. Todos já foram embora e a mãe, na cozinha, guarda o que sobrou do bolo e dos docinhos, enquanto o pai ajuda com os restos de comida e de bebida e junta os pratos. O aniversariante na sala, ajoelhado no tapete, abre os últimos presentes. A cada embrulho rasgado, tenta conter a expectativa por um determinado presente que ainda não veio nos últimos pacotes que abriu. Tinha certeza que era esse. Faltavam só dois pacotes e nada ainda. Mais um rasgo e o vislumbre do conteúdo. Era um carrinho de controle remoto. Mais um. Rasgou mais um pouco o pacote e retirou o restante do papel. Segurando com as duas mãos e com o rosto sério, fitou por instantes o presente, para em seguida atirá-lo à pilha dos que já havia aberto, sem nem mesmo abrir a caixa. Apanhou o penúltimo. Quando ia começar a rasgar o papel, ouviu a voz suave da mãe: “Vamos Caio, a festa acabou filho. Hora de irmos para sua cama”.
- Ah mãe! Só falta esse! Reclamou baixo, rasgando um pedaço do papel de presente. Um quebra-cabeças. O terceiro. Suspirou olhando para o último presente ainda não aberto. Caio era um menino tímido, e até por isso falava mais baixo que os outros garotos da sua idade. Mesmo em casa, quando se juntava com os colegas de escola ou os primos, quase não se ouvia sua voz. A dos outros garotos era um berro atrás do outro. Caio, ao contrário, mal falava.
Apesar dos seus doze anos – completos exatamente naquela noite – e da quantidade enorme de presentes que havia ganhado nesse e ao longo dos anos em que fizera aniversários, Caio – desde, obviamente, que começou a se entender por “gente” – sente uma coisa estranha. Um vazio. Já tentou diversas vezes falar com a mãe sobre isso, pois era com ela que conversava a maior parte do tempo, já que o pai chegava tarde da noite em casa. Sempre sem sucesso. Certa vez, quando começou a entabular uma conversa com a mãe e o assunto surgira, o resultado fora uma ida ao médico e depois algumas várias idas ao consultório de uma psicóloga. Aquilo se tornara um verdadeiro suplício e ele prometera a si mesmo que não falaria mais nada sobre isso com ninguém. Mas o vazio persistia.
Há tempos, num desses dias de chuva, lembrou-se, enquanto fazia os deveres da escola, que houve uma ocasião em que sentira algo diferente. Foi quando ganhara um estojo de lápis de cor de seu padrinho – tinha seis ou sete anos – um presente que segundo ele era “para você usar na escola”. Na manhã seguinte as paredes do corredor e da sala amanheceram decoradas com belíssimos desenhos coloridos de borboletas, unicórnios, pássaros, árvores e outras criaturas e arabescos indefiníveis. Dos desenhos, não se lembra muito bem. Mas o castigo – que durara mais de mês – e a dor de ver seus desenhos sendo apagados pela água e o sabão da esponja, ficaram na memória.
Levantou-se ao chamado da mãe, então, sem insistir muito – afinal o presente poderia não vir mesmo – e foi para seu quarto. Os outros, pensou, abriria na manhã seguinte. Já na cama, o cansaço e as emoções da festa venceram a batalha. Dormiu ainda ansioso, pensando nos embrulhos ainda não abertos, naquilo que aguardava, na festa, nos presentes ganhos, no bolo, no guaraná, na brincadeira dos primos, na festa, no bolo, nos presentes, na mãe, no bolo, no presente, na festa. E foi aí que todas essas coisas começaram a passar pela cabeça como modelos num desfile. Elas começaram a ganhar formas e contornos mais vivos e a passar com mais velocidade e mais e mais repetidas. Começou a ficar tonto com tantas coisas passando ao mesmo tempo. Pareciam surgir do nada e vir em sua direção, como se quisessem acertá-lo. Foi quando soltou um grito: “Pare!” E elas pararam. “Saiam daqui! Eu quero dormir!” bradou, ouvindo a própria voz ecoando num eco vazio. E todas aquelas coisas – embrulhos gigantes, pedaços de bolos titânicos, cenas de festas em megatelões – saíram voando dali, onde quer que fosse aquele “ali”. Foi quando ele viu um embrulho. Tinha a forma do presente que ele esperava e flutuava no ar. Caio tentou apanhá-lo, indo em sua direção, mas o embrulho saiu voando, seguindo uma espécie de trilha, um caminho. Era um caminho colorido, feito de giz de cera, que ele seguiu, só para ir atrás do embrulho voador. Já caminhava pela trilha, quando viu ao longe uma pequena casa. Parecia que já havia estado ali. Não tinha certeza. Sentiu-se completamente atraído. Pôs-se a caminho e quando deu o primeiro passo estava à porta. Nem precisou andar. “Que estranho...” pensou enquanto batia à porta do lugar. A porta abriu sozinha e Caio entrou no que parecia um salão imenso, desproporcional até por conta das dimensões da casa por fora, mas o salão parecia vazio.
- Olá! Alguém!
- Aqui não tem ninguém garoto – respondeu a voz atrás de Caio.
- Hum? Quem...? E virou-se para ver de quem era a voz. Deu de cara com um quadro na parede. Era uma cena dessas antigas, medievais. Era o retrato de uma batalha com cavaleiros e suas armaduras e só um restava de pé.
- Quem está aí? Repetiu ansioso pela resposta.
- Eu, garoto. Não está vendo? Caio chegou mais perto do quadro e viu o cavaleiro ajeitar a espada na bainha e cruzar os braços.
- Nossa! Você fala!
- Claro que eu falo. Aliás, eu só falo porque você quer.
- Hein?! Como assim? Quem disse que eu queria que você falasse?
- Ô garoto! Preste atenção! Você me desenhou! Por isso eu falo, ando luto, tudo isso aqui nesse quadro, sacou?
- Ô seu cavaleiro! Primeiro eu tenho nome. Eu me chamo Caio. Segundo, como eu posso ter desenhado o senhor se eu nem tenho sequer um lápis? E muito menos sei desenhar?
- Êta menino distraído! Olhe ao seu redor! E veja as maravilhas que você é capaz de criar!
E então Caio virou-se. O salão, antes vazio, agora se enchia de gravuras de todos os tipos. Surgiam, ora penduradas nas paredes do imenso espaço, ora flutuando no ar, vindas de todas as direções. Tinha até as borboletas e os unicórnios coloridos que ele havia feito nas paredes de casa, aos sete anos. E ele via tudo aquilo com deslumbre e emoção. Seu coração pulsava e pulava cada vez mais rápido. Era isso. O vazio tinha sido preenchido. Caio olhava o desfile de cores e formas com um enlevo cada vez maior. Vibrava e sorria a cada nova gravura que passava. Foi então que o cavaleiro falou:
- Até breve! Logo estarei com você. E num aceno a imagem do quadro desvaneceu no ar. Desapareceu e junto com ela todas as outras se dissolveram, fundindo-se em outra. Era um rosto. Sua mãe, olhos semiabertos, cabelos desgrenhados e bochechas amassadas pelo travesseiro. Ele rapidamente abriu os olhos, balbuciando algo. De um salto pôs-se de pé na cama assustando até mesmo a mãe, que estava acostumada com as estripulias do filho.
- Nossa! Tudo isso é vontade de brincar com os presentes?
- Hum? Presentes? Ah! Os presentes! – E lembrou-se da festa de aniversário e dos pacotes que havia aberto na noite anterior. “Mãe eu preciso falar com você”. O tom ficara sério repentinamente, tirando a mãe de sua sonolência matinal.
- Fale filho. A mamãe está aqui para ouvir. Era assim que ela sempre começava a ouvir o filho – foi assim que começou aquela conversa em que Caio fora parar na psicóloga – mas Caio quebrando a sua promessa, não deu importância e continuou:
- Mãe, eu quero aprender a desenhar.
- Ah! É isso? Tá bom filho, na segunda a gente dá uma passadinha na escola de desenho que tem aqui no perto de casa. Aí, a mamãe vê isso para você ok?
- Segunda não, mãe. Tem que ser hoje.
- Mas Caio, hoje é domingo filho. Não tem ninguém lá.
- Tem sim mãe. Precisa ser hoje.
- Mas Caio...
- Mãe, por favor, eu quero hoje...
Caio nunca tinha sido tão insistente, tão firme e tão decidido. A mãe ficara até meio preocupada. Mas, não custava nada levar o menino até a tal escola de desenho. Havia um atelier de artes há dois quarteirões de sua casa e ela tinha mesmo que sair. Passaria lá com Caio, provaria sua tese de que o tal atelier estaria fechado e voltariam para casa.
A dois passos do lugar, e com receio que o menino estivesse certo, já foi logo explicando:
- Viu filho? Não disse que estava fechado? E foi dizer isso, o portão da casa onde estava instalado o atelier abriu-se. O dono - e também instrutor do lugar - sai em seguida.
- Bom dia. O rapaz sorriu e já ia trancar o portão quando Caio se manifestou.
- Moço, eu quero aprender a desenhar!
- É mesmo? - O rapaz parou de fechar a escola e virou-se pra mãe de Caio – Querem entrar para conhecer o espaço?
- Não se incomode. Eu vi que está de saída. Eu trago ele na segunda para darmos uma olhada e conhecer seu atelier.
- Ah! Mãe! Viu? Eu não falei que estava aberto hoje? Vamos entrar? A mãe do menino já começava a ficar sem graça. Nunca tinha visto Caio tão entusiasmado com algo.
- Isso! Venham conhecer. Na verdade eu tinha vindo apanhar uns materiais, mas faço questão de que conheçam o espaço.
- Está bem então. Vamos Caio? E os olhos do menino brilharam como nunca, enquanto acenava com a cabeça.
O atelier tinha sido instalado em uma casa residencial. Os cômodos, que antes abrigaram a cozinha e a sala, haviam sido convertidos em salas de aula e recepção do lugar. Pranchetas, desenhos inacabados, quadros emoldurados ou sem nenhum tipo de acabamento estavam espalhados pelas paredes. Muitos livros com gravuras e revistas sobre arte ficavam em uma prateleira num nicho sob a escada – a casa era um sobrado e o andar de cima tinha sido reservado para outras salas de aula e área de recreação.
À medida que conheciam o lugar, Caio se calava, observando tudo e absorvendo cada detalhe, cada cor, cada cheiro de tinta e cada figura espalhada pelo lugar. Mal podia acreditar. Era a casa do seu sonho. Não tinha palavras. A mãe até estranhou. Tanto entusiasmo e depois nenhuma palavra. Até o professor fez um comentário:
- E então Caio? O que achou? Você não estava tão ansioso para conhecer aqui?
Caio acenou com a cabeça e não respondeu nada. Olhava fixamente para um quadro que havia na parede do escritório da recepção: Era um quadro, pintado com giz de cera sobre papel, do tamanho de uma folha de papel comum. A figura nele era de um cavaleiro medieval, empunhando uma espada, rodeado por alguns outros ao chão, que pareciam ser inimigos eliminados em batalha. O professor percebeu o olhar de Caio para o quadro e sorriu explicando:
- Parece que você gostou do meu quadro não? Eu fiz esse aí quando tinha exatamente a sua idade. Sua mãe me disse que você fez aniversário ontem. Doze anos certo? E Caio acenou com a cabeça de novo.
Foi então que Caio virou-se para a mãe, com olhar grave. “Mãe eu quero aprender a desenhar”
A mãe e o professor acertaram que viriam na segunda-feira seguinte para mais informações, matrícula, material e outras coisas relativas ao curso. Caio que acompanhava todo o diálogo, mal podia acreditar no que ouvia e via. Finalmente sua mãe lhe fizera algo que ele pedira e nem precisara insistir muito. Sentia algo indescritível. Despediram-se do atencioso professor e rumaram de volta para casa. Caio então se lembrou que não tinha aberto ainda um último embrulho da festa anterior e correu para o quarto para apanhar o pacote e destrinchar o papel. Mal tinha rasgado uma nesga do papel já tinha adivinhado o conteúdo: Um estojo de pintura, completo, talvez dado pelo mesmo padrinho de alguns anos atrás. Mal continha a emoção. Saiu gritando pela casa – algo que parecia anunciar um alarme de incêndio ou alguma catástrofe iminente - alertando até o cachorro que cochilava no sofá da sala.
- Mãe! Olha o que eu ganhei! Mãe! Mãe! Caio estava desesperado de alegria. Disparou até a cozinha para mostrar à mãe o presente recém-aberto.
- Nossa, Caio! Que ótimo! Já vai poder usar em suas aulas de desenho!
E comemoraram de novo, pelo resto do dia, o aniversário de Caio. O menino parecia outro. A mãe e o pai mal podiam acreditar. Nunca o tinham visto tão feliz.
Caio chegava à aula de desenho sempre antes. Às vezes até uma hora inteira. Ficava observando os alunos mais avançados, terminando desenhos da aula anterior, lendo as revistas e livros sobre arte. Mas hoje ele estava mais concentrado que o normal. Queria terminar logo e faltava muito pouco. Trabalhava em uma gravura que era quase do seu tamanho. O trabalho estava primoroso. O professor mal acreditava no progresso e na dedicação do jovem artista. Faltavam apenas uns detalhes. O professor, que concentrava sua atenção nos outros alunos, não viu quando o menino assinava a obra, piscando o olho para o cavaleiro medieval, que empunhava uma espada e estava rodeado por alguns outros cavaleiros que estavam ao chão e pareciam inimigos. A gravura era uma réplica em tamanho maior de uma gravura que vira em sua primeira visita. E o professor teve a impressão de ver o cavaleiro ajeitando a espada na bainha.