Manicure do Além
- Vamos, estou te esperando.
- Calma! Eu não vou sair sem cortar as unhas primeiro. Não suporto homens de unhas compridas, acho horroroso.
- Não temos tempo para essas futilidades agora.
- Calma benzinho, eu corto as unhas e já vamos.
- Benzinho? Acho que você não está entendendo o que está acontecendo.
- Ahnnn? Quem é você? Pensei que fosse a minha esposa. Onde ela foi?
- Eu sou o Pedro.
- Pedro? Que Pedro? O que está fazendo aqui em casa?
- Realmente você está em casa Alfredo, ou melhor, de agora em diante na nossa casa.
- Cadê a minha esposa?
- Olha ela ali. Por sinal a sua família toda está aí. Olha quantos amigos também. Você é realmente muito querido.
- É, o pessoal está me esperando para uma festa.
- Nós vamos ter que deixar o pessoal aí, pois vamos participar de uma outra festa.
- A minha esposa já estava achando ruim de eu querer cortar as unhas antes de sair, imagina então se eu for a uma outra festa? Daí que o bicho pega.
Por sinal o que está fazendo aquele sujeitinho deitadão bem no meio da sala.
- Aquele é você Alfredo.
- Eu???
- É, você.
- Mas deitadão no meio da turma toda? Não é o que estou pensando, é!? Eu morri?
- Sim, agora você acertou em cheio.
- Ah, isso não pode ser verdade.
Caramba, como pode? Sou eu mesmo!
- É que você ainda está meio quente, não desapegou plenamente desse mundão e por isso está confuso. É assim mesmo, esquenta não!
- Pera aí Pedrão! Eu estava para sair de casa e pedi para minha esposa me dar um tempinho para eu cortar as unhas, agora você vem com essa historinha de me trazer para cá de unhas compridas? Mas não vou ficar mesmo. Por acaso você tem um “trim” aí?
- Calma Alfredo, isso é uma bobagem. Aqui ninguém vai reparar nisso. Pode ficar tranquilo.
- Você fala isso porque não está na minha pele. Nunca gostei de ficar com as unhas grandes, e agora você quer que eu fique assim para toda eternidade? Ahhh tenha dó né!
De jeito nenhum, com as unhas compridas assim eu não fico nem com você e nem com ninguém.
- O pessoal colocou você no caixão muito rápido. Tinham que ter esperado um pouco mais.
- É, vim muito cedo mesmo para o meu gosto. Se arrumar o cortador tudo bem, caso contrário nada feito.
- Alfredo como ainda está tão apegado ao terreno, nós não temos isso por aqui e além do mais acho que você é muito exagerado, pois a suas unhas nem estão tão compridas assim.
- Pedro eu sempre fui assim, um pouquinho que as unhas ficassem compridas já me incomodavam. O que eu estou apegado mesmo é a questão dessas unhas que estão horrorosas. Você não está tendo consideração com os meus sentimentos, cara.
- Novamente vou dizer Alfredo. Aqui isso não é importante.
- Nananinanão, pode ir tratando de liberar o meu retorno. Eu corto rapidinho e daí sim volto de boa. Você pode até ficar esperando do lado.
- O problema Alfredo é que eu não tenho autorização para deixar ninguém voltar.
Alfredo nunca alguém recusou de entrar no céu.
Olha que faz milhares de anos que estou aqui na portaria e é a primeira vez que vejo isso.
O pessoal quer fazer qualquer barganha para entrar e você, querendo sair.
Essa situação é totalmente inusitada.
Não querer entrar no céu por causa das unhas? Eu nem sei como lidar com essa situação. Sinceramente Alfredo!
- Pedro o meu negócio não tem nada de pessoal, estou de boa com você, a questão é estética mesmo, entende? Além do mais, será rapidinho, pois são só as unhas das mãos.
- Caramba Alfredo você está me deixando numa “saia” justa hein!
Uma coisa é certa Alfredo, voltar para você cortar as unhas não será possível messsssmo. Se faço isso, corro o risco do Pai me passar um sabão. Podemos fazer um acordo.
- Já está melhorando Pedro.
- É o seguinte então:
Está vendo aquele sujeito de calça branca e cinto preto lá no canto da sala do seu velório?
- Sim, aquele é o Zezinho, amigão do peito, figuraça mesmo!
- Parece que tem algo em comum com você Alfredo.
- Sim, o Zezinho tem mesmo. Ele é outro que não suporta unhas compridas.
- Estou percebendo mesmo, pois até no seu velório ele passa o tempo todo aparando as unhas. Vamos pedir a ajuda dele.
- O Zezinho é dos meus, tenho certeza que com ele o problema já está resolvido.
- Vocês eram grandes amigos, não eram?
- Éramos não, somos. Carne e unha mesmo. Entendeu o link?
- Está bem, está bem..., isso facilitará bastante para o nosso lado.
Nós vamos combinar o seguinte:
Eu irei permitir que você entre em sintonia com os pensamentos do Zezinho e se comunique com ele, pedindo para que ele corte as suas unhas.
Problema resolvido, você fica livre para desencarnar de vez e me deixa sossegado. O que acha da ideia?
- Eu acho difícil, visto que o Zezinho não chega perto de defunto nem a pau.
- Vamos tentar Alfredo.
- E como será aberto o microfone?
- O canal já está liberado. Já pode se entender com ele.
- Vamos lá:
“Zezinho...!!! Ôôô Zezinho, sou eu o Alfredo cara!
O Zezinho estava lá no fundão da sala, entregue de corpo e alma as suas unhas e em alguns momentos pensava no Alfredo, ficava sentido, se emocionava, vinham-lhe as lágrimas, mas voltava-se para as unhas. Num determinado instante não conseguia mais parar de pensar no Alfredo e foi ficando muito impaciente.
Passou a andar de um lado para o outro da sala, mas sempre distante do caixão.
Desde que chegou ainda não tinha conseguido obter coragem para olhar para o seu amigo Alfredo, quanto mais se aproximar do corpo.
Foi justamente no exato instante que arriscou uma olhadinha de canto de olho e que visualizou o rosto do amigo moribundo que o bicho pegou. Sentiu com muita nitidez em seus pensamentos que Alfredo lhe dizia algo: “Zezinho...!!! Ôôô Zezinho, sou eu o Alfredo cara! ”.
Zezinho quase desmontou das pernas. Por mais que tentasse pensar em outra coisa ele só pensava nessa frase. Era algo tão forte na sua cabeça que parecia que o Alfredo estava cochichando no seu ouvido.
Zezinho ficava cada vez mais atordoado.
Do outro lado da materialidade das coisas, em desespero pela inercia de Zezinho, Alfredo arrisca um:
- “Cacete Zezinho, sou eu cara, tá me estranhando é? ”
Zezinho conhecia bem tanto a voz quanto a bronca que lhe vinham nos pensamentos. Dessa vez o impacto foi tão forte que Zezinho até respondeu em voz alta:
- Alfredo, onde você está cara?
Aquele romper do fúnebre silêncio foi o que bastou para todo mundo ficar olhando para o Zezinho, que ficou ainda mais intimidado.
- Fala baixo Zezinho, a conversa é só entre nós dois.
Zezinho sentia-se pirado com aquelas imaginações. Parecia tudo tão vivo e real em seus pensamentos que acabou se soltando para a prosa.
Meteu a mão na frente da boca e começou:
- Alfredo, afinal de contas você está vivo ou morto? Eu estou sonhando, delirando ou isso tudo é uma pegadinha?
- Não cara, eu estou morto mesmo, e estou precisando de um favor seu, coisa de irmão de fé.
- Mas o que você quer comigo? Justamente comigo que você sabe o quanto tenho um mal-estar danado só de olhar para um morto.
- Não cara, fica frio.
- Alfredo, de frio basta você, eu hein...
- Escuta só, corte as unhas das minhas mãos. Não estou aguentando me ver aí de mãozinhas postas com essas unhas horríveis de grandes. Está me dando uma aflição que você não tem noção. E pensar que vou ficar por toda a eternidade assim ainda piora muito mais a situação.
- Mas eu não suporto nem ver morto Alfredo, quanto mais pegar nas suas mãos geladas como já devem estar a essa altura.
- Que nada Zezinho, as minhas mãos ainda devem estar quentes. E tem outra, a hora que você ver o tamanho das minhas unhas você vai até implorar para corta-las.
- Acho que não vou conseguir te ajudar Alfredo.
- Vai sim cara! Chega lá perto, avalia a situação e depois você vai se animar nesse propósito.
Zezinho foi rodeando o caixão, se aproximando aos poucos, até que ficou bem ao lado do corpo.
- E daí cara, o que achou da situação?
- Você estava louco? Como deixou a suas unhas desse jeito!
- Foi o Pedrão que pisou na bola e me levou antes da hora
- Mas como eu vou fazer isso?
Nesse bate papo todo do além com o aquém e vice-versa, Alfredo e Zezinho não conseguiam pensar numa situação que pudesse ser viável, para a realização de tal tarefa.
Pedro vendo o desespero dos dois resolveu dar o seu pitaco.
- Basta o Zezinho chegar pertinho do caixão, pegar nas mãos do Alfredo com uma mão e com a outra vai cortando disfarçadamente as unhas.
- Não desse jeito não, retruca Zezinho. O pessoal vai pensar que sou gay ou louco.
- Que preconceito horroroso Zezinho, rebate Alfredo, o que vale é ajudar um amigo.
- Não, assim não vai dar não. Primeiro: que não gosto de cortar as unhas de qualquer jeito, segundo: que é um serviço demorado, terceiro: como vou explicar para a sua família, minha atitude de ficar ali por mais ou menos uns trinta minutos de mãos dadas com você?
- Está bem Zezinho! O que acha então de você puxar uma oração. Você fala para o pessoal que uma vez nós combinamos que quem morresse primeiro, puxaria uma oração para alma do outro. Daí você pega nas minhas mãos e vai repetindo sem parar até dar um jeito de caprichar nos dez dedos. Nem precisa se preocupar com as cutículas.
- Alfredo o momento não é para gracinha, ainda mais que você não está numa condição de grandes exigências assim. Mas está bem! Eu vou topar fazer dessa forma que sugeriu, mas só porque gosto muito mesmo de você.
- Agradeço muito amigão, fico devendo mais essa para você. Fica tranquilo que vai dar tudo certo.
Conforme o combinado, num dado momento Zezinho vencendo a sua sofrida timidez e seu trauma por defuntos, foi se aproximando e falou para todos a sua necessidade de rezar para o Alfredo e assim foi feito.
Zezinho já tinha escondido o seu pequeno cortador de unhas e quando em desespero pegou nas mãos do Alfredo já se pôs a rezar e a mandar brasa no corte das unhas.
Enquanto ia executando a sua missão o coração batia acelerado e o suor brotava-lhe da testa.
Assim foi uma por uma até concluir todos os dedos.
Agradeceu aos céus, fez uns movimentos de mãos encomendando o corpo para que descansasse em paz e finalizou com um cansativo amém. Depois colocou-se novamente lá no cantão da sala crente que estava livre de vez de sua missão, respirou aliviado, quando novamente Alfredo entrou em comunicação.
- E aí Zezinho, fácil né? Você fez um belo trabalho, acho até que nem eu faria melhor.
- Pô Alfredo, até morto você me pede cada coisa. Ainda bem que já acabou.
- Não é bem assim Zezinho, falta você terminar o servicinho.
- Como assim? Eu terminei e com o maior capricho.
- Bem..., é o seguinte cara, falta fazer as dos pés.
- Dos pééés??? Aí é demais da conta.
- Vai dar um pouquinho mais de trabalho, mas você consegue Zezinho.
- Negativo, mas não vou messsmo.
- Brincadeirinha Zezinho. Foi só para aumentar a adrenalina. Não sei nem como te agradecer. Você foi dez mesmo.
Zezinho deu um sorriso, trocaram mais alguns pensamentos de carinho, relembraram rapidamente alguns momentos divertidos que tiveram juntos ao longo da vida e se despediram emocionados.
Nesse instante lá do outro lado do mundo das matérias, chega um jovem anjo com os bofes de fora. Entrega um bilhetinho para Pedro, pede a benção e vai embora.
Alfredo olha para Pedro e o vê pálido como uma nuvem em dia de sol.
- O que houve Pedro? Levou sabão por causa de mim?
- Não, desta vez não. O Pai ficou tão emocionado com a demonstração de carinho do Zezinho por você que resolveu reconsiderar algumas coisas. Como você ainda não esfriou de vez e é uma pessoa muito querida também, ele quer dar-lhe uma nova chance de voltar para os seus amigos do lado de lá. Caso você queira é claro? Se quiser voltar, irá esquecer tudo que se passou.
- Pô Pedrão, pode dar como aceita a oferta e agradece o Pai por mim. Achei muito maneira a ideia. Até prometo que da próxima vez já venho com as unhas aparadas para não te colocar em saia justa.
Alfredo abriu os olhos e sem entender o que estava acontecendo, ficou espantadíssimo ao se ver ali no caixão e ver o pessoal, incluindo o próprio Zezinho, dando no pé gritando de pavor.
Um médico foi chamado e deu uma explicação técnica. Disse que na realidade Alfredo não havia morrido e que apenas havia mergulhado em um estado de sono profundo. Sugeriu-lhe repouso e uma rotina de trabalho mais amena.
Dias depois Zezinho foi visita-lo.
Deram muita risada juntos lembrando-se do ocorrido, porem num determinado ponto da conversa Zezinho disse-lhe:
- Pô Alfredo que loucura aquele seu pedido hein cara!
- Como assim Zezinho? Pedido? Que negócio é esse de pedido?
Mesmo muito constrangido, com medo de não ser compreendido e ser tachado de louco, Zezinho contou tudo ao amigo.
Alfredo rachando de dar risada lhe disse:
- Zezinho você é um louco cara, um insano. Acho que está trabalhando muito também, igualzinho eu. Já está variando.
Hoje Alfredo e Zezinho são compadres e a amizade daqueles dois continua sempre muito forte e divertida, a ponto de se necessário, cortarem as unhas um do outro, depois de mortos.