Crônicas de Arunia - O Reino Antigo Cap 5
A visão era estarrecedora.
Havia sangue por todos os lados e corpos espalhados pelo chão. A tenda maior estava caída, a outra, manchada de sangue e lama. O cheiro de decomposição já começava a impregnar o ar em volta do acampamento destruído.
Depois de segundos em transe por aquela visão, Aida passou rapidamente os olhos pelos corpos que conseguia enxergar.
Infelizmente, ela reconhecia todos eles.
Cal, o grande e forte homem-armário dereniano, de olhos verdes encantadores, que agora, sem brilho nenhum, estavam abertos para fitar o vazio da morte, foi o primeiro corpo do qual Aida se aproximou cautelosamente. Em sua fronte, uma flecha de besta metálica tinha sido cravada brutalmente até atingir sua massa cinzenta e mandá-lo direto para o além mundo. Ele provavelmente nem tivera a chance de perceber o que o havia acertado.
“Um tiro certeiro entre os olhos. Quem quer que tenha feito isso, certamente não era amador.”, pensou a ladra, enquanto abaixava-se ao lado daquele homem com quem havia compartilhado tantas lutas amigáveis e tantos conselhos, para fechar respeitosamente seus belos olhos verdes.
Só então ela se permitiu chorar.
Sky já estava em lágrimas antes mesmo de Aida dar aquele primeiro passo. Seus joelhos fraquejaram e ela caiu por terra, ganindo como um animal ferido. O cheiro de sangue impregnava suas narinas e ela sentia seu estômago vazio revirar e doer terrivelmente. Era a dor da perda de um lar, de pessoas que lhe eram importantes. Uma dor que atacava o ventre, porque a morte era uma ofensa ao símbolo da vida. Obrigou-se a olhar de novo para o campo, para os corpos indistintos, mesmo que sua visão estivesse turvada de lágrimas.
1, 2, 3, 4... Faltava alguém.
— Pai! — Sky arranjou forças sobrenaturais para se levantar e correr em direção à tenda pequena, que ainda estava de pé no que restara do acampamento.
— Sky, espere...! — tentou Tillie, mas a garota já havia desaparecido para dentro da lona verde-musgo manchada de sangue.
Zander moveu-se até o outro corpo mais próximo, que lhe intrigou por ter reconhecido nele um aspecto familiar. Apesar da desfiguração do rosto e da mutilação da carne, provocada provavelmente por alguma substância inflamável que houvesse sido atirada sobre aquele corpo, Zander o reconheceu como um elfo lunar. E aquilo o chocou profundamente.
— Que sua alma encontre o caminho para o Erani, irmão...
Tillie também estava abalada. Seu coração pequeno e forte apertou no peito e lágrimas de puro instinto materno marejaram seus olhos. Ela havia encontrado os corpos das duas crianças gêmeas, perfurados por milhões de agulhas.
— Isso foi brutal. — murmurou — Eles não tiveram nem uma chance de lutar de volta.
Um grito de profunda dor, maculado pela tristeza e pelo desespero ecoou no acampamento fazendo todos olharem diretamente na direção de onde havia vindo.
Aida se levantou e fez sinal para que nenhum dos outros dois a seguisse. Caminhou cuidadosamente até a tenda onde Sky havia entrado. De um jeito ou de outro, já fazia ideia do que ia encontrar lá dentro.
A morena estava prostrada no chão, encurvada sobre o corpo de um homem que parecia adormecido profundamente, gelado e branco como a estátua que as duas haviam encontrado no templo antigo ainda aquela manhã. Encolhida como uma criança que acaba de perder tudo no mundo, ela chorava em cima do cadáver, esperando, no íntimo, que suas lágrimas lhe trouxessem de volta a vida.
— Por quê...? — falou, entre soluços — Quem faria uma coisa dessas?
— Sky, eu sinto muito...
— Por favor, Aida, eu... Eu quero ficar sozinha por um instante. Eu não consigo...! — e sua voz calou-se para o mundo, pois a única coisa que ela podia proferir eram gemidos engasgados.
Aida não podia entender o que era aquela dor. Sempre fora sozinha no mundo, a não ser por sua avó e por quem eventualmente lhe acolhia nos lugares onde se escondeu a vida inteira. Essas eram pessoas que ela considerava, mas não conhecia profundamente, muito menos criara algum laço familial. E sua avó não havia sido morta na sua frente. Até onde sabia, ou preferia pensar, ela ainda podia estar viva.
Portanto, ver Sky naquela situação lhe feria a alma. Sua amiga era sua única família e agora, por ironia do destino, ela era também a única família de sua amiga.
Queria lhe dizer aquilo. Dizer a Sky que ela estava ali e que nunca a abandonaria, nunca a deixaria sozinha no mundo, nunca permitiria que nada lhe acontecesse, mas não conseguiu. Não conseguiu porque a situação era terrível demais para lhe permitir dizer qualquer coisa, então preferiu deixar Sky a sós um momento. Ela precisava daquele tempo para si.
Antes de sair da tenda, no entanto, seus olhos cruzaram instintivamente como o amparador de madeira no canto. Aquele que guardava os poucos pertences que as duas possuíam. E ele estava vazio.
— Sky, os diários da sua mãe... Eles sumiram! — falou, sentindo-se culpada por perturbar o luto da amiga, mas preocupada demais para ficar calada.
A morena levou alguns segundos para assimilar aquela informação.
— O quê...? Por que alguém iria querer os diários da minha mãe?
Aida não era exatamente a pessoa mais inteligente do mundo, mas sabia que só existia um único motivo plausível. E ele era um tanto perturbador.
— Mais alguém está procurando pelo Reino Antigo...
— Isso não faz sentido, Aida. Ninguém sabia desses livros a não ser a gente.
Mas Sky não tinha muita certeza do que dizia.
+++
Aida saiu sozinha da tenda depois de algum tempo. Tinha ajudado a amiga a limpar o corpo de Tahn e a enrolá-lo em alguns pedaços de pano, mas prometeu deixá-la velar o pai sozinha.
Tillie e Zander haviam acendido a fogueira depois de concluírem uma inspeção perimetral ao redor do acampamento e confirmarem que não havia mais nenhum sinal dos invasores. A ladra se aproximou e sentiu o cheiro de carne assando nas chamas.
— Espero que não se importe, — disse Tillie — encontrei um coelho na sua bolsa e decidi prepara-lo para nós.
— Fez muito bem. — o estômago de Aida concordou com um ronco.
— Ah, eu e Zander removemos os corpos do acampamento, por ora. Não sei o que vocês pretendem fazer... Desculpe, não estou familiarizada com os rituais humanos.
— Tudo bem, eu acho que Sky deveria decidir o que fazer com eles... Eu não sou exatamente, você sabe... Humana. Pelo menos, não totalmente.
Fez-se um minuto desconfortável de silêncio. Aida gostava de carne mal passada e foi pegar um pedaço do coelho. Tillie e Zander trocavam olhares constantemente, como se quisessem falar alguma coisa e não soubessem como.
— O que há? — percebeu a ladra.
Mais um olhar foi trocado e Zander finalmente tomou a inciativa.
— Aida, eu acho que sei quem pode estar por trás de tudo isso.
A garota quase engasgou com o pedaço da carne.
— Quem?
— Não tenho certeza, mas... Pelo modo como atacaram... Parece trabalho dos Águias.
— Águias? — estranhou a garota — Suponho que não sejam os animais, não é?
— Eles são a gangue por trás da aniquilação da Ordem dos Cavaleiros, por volta da época em que o velho rei morreu e o príncipe herdeiro foi coroado em seu lugar. — explicou o elfo — Eles fizeram a Ordem se dividir em dois grupos, com falsas notícias anônimas de que um negócio ilegal estava para ser realizado naquela noite. Uma vez que os grupos divididos saíram atrás da pista, os Águias atacaram a base.
“Pegar os grupos depois foi fácil. Ninguém esperava que uma gangue investisse contra a Ordem assim tão abertamente, mas eles não são uma gangue qualquer. São assassinos organizados e treinados, não apenas mercenários brutos. Atacam meticulosamente. Arqueiros exímios, é o que eles são.”
Aida esperou entediada a pequena explicação histórica terminar, mas aquela última informação lhe chamou a atenção. “Arqueiros exímios”...? É, isso explicava o tiro certeiro entre os olhos, as agulhas arremessáveis e a bomba inflamável.
— Os Águias não eram grande coisa antes do ataque, — continuou Zander — mas agora que a Ordem se foi, eles praticamente mandam no território de Northcliff.
— Como você sabe tudo isso? Tá, tudo bem que vocês dois são pesquisadores e tal... Mas eu tenho a impressão de que esses são detalhes que não vão parar nos livros de história tão facilmente.
A anã riu.
— Zander e eu tivemos uma pequena aventura contra esses caras há pouco mais de um ano... Não foi muito bonito.
Os olhos verdes da ladra brilharam de curiosidade. Aquela, sim, parecia uma história divertida. Mas, antes, ela ainda precisava saber de algumas coisas.
— Esses Águias... eles estão procurando pelo Reino Antigo também?
— Por que pergunta? — indagou a anã.
— Eles levaram os diários da mãe de Sky, que continham informações sobre o mapa.
Tillie e Zander arregalaram os olhos unanimemente.
— Aida, essa gente é perigosa e má! — exclamou Tillie — Eles não podem ter esse tipo de informação. Não podem, jamais, encontrar as partes do mapa! Quem sabe o que eles poderiam fazer depois?
— Mas, por que eles o estariam procurando? O que o Reino poderia oferecer a uma gangue de assassinos?
— Necromancia... — murmurou Zander, ao que Aida lhe encarou como se ele acabasse de falar numa língua totalmente estranha. O elfo revirou os olhos. — Arte de evocação dos mortos ou dos espíritos, controle dos restos mortais que pertenceram a outras pessoas. Refere-se à feitiçaria ou magia negra.
A ladra abriu a boca, num gesto de compreensão. Tillie continuou:
— Há mais ou menos um ano, os Águias procuraram a mim e a Zander para o que eles chamaram de “pesquisa” sobre magia.
— A “pesquisa” acabou se mostrando totalmente sobre a Necromancia. E, você sabe, quando alguém faz muitas perguntas sobre magia negra... É melhor tomar cuidado. — Zander pareceu devanear por um milésimo de segundo, mas, num relapso, voltou à conversa — Bem, quando nós entendemos qual era o real objetivo deles...
— Nós fugimos. — completou a anã.
Os dois abriram um sorriso macabro, como se aquilo tudo tivesse sido perigosamente divertido. Aida riu.
— Suponho que eles não ficaram muito contentes com a fuga de vocês.
¬— Na verdade, eles nem se importaram com a gente. Mas a Tillie aqui pegou todos os recursos de pesquisa que eles tinham e toda a informação já coletada e fugiu com tudo. E com isso eles se importaram.
— Eu não podia deixar aquela gente ter esse tipo de poder em mãos! — explicou-se Tillie.
— É, e você nem se importou com o fato de que ficou com todos os recursos da pesquisa para a sua alquimia, não é? — ironizou o rapaz.
— Você está virando um elfo tagarela de uma forma muito inconveniente, Zander!
Os três riram, apreciando aquele momento de descontração depois de um dia tão tenso. Mas a conversa logo voltou aos eixos de seriedade. Aida retomou:
— Então, o que nós podemos fazer? Como pegamos os diários de volta?
— Precisamos de um bom plano. Esses caras não são simples rufiões.
Mas um momento de silêncio se fez, enquanto os três imergiam em pensamentos.
—... A gente tem que conseguir os diários de volta.
E os três quase caíram para trás de susto quando escutaram aquela voz feminina e chorosa. Sky estava ali há algum tempo, escondida na escuridão, mas acompanhando a conversa de longe. Ela se aproximou da fogueira e sentou ao lado de Tillie. Passado o susto, Aida notou que os olhos azuis da amiga ainda estavam marejados e ela estava abatida.
— Sky...
— Não podemos deixar esses monstros usarem uma coisa que minha mãe possuía!
Todos ficaram em silêncio. A força que Sky trazia nos olhos obstinados, apesar de tudo o que lhe acontecera, deixou a todos sem palavras.
Aida sorriu orgulhosa.
— Eu prometo, minha amiga, não vamos deixar!
+++
Sob o céu estrelado, em um pequeno acampamento de Davenside, quatro indivíduos, unidos inesperadamente por laços de amizade que começavam a tomar forma, rodeavam uma pequena fogueira, dividindo pedaços de coelho assado e tramando planos em prol de um objetivo em comum. Quando Aida pensava naquilo, sentia-se participando de algo realmente importante, como se sua vida finalmente tivesse um propósito. Será que os outros sentiam a mesma emoção que ela, a mesma adrenalina cega que fluía em seu sangue pela simples menção do perigo e da aventura? E será que também sentiam aquele medo amargo que pulsava junto com a emoção?
Não era hora de pensar naquilo. Aida concentrou-se no plano. Eles precisavam de um plano. Pense, Aida. Pense no plano.
— Tillie, Zander, vocês devem saber alguma fraqueza deles. — falou ela, com certa esperança.
— Os Águias não têm exatamente uma fraqueza... Mas há algo que podemos usar a nosso favor. — respondeu Zander, ao que Tillie continuou:
— A liderança da gangue passou recentemente para um homem chamado Diego. Nós o conhecemos. Ele é esperto e impiedoso, no entanto, se gaba demais e é um cara exibido.
— Sim, e os membros mais antigos da gangue não confiam muito nele, portanto, Diego deve estar procurando por novos recrutas. — o elfo cravou seus olhos cinzentos penetrantes na garota de cabelos prateados — Essa podia ser a sua chave de entrada para a porta da frente.
— Minha chave? — estranhou Aida — Por que não nossa chave?
— Bem, os caras já conhecem a mim e ao Zander, então... — Tillie deu de ombros — A não ser que você queira que Sky vá no seu lugar.
— Eu posso ir! — exclamou a garota, como uma criança com vontade de socar alguém.
— Não. — Aida falou firmemente — Você acabaria esfaqueando esse tal de Diego na primeira oportunidade que tivesse. Eu vou.
A ladra deu mais uma dentada no jantar, lambeu a gordura da ponta dos dedos e limpou as mãos na calça de couro marrom.
— Então o plano é: ser recrutada, entrar no covil inimigo, pegar os diários e cair fora. Beleza, eu consigo. Só tem um pequeno problema...
Aida passou a mão limpa pelos longos e belos cabelos cor de prata, realçados sob o brilho da lua e das chamas da fogueira.
Aquele pequeno gesto fez Zander prender a respiração por um segundo.
— Vocês sabem, essa coisa de ser meio-nobre, ou sei lá... — continuou a garota — O cabelo prateado vai atrair atenção desnecessária. Ainda mais numa cidade como Northcliff.
— Hum... Não é uma cidade muito grande, tem razão... Mas deve ter alguma alfaiataria por lá. Pode comprar uma capa antes de tudo. — resolveu Tillie — Ou... roubar uma.
A ladra assentiu, com um sorrisinho brotando no canto dos lábios.
— Bem, então está tudo resolvido. Quando partimos?
— Deixem-me ter uma última noite aqui... — falou Sky, tristemente. — De todo jeito, nós estamos cansados e já sabemos para onde esses assassinos vão, então não faz muito sentido segui-los imediatamente.
A morena esforçou-se para colocar um sorriso nos lábios tristes.
— Obrigada, Tillie e Zander, por me darem uma nova esperança. E a você também, Aida, por enfrentar tudo isso por mim. Eu sei que não deve ser agradável para vocês ficar aqui esta noite, mas eu gostaria de dar a tudo um último adeus. Se estiverem de acordo, partiremos amanhã.
Todos assentiram em silêncio, sem coragem de proferir uma só palavra diante da dor que ainda viam naqueles olhos azuis.
Felizmente Aida não via somente a dor. Via também uma extrema força, que não demoraria muito a ser descoberta pela própria dona daqueles olhos.