O menino e a poesia
[Certo dia perguntaram àquele garoto porque escrever a vida.
Não basta vivê-la?
Era como se descrever os sentimentos fosse uma espécie de crime.]
__ Vá brincar com seus amigos.
__ Já vou, pai, só to terminand..
__ Vá agora. Pare de escrever essas idiotices.
Então ele passou a escrever à noite, usando as luzes da lua. Por vezes dormia os dias nas aulas de matemática.
Um dia encontraram seus escritos. Levaram-no à diretoria.
__ O que significa isso?
__ São apenas palavras. Minhas palavras.
__ Palavras erradas, sem sentido. Você está deturpando a língua portuguesa.
__ São minhas palavras. Apenas minhas palavras. E eu as amo.
__ Cale-se.
Ao folhear um poema chamado saudade, ela o indagou rispidamente:
__ O que significa isso? saudade é sentir falta de alguém ou de algo. Apenas isso.
__ Mas são tantas as maneiras de sentir saudade.
__ Você não pode querer saber mais que o dicionário. Eu te proíbo de escrever. Só existe uma saudade e pronto.
__ Não. Existem muitas saudades.
__ Cale-se.
Não aguentando de curiosidade, ela o indagou:
__ Defina-me saudade.
__ Saudade é uma maneira da alma dizer pro corpo que também sente fome.
__ Defina-me outra forma de saudade.
__ A saudade é triste, quando o corpo sente vontade de dizer pra alma que ela não é mais bem-vinda.
__ Defina-me a tua saudade.
__ Saudade, contrapeso do amor.
Ela estava quase se rendendo, mas...
__ Defina-me minha saudade.
__ Então defina-me o teu amor.
__ Não sou louca a ponto de descrever o amor.
__ Meus pêsames.
Irritadíssima ela esbravejou:
"Amanhã você só entra no colégio com seus pais."
No outro dia, a diretora mostrou os escritos ao pai do garoto, que pediu desculpas envergonhado:
"Onde já se viu, desrespeitando a língua portuguesa dessa forma. Esteja de castigo por uma semana. Sem canetas. Sem papel."
Foi então que o garoto teve a ideia de trocar doces e balas por canetas e papéis. Tudo no mais absoluto sigilo.
Todas as crianças da cidade o procuravam com canetas e folhas de papel.
Mas um dia acabaram-se os doces e as balas, e o garoto começou a trocar as canetas e as folhas por poemas. A epidemia se alastrou tão rapidamente como um raio de sol. Em poucos dias todas as crianças da cidade estavam lendo poesia; e começaram a escrever poemas; um atrás do outro, sem parar.
Não havia mais o que fazer. Todos se renderam. As escolas passaram a aceitar metáforas e sentimentalidades. Chorar não era mais motivo pra perder pontos nas notas.
Esse dia foi escolhido o dia mundial da poesia.
E aquele garoto nunca mais foi visto. Uns dizem que ele vive numa nuvem, outros que ele anda pelo mundo plantando poemas. E a velha diretora ainda hoje o procura desesperadamente. Talvez na esperança de que um dia ele a perdoe. Ela sente a cada dia uma saudade diferente, e todo ano, no dia mundial da poesia, faz a maior festa da escola; e sempre se lembra do garoto de brilho nos olhos e sorriso triste, que um dia ousou reinventar o mundo ao escrever o amor.
[E antes que me perguntem como o garoto conseguia tantos doces pra trocar por canetas e papéis, eu explico: é q ele era vizinho de uma velhinha linda que vendia doces. No dia que o dinheiro acabou, ela passou a aceitar sorrisos como pagamento, e o ensinou que "nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas"*]
Essa poesia cora de saudade.
Bruno Muniz
*trecho do poema "Saber viver", de Cora Coralina.