Uma Pausa No Marasmo
Uma vez cheguei à janela e espreitei o dia. O sol já me riscava com a sombra projetada da gelosia e havia calor a amolecer os arbustos da varanda. No mais, era tudo repetido. Fico aqui a amansar as febres e a fraqueza das pernas, a controlar o relógio. Mil tiquetaques para um pulinho mínimo do tempo que, só arrastado, vai marcando as horas. E tu não chegas. Muitas vezes fiquei ali deitado, a olhar as imperfeições do estuque, a contar os azulejos pintados à maneira barroca que compraste para por ali, sem adequação nenhuma, a despropósito. Dizias que, como trazia arco e flecha, o anjinho era o Cupido, o tal que atirava aos potenciais amantes para lhes acender a paixão. Muito gordo e azul se mostrava no desenho! Pesado, balofo e estrábico. Pensava na sua impossibilidade de voar com tão diminutas asas e, sem nunca dizer a ninguém, chamo-o, nas minhas conversas comigo mesmo, paradoxo. Nem voo nem olhos para a pontaria. A nós nunca acertou ou só acertou em ti a fazer fé no amor que dizes ter-me. Quanto a mim, perdido neste fim de mundo, desisti de me apaixonar e fiquei contigo. Tanto me dá. À noite fecho os olhos e tu renasces em corpo jovem e bonito. Sobras nos meus abraços, é certo, mas isso é, apenas, um pormenor sem importância. Para ti sempre fui um bom amante e eu, no escuro que exiges, só faço amor com a beleza. De dia somes no escritório da Fazenda e eu, no tractor, queimo a pele a abrir sulcos, a transportar as folhas do sisal. Vou e venho. Regresso, estafado, ao fim do dia. Na verdade, tenho corpo escravo mas o pensamento, longe deste cheiro e desta agonia, costuma andar por outros lados bem mais aprazíveis. Foi sempre assim até o paludismo me apanhar em força. Fiquei amarelo, magro, febril, suado e fraco. Tomo chá de raízes e quinino e as coisas já se vão compondo. Hoje não tenho febre e já me sinto bem melhor. Amanhã, tomo o caminho da cidade e vou alterar o ritmo. Dormirei de luz acesa com uma qualquer perfeição.