"Transcender como um anjo"

Noite chegando marota, espreitando as estrelas luzentes e

acolhendo aos casais de namorados e a lua, tão altiva, ironizava uma

noite romântica, embora na impassibilidade do vento, que em todo

momento anunciava uma tempestade desejosa.

Nas ruas a impaciência despia as pessoas em pavorosas

correrias, nem a velocidade do metrô parecia compadecer-se da

lentidão anunciada pela noite marota a espreitar estrelas luzentes,

enfim: era uma noite incomum.

Desci pela ladeira, que de tão inclinada empurrava-me com

toda volúpia até não mais sentir-me, desvaneci pela fluidez do meu

próprio trânsito.

Cheguei ao ápice do meu algoz, cansada e ofegante

examinei os transeuntes que atentos observavam os meus passos.

Eram rápidos os olhares a minha volta. Parece que todos percebiam a

minha aflição, eu escondia dentro de mim uma alucinada vontade de

gritar, mas sufoquei o meu grito.

Dobrei a esquina, era apenas mais uma esquina. Ouvi uma

canção ao fundo, voltei meu olhar para o passado, mas que passado?

O passado da ladeira ou o outro? Àquele que ficara perdido entre

montanhas e céus jamais pisados?

Continuei a caminhar, eu estava quase chegando ao galpão,

de repente ouvi chamar meu nome. Parei!

“É você, só você que na vida vai comigo agora, nós dois na

floresta e no salão... dada mão, deita no meu peito e me devora... na

vida só resta seguir.. um risco, um passo um gesto, rio afora...”

A música invadiu meus sentidos... e continuou como um rio

seguindo seu fluxo contínuo...”na vida só resta seguir...” meu nome

continuou sendo pronunciado, algumas vezes com imponência, outras

com leveza, por ordem ou por urgência, senti-me necessária.

Olhei novamente para o passado: ele havia desaparecido!

Diante de mim, um vasto caminho rodeado por rosas vermelhas,

brancas e rosas cor de rosa... Ah! Eu vi o paraíso bem na minha frente.

Pássaros voando, meninas correndo e o rio seguindo seu

curso apontando para vitalidade da minha vida. Tive medo de

continuar andando, receio maior era encontrar novamente as várias

formas do “passado”, o assustador pretérito, que lá atrás ficou!

Respirei um pouco mais de ar, enchendo os pulmões com

toda a carga de oxigênio e encarei a caminhada, “encarar” a

caminhada trouxe uma nova perspectiva, pois eu a via como um bicho

de sete cabeças, parecia monstruosa, mas não era.

Eu caminhei tranquilamente até chegar a uma casinha toda

feita de madeira, era simples e cheirava pão caseiro. Entrei sem pedir

licença, contrariando toda a educação que me foi dada, mas enfim

entrei. Lá estava sentado numa cadeira de balanço, um senhor; era

tão velhinho que sua barba branca imitava nuvens de algodão doce,

iguais àquelas que eu comia quando ia a uma festa junina do bairro.

Ele tinha os olhos ternos, uma cândida voz e um semblante

que o deixava parecido com Deus, mas era apenas parecido, pois

estava ali, bem na minha frente, então não era Deus!

Ele repetiu o meu nome duas vezes, baixinho..baixinho,

parecia querer dizer algo, e eu não entendi absolutamente nada.

Inclinei-me para frente, ajoelhei-me diante daquele humilde senhor e

coloquei minha cabeça em seu colo. Fui afagada, carinhosamente

ninada e adormecida por ele.

Quando acordei, misteriosamente eu estava deitada em uma

cama, forrada por um lençol rosa claro e com cheiro de lavanda. As

paredes do quarto eram de um azul tranqüilo, as janelas amarelas com

cortinas de renda branca e o chão de madeira era tudo tão real.

Eu estava nua por baixo da minha própria pele, que alias era

também de algodão, só que não era doce. Eu não andava, flutuava!

Eu não falava, cantava! Eu não olhava, refletia! Eu não chorava, fluía!

Eu não era humano, Anjo... Eu era um anjo.

* é assim que vejo a partida, é assim que imagino Deus, é assim que eu desejo transcender.

* é assim sempre quando preciso estar sozinha... e olhar para minha própria vida!