Melodias da Alma
“A vida é como uma música. Caminhamos por versos, atravessamos pontes, e admiramo-nos de refrãos inesquecíveis”.
“Outras, no entanto, acabam. Ou carregam notas dissonantes…”.
“Há outros mundos”, alguém me dizia, quando havia perguntado o que existia além dos céus. Quinze anos depois, não consegui mais me lembrar da aparência do emissor das palavras – embora elas perdurem em minha memória até hoje, como se pudessem ser lidas no firmamento a cada vez que o olhava….
1 - Melodias:
Em doces melodias, a voz do monge se difundia ao redor do santuário em orações. Eu, ajoelhado e cabisbaixo, permitia que a fé me acariciasse com seu júbilo, repetindo silenciosamente cada prece. Pouco a pouco, os benzedores foram deixando a câmara, mas o monge permaneceu. O círculo de velas iluminava o rosto de Baller, que se virou para mim.
- Há quinze anos você serve ao monastério. Há quinze anos, nós o achamos, pequenino e inocente, para compartilhar nossa fé desde cedo. E aqui você se encontra agora, um homem. Um homem… de Deus.
- Vocês têm e sempre terão minha eterna gratidão – eu disse, de joelhos – por tudo. Por me agraciarem com a fé de Deus e dos Anjos Divinos. Por partilharem seu pão, sua água, seu amor.
Baller se demorou admirando minha imagem por um tempo. Em seguida, disse:
- Levante-se.
Obedeci e me empertiguei, ansioso por saber o que me seria pedido.
- Tome cuidado com os Profetas Sem Voz. Eles querem sua vida, iludir sua alma e tomá-la para eles – ele continuou, seu rosto fissurado de cicatrizes se destacando à luz das velas – precisa ir embora amanhã.
2 - Suspiro:
Deixei escapar um suspiro de incredulidade, sem saber do que Baller estava falando.
O monge tocou uma pequena sineta.
- Precisamos dos benzedores. Faça uma pequena oração antes de partir, rapaz. O templo está quieto demais e isso me assusta. Pegue suas coisas e vá, rápido.
Eu consenti e me pus a abrir meu coração ao meu Deus. Minutos depois, os benzedores empurraram a porta atrás de mim e se aproximaram lentamente sob o silêncio de seus capuzes, sem interromper minhas preces.
Baller, no estrado, abriu seus olhos assustado. Eu, confuso, tratei de olhar ao redor e percebi a razão do espanto.
Olhos brancos e sem íris espreitavam de dentro dos capuzes; olhos famintos, ávidos e fantasmagóricos. Baller não esperava que ele fosse o primeiro a ser atacado; os demônios subiram no estrado e subjugaram a vida do meu pobre mestre.
3 - Silêncio:
As criaturas diante de mim tomaram a vida de Baller apenas encarando-o nos olhos e fechando sua traqueia. Viraram-se para mim. Não tinham boca, nem nariz; apenas olhos brancos e sem íris. Os Profetas Sem Voz me cercaram. Debati-me, mas não pude evitar a aproximação e conseguiram me segurar. Eu gritei coisas desconexas, mas quando um deles tapou minha boca com a mão, eu nada mais disse. Uni-me ao silêncio deles.
4 - Gemidos:
O silêncio foi quebrado por uma arfada de ar que mais se assemelhava a um gemido. Olhei ao redor e estava num lugar desconhecido. O ar impuro transitava para dentro e para fora dos meus pulmões, enquanto árvores sem vida me observavam com tristeza. Para completar o cenário da morte, mais Profetas Sem Voz formavam um círculo a minha volta. Algo em mim me fez levantar e erguer a voz.
5 - Urros:
Eu gritei até arranhar e ferir as cordas vocais, expelindo cada prece como uma maldição nos ouvidos alheios. Eles se contorceram ao passo que minha melodia cheia de ira se expandia aos céus. O solo infértil começava a dar sinais de brotamento, as árvores foram ficando mais eretas e num instante folhas começavam a crescer. Sou um guerreiro de Deus e darei o inferno a cada um deles!
6 - Sibilos:
Os Profetas Sem Voz se encontravam esparramados no chão, mas eu sabia que haveria mais deles. À medida que minha voz se propagava pelo ambiente e minguava, olhei para meus braços. Eles estavam mais curtos. Levantei-me, e senti meu corpo mais leve. Olhei para o chão, e ele estava mais próximo. Iniciei uma prece, e a voz que circulava no interior da minha cabeça era a voz de uma criança…
- O que fizeram comigo? – sibilei, numa voz infantil.
7 - Tibungo:
Caminhei com minhas perninhas de criança até uma pequena cachoeira de águas estranhamente esverdeadas. Ao lado dela, estava uma silhueta pequena e gorda, quase do meu tamanho.
- Não beba desta água – disse – ou vai deixar de respirar tão rápido quanto rejuvenesceu.
O garoto aparentava ser alguns anos mais velho do que eu, e era mais gordo também.
- Como chegou aqui? – perguntei.
- Estava no orfanato brincando com outros garotos, quando os burburinhos que ouvíamos lá fora começaram a diminuir aos poucos. O silêncio. O silêncio se aproximava. Os encapuzados entraram, e depois, não me lembro de mais nada.
Fiquei em silêncio. Ele continuou:
- Sonhei que estava na casa de uma mulher mais velha. Acho que não a conheço, mas deve ser minha mãe – suas palavras foram ficando mais lentas à medida que prosseguia – ela rezava comigo. Ao mesmo tempo, sentia que os encapuzados estavam ao meu redor. Fiquei com medo e continuei rezando.
- E aí? – perguntei.
Ele me encarou, com estranheza no olhar.
- E aí – continuou – eu sabia que eles tinham ido embora.
8 - Trinados:
Disse quem eu era e de onde vim. O outro garoto assentiu sem dizer muita coisa. Nós tínhamos sede, e aquele lugar estava morto.
- Me diga outra vez… o que aconteceu com o ambiente quando você gritou?
Eu, confuso, respondi:
- Não pensei em nada… quero dizer, apenas fiz. Eu comecei a rezar em voz alta, e acabei gritando. Por um momento pude ver as árvores criando vida e a cor voltando à natureza…
Nós dois ficamos pensativos, e pelo espanto no semblante um do outro, tive certeza de que tivemos a mesma ideia.
Ajoelhamos e fizemos a mesma oração, o tom de voz aumentando gradativamente. A grama ficava verde e viva; o silêncio dava lugar a modestos trinados de pássaros, e a água se purificava. O ambiente se iluminou e pude ver algo em seus olhos. Algo que eu conhecia…
- Eu me esqueci de perguntar… qual o seu nome?
Sem tirar os olhos do rio límpido e despoluído, o garoto falou:
- Baller… Junior.
9 - Ribombo:
Eu sabia que aquele momento chegaria. Os encapuzados marchavam em nossa direção, e não estavam sozinhos. Havia algo tão ou mais cruel no meio deles.
A multidão de silenciosos se aproximava liderados por um homem sem capuz. Como os outros, não possuía uma boca… nem ouvidos! Se iniciasse minhas preces, ele não ouviria. Aquele era o Profeta Sem Voz e Sem Ouvidos. Eu cantei uma melodia para atrasar a multidão, e depois transformei em brado, acompanhado por Baller Junior, nossas vozes rimbombando pelos quatro cantos do campo. Eles caíram sem vida enquanto o líder continuava sua marcha no meio do paraíso que se havia criado através dos cânticos meus e de Baller.
10 - Assobio:
O surdo continuava seu caminho à nossa direção, enquanto o terreno ganhava vida à nossa volta. O sol trespassou as brenhas de algumas árvores e tocou o rosto do Profeta, revelando, num segundo, o rosto de Baller.
- Papai! – exclamou Junior.
- Mestre – sussurrei, interrompendo a oração.
E então tudo ficou claro: os Profetas haviam roubado-lhe a alma para adquirir o dom de resistir às orações.
Olhei de esguelha para Baller Junior e em seguida corri até o Profeta. O garoto gritou. Aproximei-me do demônio e ele se curvou sobre meu corpo infantil, as mãos prestes a serem postas sobre mim. Eu encarei seus olhos sem vida, brancos, fundos, imensos, e disse:
- Não vai me ouvir. Mas vai me ver. Leia meus lábios.
Rezei. A mais forte e sincera das orações, que só o mentor Baller sabia. O monge que me acolheu e cuidou de mim como um filho. Aquele que afastou o próprio filho do mosteiro para protegê-lo dos encapuzados. O Profeta leu meus lábios, e não havia nada que ele podia fazer.
Junior veio até mim correndo, ao passo que o corpo do homem caía com um baque surdo no chão. Não estávamos mais em campos escuros, mas sim de volta ao pátio do mosteiro, brindado pelo assobio dos pássaros.
11 - Preces:
O corpo de Baller foi enterrado no jardim mais próximo do céu e rodeado de vida que se podia imaginar. Seu filho decidiu servir ao mosteiro desde então. Eu, no entanto, peregrinei para os campos mais áridos e cobertos pelas sombras da noite.
Porque ainda que eu ande pelo vale da morte, eu não temerei mal algum.
E as preces, ah, as preces… elas estariam sempre comigo.
FIM