Memórias de Um Rio
Fui um rio. Trago memória da nascente, húmida cavidade onde, como um vómito, a terra golfou o meu começo. Pouca água a abrir caminho entre pedras, ervas, choupos e arbustos de um verde diferente de que não sei o nome. Avançava com fragilidade natural mas com coragem. Quando cheguei à aldeia chamaram-me regato. Bebia-me o gado e muito de mim ficava nas hortas, regadas à vez, ou corria nos valados, alagava os campos e voltava ao leito como quem regressa a casa. Para trás ficavam os homens, os seus problemas, as rixas e amores. Nas pedras onde ainda algumas mulheres lavavam, sabia de tudo. A roupa era só o pretexto para a conversa. Bem antes de escorregar até à vila recebi um irmãozinho e tornei-me maior. Sentia os peixes e, por vezes, via-os a saltar. Pareciam prata à luz do sol. Uns quilómetros assim e novo encontro. Foi, desta vez, um abraço memorável. De repente, deixei de saber quem era eu, assim misturado com outro e toda a minha água se revolvia para caber onde a rocha, a ambos, nos acomodava. Foi uma emoção a queda, um medo terrível antes da aventura, o voo, o partir-me em espuma lá em baixo, as cócegas nas partes mais arejadas, o bulício de uma chegada nem eu percebia aonde. Muitos dos meus peixes que me tinham deixado pequenos ali tentavam o regresso para a desova na nascente e alguns conseguiam. Banhei lugarejos, aldeias e vilas, alarguei-me em praias fluviais, vi os folguedos nas margens e, a seguir, sonolento, cansado, espelho de céus sempre diferentes, cheguei ao mar. Sei que me perdi noutras águas, em mil outros destinos. Deixamos de saber quem somos sempre que nos dominam, sempre que temos de aceitar como bons valores estranhos. Aconteceu comigo quando, acolhido por tanto mar, tão poderoso e diferente me aninhei adormecido nos seus braços. Saber do que fui é memória que não vai perdurar. Começo a ter tiques de mar e sinto, agora, a minha voz mais grossa.