Os irmãos de Pinóquio
Depois que foi salvo das garras do malévolo dono de circo e voltou para casa, Pinóquio criou juízo, casou-se e foi criar sua família. Gepeto voltou a ficar solitário em sua oficina.
A Fada Azul o visitava com alguma regularidade. Tomavam café, chá com biscoitos, jogavam conversa fora. Quase sempre o assunto eram as aventuras de Pinóquio.
— Sabe, Gepeto – disse a Fada Azul –, Pinóquio era um menino desmiolado porque foi feito de pinho, madeira frágil. Se fosse feito de madeira de lei, quem sabe teria sido um menino diferente...
A idéia da Fada Azul deu assunto para muitas conversas, até o dia em que Gepeto perguntou:
— Se eu fizesse outro boneco, com madeira de lei, você daria vida a ele, para ver que tipo de menino seria?
— Claro, respondeu a Fada Azul. – Mas faça logo dois, com madeiras diferentes, e assim será possível compará-los.
Gepeto tinha na oficina alguns pedaços de cedro rosa e outros de pau-ferro. “Vão servir muito bem”, pensou. E assim fabricou um boneco de cedro, que batizou de Cedrico, e fez outro de pau-ferro, que batizou de Paulo. A Fada Azul cumpriu sua promessa e deu vida a ambos.
Cedrico e Paulo foram meninos normais, comportados, não mentiam (e por isso seus narizes não precisavam crescer), iam bem na escola e só davam alegrias para Gepeto. A teoria da Fada Azul estava certa: meninos feitos de madeira de lei não tinham propensões para as estrepolias e principalmente não falavam com estranhos na rua.
As diferenças apareceram quando Paulo e Cedrico cresceram. Paulo tinha um temperamento determinado, uma vontade de ferro. Quando terminou o Ensino Médio logo começou a trabalhar e cursar a Universidade ao mesmo tempo. Estudou Tecnologia da Informação e se tornou um profissional de sucesso. Com vinte e poucos anos já tinha sua própria empresa, casou-se com uma mulher linda, entrou para o Lions Club, passou a circular na alta sociedade, em pouco tempo comandava um conglomerado de empresas e para ele o céu era o limite.
Cedrico também era inteligente, fez faculdade, mas seu temperamento era o inverso. Em vez de escolher uma profissão que desse dinheiro e posição social, como Engenharia, Medicina, Tecnologia da Informação, foi logo escolhendo Filosofia, Belas Artes e essas coisas de comunista. Seus amigos eram músicos, boêmios, poetas, gente do teatro e assim por diante. Para sobreviver, trabalhava como garçom, ajudante de escritório, vendedor de loja, e continuava morando com Gepeto, sem perspectiva nenhuma de sucesso na vida. Seu temperamento era volúvel, embora afável como o perfume do cedro rosa.
Quando Paulo e Cedrico estavam por volta dos quarenta anos, Gepeto morreu. Foram ao enterro, e Pinóquio também foi. Os três bonecos de madeira feitos por Gepeto lá encontraram pela primeira vez em muitos anos. Terminadas as cerimônias fúnebres, reuniram-se na velha oficina e começaram a colocar os assuntos em dia. Pinóquio, Paulo e Cedrico descobriram nessa hora que quase nada tinham em comum. Cada qual tinha sua própria vida e vivia desligado dos irmãos.
Antes que todos fossem embora, Cedrico pediu para falarem sobre os bens que Gepeto havia deixado. A oficina tinha apenas algumas ferramentas velhas, uma bancada de madeira antiga e carcomida pelo uso, a pequena moradia ficava nos fundos, o valor de tudo isso era quase nada. Mas o terreno valia uma fortuna. A cidade havia crescido e o terreno agora localizava- se na área central, muito valorizada.
Pinóquio, que não gostava de se meter em coisas complicadas, foi logo sugerindo que a propriedade ficasse para Cedrico, o único dos três que não tinha onde morar, aliás, desde sempre morou ali mesmo. Paulo não gostou da idéia.
— Não posso concordar. Quero a minha parte, nem um centavo a mais nem a menos. Não tenho culpa se o Cedrico não tem competência para comprar a própria casa. Eu ganhei a minha fortuna trabalhando duro vinte horas por dia, durante vinte anos. Você, Pinóquio, devia ser um pouco mais realista também, porque não ganhou de graça a casa onde mora, e sustenta a sua mulher e filhos trabalhando como todo mundo. Cedrico não tem competência nem para arranjar uma esposa, não merece ficar com nada..
Pinóquio ficou surpreso e apenas comentou:
— Teu coração, Paulo, é duro como o pau-ferro.
Paulo parecia ter a resposta pronta, na ponta da língua.
— O teu é mole e sem valor, como o pinho. E o de Cedrico é como o cedro rosa: bonito e cheiroso, serve para fazer mesas e cadeiras, mas nunca para sustentar uma família, muito menos para erguer um império.
A vontade férrea de Paulo se impôs. A propriedade de Gepeto foi vendida e o dinheiro dividido em três partes iguais. Pinóquio usou sua parte da herança para ajudar os filhos a pagarem o colégio particular dos netos. Para Paulo, sua parte era uma gota no oceano da fortuna, e ele seguiu com sua vida gloriosa, convencido de ter feito a coisa certa, pois não é dando moleza que se ajuda as pessoas. Cedrico poderia ter comprado uma pequena casa em um bairro afastado, onde teria ao menos seu próprio teto, mas emprestou todo o dinheiro para um amigo que queria produzir um filme, o resultado foi um grande fracasso e o dinheiro sumiu.
— O filme não deu certo, mas o roteiro era bom – dizia Cedrico, divertindo-se com o acontecido.
Como termina essa história? Não sei, porque na realidade ainda não terminou. O final ainda não aconteceu. Espero que o valor de Cedrico seja reconhecido de alguma forma, pois ganhar dinheiro não é tudo que tem valor na vida. Os talentos artísticos dele talvez produzam bons frutos um dia.
Talvez a vida resolva dar uma lição a Paulo, pois sua dureza de coração não pode ser simplesmente perdoada. Digamos que aconteça uma desgraça, Paulo perca sua fortuna e seja abandonado pela mulher e filhos... talvez Cedrico acabe sendo seu único amigo na velhice.
A Fada Azul a tudo observa silenciosamente. Sem Gepeto para conversar, fica matutando enquanto toma chá. Depois de Pinóquio, mais uma vez sua experiência de dar vida a bonecos de madeira não foi bem pensada. Se Gepeto tivesse feito os bonecos de pau-ferro, mas com coração de cedro, quem sabe...