Tarde Cinza
Milton Pires
Tarde cinza em Porto Alegre. Quase escura eu diria. Saio para caminhar. Dobro a esquina da Terceira Perimetral e entro na Cristóvão Colombo. Passo pelo restaurante japonês lembrando de meu filho que ali gostava, ainda pequeno, de ser levado para ver o laguinho oriental que encanta o freguês que chega. Logo após, à esquerda, é uma casa cinza e completamente abandonada que me chama a atenção. Um enorme cão rotweiler aparece através do portão fechado e me olha em silêncio. Não late, não rosna nem mostra a mínima intenção de me fazer mal. Vira-se com calma depois de ter vindo até às grades...Afasta-se caminhando e some na grama alta que toma conta de tudo. Sigo descendo a rua no mais completo silêncio. Não passa um carro, não vejo uma pessoa. Começo a me lembrar dos lugares da cidade onde eu ou alguém da minha família já morou. Lembro da Rua Giordano Bruno e da Bento de Figueiredo, endereços em que estiveram meus pais quando sequer se conheciam e até do minúsculo apartamento na Felicíssimo de Azevedo onde eu mesmo morei quando solteiro. Sinto então, de repente, uma enorme vontade de rever esses apartamentos. Ocorre-me que se fosse rico poderia comprá-los para eventualmente fazer visitas. Dobro uma esquina e não encontro mais rua alguma. É numa estrada que eu caminho agora. Sinto a dor do excesso de peso nos joelhos e nas pernas mas me parece que a estrada me ajuda como se fosse, ela mesma, uma estrada rolante. Vejo, na linha do horizonte, uma casa que, sem dificuldade alguma, reconheço como sendo àquela em que morava quando era criança. Já não estou mais em Porto Alegre quando abro a porta principal. A casa está completamente vazia e, ainda assim, não há dúvida de que foi minha. É um espaço completamente sem móveis nem divisão de peças. Numa sala única deparo com um relógio de parede. Seus ponteiros movem-se no sentido contrário. Quando me viro para examinar melhor o ambiente tudo já tem cor, cheiro, tons...adquire uma aparência “real”. Eu escuto o barulho de água correndo numa pia e os soluços de uma mulher que chora. Ela lava a louça vestida de camisola. Não sei por que chora. Não pergunto. Não tenho tempo de perguntar pois sinto cheiro de lenha queimando, estalando numa lareira e escuto, baixinho, uma área de um quinteto de Brahms. A música vem de outra parte...de outra sala que não está ali mas que eu posso adivinhar depois de uma porta de vidro que vi surgir numa das paredes. Abro a porta e a música chega mais alto. Eu vejo, iluminados pela luz do fogo na lareira um homem de seus quarenta anos jogando xadrez com um menino. Sei que são pai e filho...Não consigo ver seus rostos. Eles falam mas eu não consigo distinguir as palavras. Passo por eles em silêncio. Abro outra porta e vejo a estrada outra vez. Sinto meu corpo pesado. A dor nas pernas é mais forte e agora percebo que estou novamente em Porto Alegre. Volto pelo mesmo caminho na Avenida Cristóvão Colombo. Novamente o cão me espera em frente a casa abandonada. Dessa vez o portão de entrada está aberto. O animal não sai. Sou eu quem sente, sem saber por que, uma grande vontade de entrar e seguir o cachorro. Ele me leva até os fundos da casa abandonada. Brincando no chão com uma pequena pazinha de plástico eu vejo uma criança. Não tem mais do que cinco anos. É um menino. Cava com vontade a terra fofa mas de repente o som muda. Vejo que ele parece ter encontrado alguma coisa. Quando me aproximo vejo que é contra o cimento que ele está tentando cavar. Uma espécie de pequena laje de concreto. Leio sem dificuldade que ali está escrito – Milton Pires (14 de novembro de 1970 – 22 de fevereiro de 2015). Quando me viro para conversar com a criança, ela já desapareceu. Nem o cão eu vejo mais. Tudo está quieto. Meu corpo está leve..Não sinto mais dor alguma.
À memória do Professor Fernando Lessa.