UMA HISTÓRIA FELINA*
João acordou com um gato na barriga. Era bonito o bichano: um angorá de bom porte, sedoso pelo amarelo e um miado estridente que não deixava João dormir.
Os primeiros dias foram difíceis. O gato circulava pela barriga de João, ia até as costas e voltava. Às vezes pulava, como se tentasse alcançar um lugar mais alto. Isso causava dores terríveis. Nem quando tivera pedra na vesícula o desconforto fora tão acentuado. Com o passar dos dias, acostumou-se.
O que mudou foi a rotina e a dieta de João. Não que o gato fizesse tanto volume. Era um bichano dos grandes, mas a barriga de João também era: bom de garfo, não dispensava uma cervejinha. Ainda assim, tinha que tomar cuidado para que ninguém notasse a presença do intruso em seu ventre. Os miados de bichano solitário, o ronronar satisfeito quando ganhava comida ou João acariciava a barriga avantajada. Para disfarçar, alegava problemas intestinais.
A questão da comida foi mais trabalhosa. O bicho era manhoso e não aceitava tudo que João punha goela abaixo. Quando insistia em comer o que o gato não apreciava, o bocado ficava entalado na garganta - as patas do bichano impedindo a passagem? - e era preciso cuspir tudo fora. Isso quando não lhe acontecia um forte acesso de vômito. A náusea não vinha no engulho natural dos humanos, mas com aquele soluço estranho e os tremores que afetam os felinos. Experimentou comer ração para gatos. O bicho adorou, mas ele não. Tinha que escovar os dentes e a língua várias vezes para tirar o gosto ruim.
João morava sozinho e tinha poucos amigos. Seu trabalho era num cubículo apertado de um órgão público, redigindo relatórios e planilhas. Isso facilitou em parte as coisas. Mas em algum momento do dia tinha que conviver com os colegas. Inventava os mais variados artifícios para que não percebessem a presença do gato.
Apesar dos percalços, acabou se afeiçoando. De certa forma, o bichano lhe fazia companhia.
Difícil era quando havia gatas no cio pela vizinhança. O bichano ficava ainda mais inquieto, miando alto e marcando território, deixando a barriga de João em polvorosa, um gosto horrível na boca. Nessas ocasiões, era preciso respirar pausadamente para que o gato não sentisse o cheiro das fêmeas ou despertar o asco das pessoas.
João nunca fora muito namorador, mas tinha um relacionamento fugaz com Eva, sua vizinha do apartamento de cima. Os dois jantavam e ocasionalmente dormiam juntos. Não era nada sério, mas gostavam da companhia um do outro.
A partir do gato, a relação tomou novos rumos. Brigavam toda vez que se encontravam e o jantar passou a ser uma série de discussões que sempre culminavam em agressão. João surpreendeu em si mesmo uma vontade de subjugar Eva. Quanto a ela, parecia ter medo e tentava evitar os encontros. A situação acabaria em tragédia. Até que, numa das raras conversas civilizadas que tiveram, Eva confessou seu segredo e a separação foi inevitável.
Eva tinha um rato dentro da barriga.
Durante o expediente, por várias vezes adormecia e acordava meio enrodilhado sobre a mesa de trabalho, numa posição estranha para um humano. Por causa disso, João recebeu várias advertências no trabalho e por fim lhe aconselharam a tirar uns dias de férias. Ele trancou-se no apartamento e só saía para comprar mantimentos. Especialmente ração para gatos, que agora achava apetitosa.
Comunicava-se por monossílabos e a sua voz parecia cada vez mais parecida com um miado. Seu corpo encolheu e os pelos de seu corpo cresceram e ficaram sedosos. Já não saía do apartamento e alimentava-se com o resto da ração que havia no pacote.
Durante a noite, gostava de sentar-se na janela, namorando a lua. E quando avistou uma bonita gata cinza num telhado próximo, João sentiu uma irrefreável atração.
Correu até a porta. Tinha encolhido tanto de tamanho que não mais alcançava o trinco. E mesmo que alcançasse, não saberia como usá-lo. Começou a arranhar a porta e miar, desesperado. O barulho atraiu os vizinhos, que vieram tocar a campainha, mas ele não podia abrir.
O síndico do prédio tinha uma cópia da chave de todos os apartamentos para uma eventual emergência. Quando a porta foi aberta, todos os vizinhos, os incomodados e os curiosos, viram um enorme gato amarelo sair em disparada. Desceu as escadas, pulou o muro e entrou em um matagal próximo ao condomínio. Só parou para cheirar uma bonita gata cinza que o aguardava. Juntos, os dois desapareceram entre as folhagens.
O que mais assustava no gato era sua enorme barriga, descomunal mesmo para um animal de bom porte.
*Conto publicado na coletânea UTOPIA: CONTOS FANTÁSTICOS, Editora Andross, 2014.