Meia Noite

A noite olhava do alto, com seus olhos de estrelas e seu rosto negro. Acompanhava a pequena Ahgni sem poder intervir ou protegê-la, mesmo desejando fazê-lo. As ruas eram perigosas àquela hora da noite e não era nada seguro para uma garotinha andar desacompanhada. Mas, ela nem mesmo havia percebido que corria tanto risco, na verdade, não se importava. Corria com descuido e sem saber seu destino. Estava descalça e o cimento encardido parecia feito de gelo, por causa do vento e do começo do inverno. Não havia nenhum carro nas ruas, nenhuma pessoa e nenhum barulho, o que era muito estranho. Normalmente, haveria algumas dúzias de arruaceiros, um monte de gente procurando algum tipo imoral de diversão e filas e mais filas de carros disputando espaço no asfalto.

Havia fugido pela janela e escalado o portão sem qualquer dificuldade. Não havia planejado nada, apenas fizera o que seu coração lhe pedira. Ela já havia corrido por quatro quarteirões, não olhava para trás e em momento algum precisou pensar para onde estava indo. O branco de sua camisola parecia fluorescente, como se houvesse centenas de vaga-lumes voando ao seu redor. Parecia um anjo ou um espírito de luz feito de plumas e inocência.

Parou diante de uma casa sombria. As grades enegrecidas cercavam o jardim seco e sem vida, cheio de espinhos e ervas daninhas. Olhou para o alto, para a única janela acesa. Seu coração disparou, ela tocou o portão e ele abriu lentamente, como se quisesse que ela entrasse. Deteve-se por um instante, antes de pisar na passarela de mármore ensebado que culminava na soleira da porta. Atravessou-a sem olhar para os lados, mantinha as mãos sobre o peito, como se seu coração estivesse doendo. Quando se aproximou da varanda, percebeu a silhueta de uma velha. Uma senhora sem rosto ou, talvez, com um rosto tão comum que não era capaz de lhe atribuir nenhuma peculiaridade que pudesse fazer dela alguém especial. Usava um xale de tricô e os cabelos prendiam-se em um coque em cima da cabeça. Era um pouco corcunda e nada mais, não havia mais nada para falar sobre ela. Olhou para Ahgni com olhos de águia, negros e perfurantes, provavelmente não eram seus olhos de verdade, eram jovens e vivos demais.

- Eu preciso entrar – a voz doce fez o ambiente a sua volta se mover, como se tivesse recobrado sua consciência antes perdida.

- Eu sei – a voz velha, rouca e gripada. – Estava à sua espera.

Um gato saltou do colo da velha e ela se levantou. Procurou no bolso do vestido pelas chaves da porta e limpou os pés no capacho imundo antes de entrar, ele mais sujou os chinelos do que os limpou. Ahgni veio logo atrás, tímida e receosa. No corredor havia duas cabeças de veados empalhados e entre elas um espelho redondo com uma armação de madeira escura. O tapete era comprido e acompanhava quem entrava por todo o corredor, até despejá-lo na sala de visitas. As luzes estavam apagadas e fora a lua que iluminou tudo o que Ahgni pôde ver e ela não viu mais nada depois que a porta se fechou.

- Não podemos demorar, já está em cima da hora.

A velha pegou um candelabro sobre a mesa da sala de visitas, ele estava apagado, mas, de repente, as velas se acenderam, uma de cada vez, com quatro estalos secos e faiscantes.

- Não quero que você tropece nos degraus da escada, pelo menos, não agora.

Ahgni arregalou os olhos e engoliu seco. Sobre a mesa, em uma parede descascada badalava um relógio velho e com umas duas dúzias a mais de ponteiros. A velha olhou para ele e depois para Ahgni.

- Eu sei, eu sei – ela disse sem paciência. – Já é quase meia-noite, mas não foi eu quem me atrasei, num é mesmo?

- Fui eu? – ela retrucou sem jeito.

- Quem mais poderia ser? O meu gato? – ela levantou as mãos querendo dizer “claro que foi você, pequena idiota”. O gato, por sua vez, miou, apenas para fazer-se notar.

Ahgni não disse mais nada, havia entendido o recado.

- É por aqui – ela disse enquanto já se dirigia para a escada, como se não tivesse percebido o quanto havia sido mal-educada.

Subiram até o andar seguinte, até o quarto cuja luz estava acesa. A parede na qual a escada estava colada segurava alguns retratos, nada mais do que rostos mórbidos com semblantes forçados e sorrisos que não lhes pertenciam, e mais um espelho, idêntico ao que havia no corredor. O quarto estava, praticamente, vazio. A não ser por um armário de madeira clara, branca como marfim. O assoalho era maravilhoso, fora completamente coberto por uma pintura colorida e que, em alguns momentos, parecia viva. Uma seqüência de círculos feitos de ramos que desabrochavam e se agarravam uns aos outros. No centro do último deles mantinha-se de pé o armário. A velha entrou e Ahgni ficou na porta, sem saber o que fazer. O cheiro de mofo era forte, mas, aos poucos, ela começava a sentir o perfume das flores da pintura.

Venha até aqui menina! – a velha disse, o candelabro já descansava sobre o armário.

Ahgni obedeceu. Passou pelo primeiro círculo e colocou-se no meio dos ramos coloridos. Atravessou o segundo, agora estava entre as flores, fofas e perfumadas. Ergueu o rosto e pouso seus olhos sobre o armário. Uma chave enferrujada com uma fita lilás amarrada pendia da fechadura. As portas já estavam gastas e já deviam ter sido abertas uma infinidade de vezes. Ahgni continuou, venceu as flores e saltou para dentro do terceiro círculo, o que abrigava o armário. Lá, fazia frio e o perfume não existia mais. Do andar de baixo o relógio badalou, o barulho estrondoso derrubou Ahgni no chão. A porta do quarto bateu com força. Mais uma badalada, e depois dessa viriam mais dez.

- Abra a porta, menina – a velha gritou. – Gire a chave antes da última badalada.

Ahgni olhou para o alto e o armário projetava-se imponente sobre ela, como se tentasse lhe meter medo. Ela reuniu suas forças e ficou de pé. “Mais uma badalada”. Ela enrolou a fita no pulso e segurou a chave com as pontas dos dedos. Fechou os olhos e a girou. As portas abriram, como se tivessem sido empurradas por uma lufada de vento e as badaladas cessaram. No escuro, ela percebeu cinco pontos brilhantes. Três deles voavam ariscos e os outros dois estavam parados, imóveis, mas ainda assim, brilhantes. Os olhos abriram-se lentamente e se encantaram com o que viram. A pintura havia saltado para fora do assoalho e crescia, respirava. Os ramos de prata e marfim despontavam em pérolas róseas que pareciam pequenos sóis a irradiar luz e calor. As flores de arco-íris, de cetim, de sonhos e céus desabrochavam aos cachos, e exalavam o mais delicioso dos perfumes. Os cinco brilhos ficaram juntos, cada um de uma cor. Eram fadas mágicas e lindas, mas uma delas estava ferida. As outras, as que conseguiam voar, rodopiaram ao redor de Ahgni. Ela, por sua vez, estava paralisada.

- Quem é você? – a fada verde perguntou.

- Também não sei quem ela é? – a fada vermelha acrescentou. - Não conhecemos você! Por que você nos libertou?

Elas continuaram voando, como se procurassem as respostas para suas perguntas e Ahgni as estivesse escondendo. Ahgni também não sabia respondê-las ou onde elas pudessem estar. Naquele instante, tudo o que havia feito lhe pareceu burrice. “Por que estaria ali?”

- Responda! Quem é você? – a menor, parecia uma criancinha com asas de borboleta, perguntou. Ela ainda voava com um pouco de dificuldade, mas mesmo assim já era muito rápida.

Todas eram pequenas, talvez, muito pequenas. Cabiam na palma de uma mão e não precisava ser a mão de uma gigante, a mão de um bebê era o bastante. Tinham os cabelos compridos, apenas uma tinha os cabelos na altura dos ombros. Ela usava peças de uma armadura sobre o que parecia ser um uniforme militar. A de brilho vermelho tinha os cabelos mais compridos do que todas as outras e usava um vestido longo bordado com rosas vermelhas na barra. As duas outras, que permaneceram no chão, eram tão bonitas quanto as outras.

- Não estão vendo? – Lucrecia, a fada que estava ferida, pronunciou-se. Sua voz era forte e cristalina.

No mesmo instante, Jasmine voou até bem perto do rosto da Ahgni. Seu brilho azul era o mais forte e envolveu todo o quarto com sua luz. Observou, observou, se aproximou de cada um dos olhos e depois olhou dentro das orelhas.

- Olhem – todas voaram para o redor dela, inclusive Lucrecia, ainda com dificuldade. - Vejam esse brilho.

Ahgni ficou arrepiada e sua boca secou.

- Ela é a filha da imperatriz – Jasmine disse com alegria. – Ela nos encontrou.

Todas sorriram e abraçaram o nariz da pequena Ahgni.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 02/06/2007
Reeditado em 27/12/2008
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