A Travessia
O rio alargava a curva a perder de vista e amainava, preguiçoso, alisando os cipós, os papiros, as raízes que vieram na enxurrada anterior e ali ficaram, encalhadas. A água barrenta brilhava, prateada ou negra, segundo a hora ou os caprichos do tempo. Por causa dos jacarés ninguém tomava banho ali e a roupa era lavada a montante do lugar, nas pedras por onde, raso, o rio escorregava em vários braços buliçosos. Do alto da falésia viam-se as margens secas, raras árvores cobertas de pássaros e um imbondeiro que servia de referência. Andar até lá valia meia hora de caminho áspero. Atravessava-se o rio numa jangada de bambu. Quem tinha moedas pagava o transporte, quem não tinha trocava fuba ou frutos por lugar entre os corpos suados que se sentavam no entrançado das canas. Muitas vezes o povo cantava as suas dolências e outras vezes ficava a sofrer o sol em silêncio. Naquele dia, quando a jangada já passara o meio do rio, levantou-se da água o homem, gesticulou para afastar os jacarés que nele confluíam e pediu para embarcar. Sorria. Abriram-lhe espaço o medo e a admiração gerais e o dono do transporte, siderado, não conseguia falar. As roupas estavam enxutas e o homem, de grande estatura e com ar sereno, cruzou as pernas e ficou a ver a margem aproximar-se. Quando já poucos metros faltavam para o fim da viagem ele levantou-se, saudou os presentes e desceu para a água onde, lentamente, se afundava e se transformava em jacaré. Um pouco mais e, abanado uma cauda poderosa, mergulhou. Quando desembarcámos, minha mãe segurou firme a minha mão e disse: - nem tudo o que se vê é verdade. Os olhos e os ouvidos enganam-nos muito. O coração é fiável, exceto quando se apaixona.