Crônicas de Arunia - O Reino Antigo Cap 2
— Está morta?
— Ela parece morta...
— Tente de novo. Sabe o que dizem, a terceira vez é garantida.
As vozes... Aida não conseguia distingui-las. Tudo estava confuso, ela não podia enxergar nada... Por que seus olhos não se abriam? Por que seu corpo doía tanto?
— Vamos, garota... Reaja! Vamos!
— Aida, vamos! Antes que os outros acordem!
A ladra acordou num sobressalto. Instintivamente agarrou a pequena faca que trazia presa à cintura, mas nada aconteceu. Ela estava sozinha na tenda. Os primeiros raios da manhã iluminavam sua face molhada de suor. Havia tido um pesadelo... A voz de Sky do lado de fora da tenda a acordara.
Aida suspirou ao lembrar-se da loucura a qual tinha prometido participar naquele dia. Templos perdidos, mapas secretos... Onde ela estava se metendo?
— Vamos logo!
— Pare de gritar. — disse, ao sair da tenda ainda terminando de calçar as botas de couro. — Você com certeza fala muito alto para quem quer sair escondida.
Sky riu.
— Desculpa... Eu só estou muito animada. Vamos?
— Tem certeza de que não quer avisar ao Tahn dessa nossa... Aventura? Nem mesmo ao Jalen? Tenho certeza de que ele vai ficar quieto como sempre. Mas, você sabe, só para garantir que ninguém se preocupe pela nossa ausência...
— Não! Qualquer um deles iria tentar me impedir de ir sozinha.
— Ei, você não vai sozinha!
— Tentariam me impedir mais ainda se soubessem que vou com você, Aida.
Aida fingiu-se ofendida e as duas riram. Minutos depois, pegaram a trilha pela floresta que iria leva-las até Ionmarsh. A caminhada duraria três horas floresta adentro. Quando a primeira metade do caminho já havia passado, Sky começou a ficar insegura e a olhar o tempo todo para os lados.
— Ali! Tem alguma coisa atrás daqueles arbustos! — gritou ela, apontando na direção em que um arbusto havia se movimentado. — Aaah! Eu não quero morrer!
— O quê?! Onde?! — Aida puxou sua faca e as duas ficaram a espreita, esperando qualquer coisa acontecer. Algo no arbusto se movimentou novamente.
Segundos depois, um coelho branco saltou em direção a elas.
—... O malvado coelhinho da destruição? — ironizou Aida.
— Cala a boca... Eu achei que fosse um lobo ou algo assim... Está fugindo! Pega!
— Peguei! Mas o que você quer fazer com ele?
— Estamos sem carne no acampamento.
— Que cruel...
— Jalen aprovaria. — Sky colocou um sorrisinho sádico nos lábios. Aida não conseguia entender o que a amiga via de tão interessante naquele elfo lunar depressivo e solitário, mas fazer o que. Ninguém manda no coração, não é?
— Pff... Vamos andando.
Outra hora e meia se passou sem que nada de muito interessante acontecesse. Ionmarsh estava próxima, mas em nenhum lugar se via qualquer indício da existência de um templo antigo. Sky continuava a olhar para os lados, procurando qualquer coisa que lhe pudesse servir de pista, mas não havia nada. As duas continuaram a caminhar até que a floresta ficou subitamente mais densa, escura e sinistra.
No meio da mata fechada, uma estrutura gigante como uma colina projetava-se, afastada do caminho da trilha. A estrutura era toda feita de pedras e devia ter sido algo majestoso nos tempos em que ainda estava erguida, porém suas colunas haviam desmoronado e o tempo encarregara-se de lhe cobrir de lodo, terra e cipós. Agora a estrutura fazia parte da mata e camuflava-se nela. Apenas um olhar mais atento como o de Sky poderia tê-la distinguido de qualquer outra caverna comum.
— Okay... aqui estamos.
Aida prestou mais atenção e conseguiu ver o lugar que sua amiga havia indicado. Não ficou muito feliz com a visão, no entanto. A sensação que emanava daquela abertura escura entre os cipós que cobriam as pedras era a mesma sensação sinistra que emanava da floresta e das profundezas dos pesadelos que Aida tinha com frequência.
— Sky, você percebeu que esse lugar está em ruínas, não é?
— Eu sei que parece ruim, mas eu tenho que entrar lá, Aida. Tenho que saber o que tem lá dentro.
A ladra sibilou. Por que continuava a concordar com essa maluquice?
— Certo, mas se a gente esbarrar em um monstro gigante bufando pelas narinas, eu vou deixar ele te comer primeiro. — ironizou Aida, escondendo seu descontentamento.
Sky não notou o desconforto da amiga.
— Eu não acho que há perigo real por aqui... Minha mãe teria mencionado. Segundo ela, esse templo perdido guarda um mapa. Parte dele, na verdade... Mamãe acreditava que se juntasse todas as partes do mapa, ele poderia mostrar a entrada do Reino Antigo.
— “Poderia”? Ou “pode”? Quer dizer, não há nada de errado com “poderia”, mas eu mesma sou uma garota do tipo que prefere arriscar o pescoço por algo certeiro.
— Pode... Poderia... Eu sei lá, ela não diz. Mau fala claramente sobre o Reino Antigo naqueles diários...
Tinha alguma coisa errada. Era impressão ou a voz de Sky estava mesmo embargada? Aida notou que os olhos azuis da amiga estavam molhados demais... Seria culpa daquela sensação estranha emanando do templo, que estava mexendo com as emoções das duas?
— Sky... — Ainda colocou uma mão reconfortante sobre o seu ombro.
— Não, tudo bem. Mamãe nunca quis que eu descobrisse sua pesquisa. É só que... Tentando me impedir de descobrir com enigmas, códigos e labirintos de informações... – as lágrimas teimaram em cair. — Ela sabia que eu era fraca, que eu era inútil. Não queria que eu me metesse no assunto porque sabia que eu só iria atrapalhar...
— Não diga isso! Ela estava tentando proteger você... — Aida não era boa com palavras, mas não podia deixar de tentar concertar o estrago que aquele idiota do Tahn havia inconscientemente provocado na própria filha, cercando-a de cuidados e fazendo-a acreditar que não era capaz de cuidar de si mesma, que não era forte o bastante.
Aida não havia conhecido a mãe de Sky, mas tinha a impressão de que ela nunca consideraria a filha incapaz de fazer qualquer coisa. O motivo pelo qual sua morte e toda a sua pesquisa estavam envoltas em mistérios, era porque algo naquilo tudo estava muito errado, ou era muito proibido.
— Sky, ela morreu tentando achar esse lugar...! E, se ela era tão boa ladra como você me disse... É claro que estava mexendo com algo muito perigoso! Talvez ela tivesse uma boa razão para impedir você de descobrir.
Sky escutava de cabeça baixa e olhar no chão. De repente secou as lágrimas e se esforçou para abrir um sorriso com o canto dos lábios.
— É... Talvez você esteja certa, talvez ela quisesse simplesmente evitar que eu sofresse algum mal...
Aida sorriu de volta e então Sky voltou-se para o templo que a aguardava, um pouco afastado no meio da mata.
— Mas agora eu sou forte o suficiente para encarar seja lá o que for aquilo do que minha mãe estava me protegendo.
Sky começou a andar em direção ao templo e Aida arregalou seus grandes olhos esverdeados. “Ótimo, Aida. Suas palavras tiveram o efeito contrário e agora ela vai justamente em direção ao perigo. Parabéns!”, pensou consigo mesma ao bater na testa com a palma da mão.
As duas saíram da trilha e embrenharam na mata fechada, abrindo um caminho próprio em direção ao templo perdido, a cada passo mais perto da entrada da caverna, outros sinais estranhos sobre aquele lugar apareciam.
— Isso é... Sangue? – Sky parou diante de uma poça de líquido viscoso, espesso e muito escuro no chão.
— Se for sangue, certamente não é humano.
— Essas marcas... — ali, as árvores tinham cortes feitos aparentemente por garras — Lobos?
¬— Muito profundas... O que quer que tenha deixado essas marcas, não vai nos convidar para tomar chá e fazer tranças no cabelo.
— Olhe, tem uma inscrição. — viam-se, ao redor do portal de entrada da estrutura, alguns entalhes feitos sobre a pedra.
— Nunca vi essa escrita antes... — observou Aida ¬— É Dwarven ?
— Não. Parece... Kadan.
Aida engasgou. Não tinha grandes conhecimentos sobre as línguas de Arunia, a não ser aquelas mais comumente usadas e, é claro, a língua oficial do reino, Arun. Mas Kadan... Mesmo os mais estudiosos sabiam quase nada sobre ela, porém todos do reino já haviam pelo menos ouvido falar daquela língua e o que ela representava.
— Kadan??? Quer dizer, a língua antiga? Espere aí, o quão velho é esse templo? — indagou Aida, boquiaberta.
— Velho. É uma pena que eu não consiga ler... Gostaria de saber o que diz.
— Possivelmente “Não entre, há monstros aí e o lugar cheira muito mal.”.
Sky não conteve o riso.
— Será que você nunca consegue levar nada a sério? — ela lutava para voltar a sua pose de moça séria prestes a realizar uma missão importante, o que fez Aida explodir em mais risos e as duas voltarem a rir juntas como duas idiotas.
Aida sentiu o corpo estremecer com o frio emanado pelas paredes de pedra, assim que elas finalmente pisaram no templo antigo. A entrada era estreita e escura, mas as duas conseguiram ver uma longa escada de pedra levando ao subsolo. No entanto, mal podiam ver o final da escadaria.
Aida checou sua amiga para ver se ela estava bem. Sky nunca gostara de túneis subterrâneos... Mas ela não trazia nenhum sinal de hesitação em seu rosto. Na verdade, estava quase séria demais...
Ao começarem a descer a escadaria, Aida sentiu uma leve brisa soprar em seu pescoço. “Tenho um mau pressentimento quanto a isso...”, pensou consigo mesma. Tinha a sensação de estar sendo observada.
¬— Não consigo ver nada! — exclamou Sky, tateando as paredes com as mãos e descendo cada degrau com o máximo de cuidado possível. Dali a pouco, ouviu um baque surdo e quase escorregou quando alguma coisa bateu em sua perna. — Ai... Isso foi o seu pé?
— Não... Foi a minha mão. — respondeu Aida, meio envergonhada.
— O que, em nome dos Reis Antigos, você está fazendo aí no chão?
— Eu caí, okay?!
Um longo corredor se estendia além da escadaria, que finalmente chegara ao fim. Ou pelo menos, as duas achavam que aquilo fosse um corredor, pois estava tudo escuro demais para afirmar qualquer coisa. De repente, Sky observou um ponto de luz fraca vindo de longe.
— Mas o q-... Um desvio? Aida, aquilo é um desvio?!
— Para de gritar no meu ouvido!
— É um desvio! — Sky ignorou completamente os protestos da amiga — Aida, achamos alguma coisa!
O que as duas haviam achado era um salão imenso e completamente vazio, a não ser por uma única estátua de pedra em forma de mulher no centro. A única coisa extraordinária nela era seu caráter reluzente, a pedra era feita provavelmente de algum mineral luminescente que jogava uma luz tênue sobre o resto do salão. Havia também uma grande joia vermelha como o sangue no meio da testa da estátua, como se fosse um terceiro olho. Além da estátua e do rubi, somente as paredes sólidas compunham o resto do ambiente.
— Pelos Reis Antigos...! — exclamou Sky, num tom admirado, que Aida não entendeu e não compartilhou.
— Hm... É um beco sem saída. — constatou, simplesmente.
— Olhe a estátua! Deve ser de uma Rainha Antiga! — Sky virou as palmas das mãos para o céu e declarou num tom solene. — Descanse em paz, minha Rainha, e para sempre olhe por nós. Tal a bir sarath mi tan, Linne Tenoth.
Ela repetiu a frase três vezes e Aida esperou aquele ritual pacientemente, mas não sem arquear as sobrancelhas.
— Não sabia que você era do tipo religiosa, Sky.
— Eu acredito em Ascensão... — respondeu ela, ainda encantada com a estátua — Você não acha que os antigos reis e rainhas olham por nós do Erani, uma vez que eles ascendem?
— Não é hora de discutir religião. Vamos focar em encontrar logo esse mapa...
“Que provavelmente não está aqui.”, Aida ia completar, mas conteve-se a tempo. Embora não quisesse cultivar as esperanças de Sky, também não queria soar tão pessimista a ponto de magoá-la.
— Certo! Hummm... Mamãe mencionou uma entrada secreta, que pode estar em algum lugar desta sala.
As duas olharam ao redor. Realmente não havia nada que denotasse um esconderijo secreto, nem uma alavanca, nem uma pedra fora do lugar. Todas as paredes pareciam sólidas e o chão de pedra era uniforme em toda a sua extensão. Sky não parava de procurar, embora todas as suas tentativas fossem em vão e todos os seus esforços culminassem em nada. Aida também estava se esforçando, mas também não encontrava nada, e seu coração foi ficando apertado por ter de dizer o óbvio a sua amiga...
— Não tem nada, Sky... É um beco sem saída.
— Não pode ser...! Tem que ter alguma coisa... Tem que...
Aida segurou os ombros de Sky e a fez olhar em seus olhos verdes. O olhar era cheio de compreensão, mas também era sério.
— Sinto muito, Sky. Mas, vamos embora.
Uma lágrima cintilou nos olhos azuis da outra e Aida a envolveu num abraço forte. Sky chorou e as duas permaneceram unidas até sua respiração se normalizar novamente.
— Eu estou bem. — resignou-se ela. — Vamos sair daqui.
As duas caminharam lentamente de volta na direção de onde vieram. Aida sentia-se infeliz, mesmo que no fundo soubesse que isso era o mais provável que podia acontecer. Haviam fracassado novamente.
A ladra olhou uma última vez para a estátua da Rainha Antiga. Seu brilho era realmente de uma beleza emocionante, mas nada chamou mais atenção naquela hora do que o imenso rubi cravado no meio de sua testa. Aida sorriu. Pelo menos uma coisa boa podia resultar daquela viagem... Um grande roubo.
— Aida, o que está fazendo? — quando Sky notou o objetivo da amiga, colocou as mãos na cintura como se fosse uma mãe indignada com a malcriação de uma criança. — Você está maculando a estátua da Rainha Antiga?
— Estou. — riu Aida, agarrando o rubi e tentando retirá-lo com o máximo de cuidado que a sua pequena faca podia proporcionar.
Sky sorriu maliciosamente.
— Essa é a minha garota.
Quando a joia saiu de seu lugar, as duas ladras prenderam a respiração por dois motivos: 1) o rubi era maior e mais bonito do que parecia; 2) deveria haver alguma armadilha para protegê-lo e elas ficaram instintivamente esperando essa armadilha ser acionada. Porém, nada aconteceu.
... Por alguns instantes.
Logo, as paredes começaram a zunir e o rubi nas mãos de Aida começou a brilhar intensamente.
— Corre! — gritou Sky, já em posição de alcançar a saída em três ou quatro passos.
— Não... Consigo...
Aida não podia se mexer.
O brilho que emanava da estátua e do rubi começou a envolver seu corpo pouco a pouco. Repentinamente, da ponta dos pés até a ponta de seus longos cabelos brancos, Aida brilhava.
— Aida, o que está acontecendo? — indagou Sky, horrorizada com a cena.
Os olhos da ladra, de verdes começaram a também reluzir, completamente brancos, até que não se distinguia nem íris, nem pupila. Os cabelos, naturalmente brancos, esvoaçavam mesmo que nenhuma brisa circulasse dentro do salão. Seu corpo ergueu-se como se uma força a puxasse em direção ao teto e ela flutuou centímetros acima da cabeça da estátua de pedra. Parecia ao mesmo uma deusa lunar e uma marionete sem vida.
Sky gritou. A estátua da Rainha Antiga evaporou-se no ar. Aida caiu com um baque surdo no chão.
Do outro lado do salão, no meio de uma das paredes de pedra, uma porta secreta surgiu, aberta para a escuridão.
~ Continua