Crônicas de Arunia - O Reino Antigo Cap 1

Frio.

Eu nunca pensei que seria frio.

Eu sabia... Sempre soube que de um jeito ou de outro...

Eu morreria assim.

Achei que estava pronta.

Mas agora tudo o que eu quero... É uma chance.

Uma última chance de lutar.

Capítulo 1

A Raposa Elegante era um lugarzinho dos mais imundos em Davenside. Uma taverna pequena e constantemente lotada por bêbados, apostadores, prostitutas e informantes. “O melhor lugar para encontrar todo tipo de escória da cidade”, Sky sempre dizia.

Para Aida, no entanto, A Raposa Elegante representava simplesmente grana fácil. A clientela por ali bebia até ver tudo dobrado e sempre foi fácil roubar dos bêbados. As duas ladras podiam conseguir em torno de oito peças de ouro até o fim de uma só noite. Especialmente quando usavam a tática de começar uma “briga de bar”.

— Vem cá, sua imunda, pra eu quebrar essa sua cara de cavalo! – gritou Sky, empunhando as mãos fechadas ao mesmo tempo em que dirigia uma piscadela para Aida.

— Pode vir, sua vaca gorda!

Não demorou dois segundos para que todos os “brigões” da taverna estivessem de pé – ou melhor, tentando se equilibrar de pé –, a postos para uma boa luta. O primeiro a urrar foi um anão bêbado de barba ruiva que, ao invés de segurar seu machado, o havia confundido com um pedaço de pau retorcido e brandia-o furiosamente no ar.

— AO ATAQUE!

Entre urros e gemidos, a taverna virou um emaranhado de criaturas suadas e cambaleantes a golpear qualquer coisa que vissem pela frente e a xingar a plenos pulmões coisas totalmente sem sentido. Uma confusão das mais hilárias e propícias a batedores de carteira.

— Vem pra cima, odargano covarde!

— LUTEM, SEU BANDO DE MOLENGAS!

— Até um Lith soca melhor que você!

¬ — Como ousa falar dos Liths, seu dereniano imundo!

— Você vai ver, seu prostituto adashiano!

— Você é que vai ver, seu cabeça de peido fedido!

Entre algumas gargalhadas disfarçadas, Sky se aproximou de Aida, uma vez que ninguém mais estava prestando atenção nas duas.

— Vamos, a briga já começou. A gente não tem muito tempo, então pegue o que puder e seja rápida. — sussurrou — Pronta?

— Nasci pronta.

As duas dançaram pelo salão, desviando de golpes e alcançando os bolsos e cintos das criaturas cambaleantes. Alguns nem notaram as ladras, outros tampouco haviam se importado de fechar suas bolsas de moedas, fazendo com que estas caíssem e se espalhassem pelo chão durante a luta. Foi como tirar doce da mão de um Lith.

14 peças de ouro depois...

— Há! Eu me impressiono comigo mesma, às vezes...! — gabou-se Aida — Você também não é ruim, Sky.

— Cala a boca, piranha, eu te ensinei tudo o que você sabe! — riram as duas.

De volta ao acampamento, no meio de uma clareira na floresta, gargalhavam e contavam vantagem da noite. Mas o sorriso de Aida não durou por muito tempo: assim que Sky se afastou para ir a sua tenda, um homem de olhar severo se aproximou.

— Aí está você!

O líder do acampamento era um homem de meia idade e barba por fazer, com sobrancelhas grossas que sempre estavam franzidas quando ele se dirigia a Aida. Tahn era um talentoso médico que há muito tempo havia se apaixonado por uma bela ladra e ido parar ali.

— Suponho que já terminou de colocar minha filha em perigo, por hoje?

E a propósito, essa ladra havia sido a mãe de Sky.

— Ora, mas eu estava apenas começando! — respondeu Aida, cruzando os braços — Não vê? Aqui estava eu planejando jogar Sky de um penhasco, vendê-la como escrava aos mercadores ou atirá-la de comida aos lobos... Agora, com você aqui, meus planos malignos estão arruinados.

Tahn trincou os dentes, mas logo se recompôs. Não valia a pena discutir com uma jovem teimosa e insolente como Aida. Se pretendia fazer com que suas palavras tivessem algum significado para ela, teria de ferir o seu orgulho.

— Não se esqueça de que deixamos você ficar aqui por gentileza.

Foi a vez de Aida trincar os dentes.

— Eu sei. Não precisa me lembrar a cada cinco minutos. — interrompeu ela, virando as costas para Tahn. Não queria ser lembrada de que não era bem vinda ali e estava disposta a se afastar até sua tenda e encerrar o diálogo, mas o homem pôs uma mão em seu ombro, impedindo-a de ir.

— Olhe, Aida, nós achamos você... Suas feridas... Se Sky não tivesse te encontrado e trazido a tempo, você teria morrido naquele dia.

Dessa vez, era Aida quem tinha as sobrancelhas franzidas. O que diabos ele queria dizer com aquela conversa?

— Tahn, se eu estivesse planejando machucar sua filha, eu já o teria feito nesses últimos seis meses.

O homem suspirou.

— Só... Não a coloque em perigo, está bem? Faça o que fizer, mantenha-a viva... Considere isso um favor por termos salvo você.

Aida teve de segurar seus punhos fechados ao lado do corpo. Eles teimavam querer voar na cara de um certo médico.

— Eu a protegeria mesmo que eu não devesse minha vida a você! Isso é, se ela precisasse ser protegida! Sky é minha amiga, e não é tão fraca quanto você pensa!

Tahn deu seu último olhar para Aida, com um semblante sério e sem expressão. A garota não saberia dizer o que aquele olhar significava.

Então ele finalmente se afastou.

Terminado o sermão, a garota pode finalmente andar pelo acampamento. Esse era composto por apenas duas tendas — uma maior para os poucos homens e uma menor para ela e Sky —, uma fogueira crepitava no centro e algumas tochas demarcavam as fronteiras do terreno e mantinham animas afastados.

Os quatro outros ladinos do grupo estavam espalhados pelos arredores: Cal, o mercenário, sempre afiando sua cimitarra ; Jalen, o elfo lunar, quieto e afastado; e os gêmeos, Emsay e Brale, sempre juntos discutindo qualquer coisa de irrelevante.

A garota aproximou-se de Cal, que parou de afiar sua arma por alguns instantes.

— Oi, Aida... Precisa de alguma coisa?

— Preciso descontar a raiva antes que eu acabe quebrando a cara do pai da minha melhor amiga “sem querer”... — ela bufou e continuou sem falar durante alguns segundos. Logo mais deu um soco amigável no braço musculoso de Cal — Aposto que eu consigo derrubar você numa luta, o que acha?

O homem era um dereniano negro, alto e forte, totalmente em contraste com ela, uma garota de estatura mediana e esguia. Ele também era atraente, basicamente um armário de olhos verdes.

— Certo, garoto durão, vamos acertar as contas de uma vez por todas! — exclamou Aida, sorrindo e com os punhos a mostra.

— Eu não vou lutar com você de novo, você joga sujo!

— Ah, qual é! Eu só te mordi uma vez!

Cal sorriu e voltou a afiar a lâmina curva de sua espada.

Aida foi então ao encontro de Jalen, que estava tão compenetrado em seus afazeres, que não a notou. Ou fingiu não notar.

— E aí, Jalen. Você parece ocupado. Fazendo novas flechas?

O elfo não tinha expressão alguma no rosto. Parecia estar sempre entediado. Era alto e esguio, porém não muito forte. Sua pele tinha um tom azulado e seus olhos negros pareciam refletir a própria noite. Os cabelos, no entanto, eram loiros, quase brancos.

— É, estamos sem carne. Eu preciso caçar.

Depois da resposta lacônica, ele retornou a ficar quieto e ela, novamente entediada. Emsay e Brale, no entanto, pareciam estar se divertindo numa conversa animada ao redor da fogueira:

— Nãao, cara... Lobos Talon não morrem com um golpe normal. – dizia o mais velho − Tu tem que cantar pra matar um deles.

— Isso não faz sentido algum, Emsay. Você está brincando comigo de novo!

— Confia em mim, cara. Lobos Talon são mágicos... Não é, Aida?

Emsay estava sempre brincando e falando bobagens, nas quais o irmão Brale sempre acreditava. Os dois tinham apenas 14 anos, mas isso não significava muita coisa quando tinham seus dardos venenosos nas mãos. Eram atiradores incríveis e bons acrobatas. Quanto a inteligência, entretanto, continuavam sendo duas crianças pentelhas.

— Claro! — respondeu Aida — Aliás, você tem que ficar completamente pelado enquanto está cantando ou então o lobo volta a vida pra te atacar enquanto você dorme! — a garota falou da forma mais séria que pode, enquanto dava gargalhadas por dentro. Ela e Emsay trocaram um piscar de olhos sem que Brale percebesse.

— É isso aí, cara. Você tem que ficar nu como um bebezinho!

— Ah, cara... Que droga! Eu só conheço uma única música e nem é tão boa assim...

Aida se afastou rindo alto. Sentia-se melhor e quase tinha esquecido a briga com Tahn. Não importava o que ele disesse, ela se sentia parte daquele grupo... E sabia que os outros não a abrigavam ali apenas por gentileza, mas porque ela era um deles agora. Distraída, Aida acabou por pisar numa folha de pergaminho perdida no meio do acampamento. Estava amarelada e envelhecida.

Ela imediatamente reconheceu que aquela folha devia ser de um dos diários da mãe de Sky...

Sky tinha achado aqueles diários há alguns meses e, desde então, andava sempre com um deles pelo acampamento. Quando não estava roubando, estava lendo e tentando descobrir se aqueles escritos poderiam leva-la ao motivo da morte de sua mãe.

Aida se pôs a ler o papel:

“Então, se levantou da terra dos mortos, O Salvador.

Aquele que havia visto a morte. Aquele que havia visto além.

Os Senhores do Reino Antigo haviam sido convocados mais uma vez ao mundo dos mortais.

Pela língua que há muito foi esquecida.

Seus pés tocaram os pecados da escuridão no sangue de muitos.

Assim iniciou-se uma era de silêncio. Assim começou a calmaria antes da tempestade.

Até que seja a hora, ninguém deve falar suas palavras...

Na língua que há muito foi esquecida.”

A ladra estremeceu. Não sabia bem dizer o porquê, mas aquelas palavras escritas em caligrafia rebuscada fizeram seu corpo gelar. Ela nem entendera direito seu significado, mesmo assim, sentira um calafrio na espinha e uma gota de suor frio escorrer pela nuca.

Balançou a cabeça. Isso devia ser coisa da sua imaginação. Era melhor devolver aquela folha de uma vez.

Dentro da tenda, Sky estava concentrada em outro daqueles diários. Aida não quis incomodá-la em dizer que tinha encontrado um papel perdido no meio do acampamento, simplesmente rumou para o pequeno aparador de madeira onde estavam depositados outros livros como aquele que Sky tinha nas mãos e decidiu abrir um deles para deixar a folha lá dentro. Porém, ela não pode se conter em ler outro fragmento da página que havia aberto.

“Há alguns dias, um velho amigo meu contatou-me sobre nosso ‘interesse comum’...

Eu quero acreditar nele. No entanto, se ele estiver certo sobre os mapas, isso vai levar mais tempo do que eu havia antecipado.

Sky está crescendo.

Eu não sei por quanto tempo mais posso me esconder deles. Não quero colocar minha família em perigo.”

— Hmm... — murmurou Sky, do outro lado da tenda, o que fez Aida fechar imediatamente o que estava lendo.

Sua amiga estava concentrada e mordia a ponta dos dedos.

— O quê? Achou algo interessante?

Sky levantou os olhos azuis, percebendo a figura de Aida ali pela primeira vez.

— Sim... Bem, é alguma coisa... Minha mãe mencionou um templo escondido em Ionmarsh algumas vezes nesses diários...

— E o que isso quer dizer? Você realmente acha que tem algo a ver com o Reino Antigo?

O Reino Antigo... Sky tinha estado especialmente obcecada por ele desde que achara os relatos de sua mãe. Aida acreditava que aquilo não passava de uma lenda.

— Pode ter.

Aida arqueou uma sobrancelha, como se desconfiasse daquela informação. Ela não gostava de probabilidades e coisas incertas. Sky, pelo contrário, tinha uma consideração enorme pela incerteza. Como uma boa otimista que era, não se importava em agarrar até as últimas esperanças. Assim, respondeu à desconfiança da amiga com um sorriso.

— Ela era sagaz, Aida. Nunca iria deixar uma pista concreta escrita num papel. Pelo menos, não diretamente.

— Se você diz...

— Eu quero visitar esse templo. Por favor, Aida, venha comigo. Podemos ir amanhã bem cedo!

Ah, não. Aquilo de novo, não...! Sky a havia arrastado para vários outros lugares atrás de pistas falsas relacionadas àqueles diários. As pistas nunca levavam a lugar algum e ela ficava mais obcecada a cada vez que suas intuições falhavam. Mas Aida não conseguia resistir aquele olhar cheio de esperança que a amiga lhe dirigia. Sabia o quanto isso era importante para Sky e sabia que ela provavelmente iria se meter em alguma encrenca caso se aventurasse sozinha. Além do mais, se Sky se machucasse... Tahn seria capaz de comê-la viva.

— Tá... Vamos checar. Eu só não quero que fique desapontada se isso não levar a lugar nenhum, como da outra vez.

— Obrigada! Não vai acontecer, eu prometo.

“Não vai acontecer o que? Você ficar desapontada ou essa pista levar a lugar nenhum?”, Aida quis perguntar, mas a outra já havia mergulhado novamente nas páginas amareladas do diário.

Sem coisa melhor a fazer, a garota resolveu dormir. Amanhã, pelo que Sky fazia parecer, seria um longo e cansativo dia.

~Continua

~*~

Notas adicionais (leia-se: aspectos irrelevantes, porém interessantes, do making of da história >.<):

1) Significado do nome Aida segundo a Numerologia: indica uma pessoa que tende a perder o controle das emoções. Apaixona-se com facilidade e se irrita com mais facilidade ainda. Mas não guarda mágoas de ninguém, nem trai um amigo/namorado. Tudo na vida é muito claro e honesto.

2) Significado do nome Sky: O firmamento. Sky tem esse nome por causa de seus olhos muito azuis e porque, no dia de seu nascimento, o céu era o mais lindo que a sua mãe já havia visto em toda a vida.

Ingrid Flores
Enviado por Ingrid Flores em 30/12/2014
Reeditado em 28/03/2015
Código do texto: T5085054
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