O Totem

Por Giomar Rodrigues

Meu nome é Annabel Scoldi e há alguns dias lembrei-me de uma história que meu avô costumava me contar. Era uma lenda sobre a criação do mundo para o povo indígena da tribo Kuttuna. Ela era mais ou menos assim...

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Aphonekuttan, o deus da justiça e da bondade declarou guerra contra seu irmão Nephattanam, o deus da noite por ter roubado Narka, a mulher que amava no dia de seu casamento. Decidiriam quem seria digno do amor da jovem através de um duelo mortal na montanha mais alta para que todas as estrelas fossem testemunhas do resultado da cruel batalha. Quando o dia chegou ambos escolheram suas melhores armas, decididos a por um fim a aquele problema. A bela jovem Narka mesmo aprisionada por Nephattanam pede ajuda aos quatro ventos e assim Ramog, “o corvo que segura o céu” veio atender ao chamado. A jovem lhe entrega seu colar favorito, que era um lindo pingente com uma pedra de cor esmeralda e pede que ele chegue o mais rápido possível às mãos de Aphonekuttan para que saiba que torcia por ele no combate e que seu coração ali também estaria. Dessa forma, Ramog partiu o mais rápido que pode para entregar o colar a Aphonekuttan antes da batalha final. Quando Aphonekuttan recebeu o colar, sentiu-se preparado para enfrentar seu irmão, mas durante a batalha é mortalmente ferido no peito e tomba ao chão. Nephattanam reconhece a joia de Narka ainda firme na mão de seu irmão e percebe que nunca seria amado pela jovem da forma que Aphonekuttan era por ela. Percebendo seu erro e lamentando a morte do irmão pede que soltem a jovem amada e transforma o corpo do irmão em um enorme falcão que alça voo para as estrelas, a jovem Narka cai em prantos ao ver seu amado Aphonekuttan voar aos céus para sempre e transformando-se em uma pomba tenta seguir o rastro de seu amor. Nephattanam envergonhado tira sua própria vida usando sua espada, fazendo o sangue correr pela terra em abundância. Do sangue de Nephattanam surgem criaturas mais altas que todos os outros animais que já se viu, não possuíam pêlos e conseguiam anda sobre duas patas. Estes foram os primeiros homens do planeta, nascidos do lamento e destinados à guerra infindável que o mundo traria.

Dizem que Narka e Aphonekuttan nunca se encontraram, mas suas estrelas ainda podem ser vistas brilhando fortemente em noites tristes de verão...

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Além do fato de ser uma história bela, porém triste, acho que ela me ajudou a entender melhor coisas sobre o amor e talvez sobre a minha própria vida. Nunca me deixei envolver-me completamente em paixões que me parecessem impossíveis ou extraordinárias, optando sempre pelo mais sensato e seguro. Mas hoje penso se meus pensamentos foram corretos no momento de tais decisões ou meramente escapistas. Juro que tento não pensar nisso, mas o passado é algo que carregamos na memória sem qualquer oportunidade de abdicação. E quando digo que tento não pensar nisso, realmente falo a verdade, já que se tratando de amor, devo então falar de outro tipo do mesmo, um tipo muito pessoal, me refiro diretamente ao amor pelos animais. Tenho esse sentimento desperto desde os tempos da minha faculdade de biologia, onde víamos os animais sob outra ótica em relação ao mundo comum, dessa maneira tornei-me mais sensível com tais criaturas, mesmo o maior predador podia apresentar sua beleza para mim em sua caçada ou mesmo um lado frágil em relação aos seus semelhantes quando em grupo.

Digo a mim mesma, todos os dias que esse amor por animais é a única razão do sonho recorrente que tenho a muitos anos. Um sonho estranho, mas não do tipo que definiria como pesadelo, muito pelo contrário já que inúmeras vezes tenho boas recordações quanto ao mesmo. Neste sonho, sou um animal, eu me levo a crer, já que minha estatura é diminuta em relação a um homem, e correndo por um bosque vejo paisagens e outros animais, que não costumam interagir comigo e quando os vejo minha primeira reação é fugir assustada. Sempre acordo em um determinado momento onde me aproximo de um riacho, mas só consigo chegar bem próximo de sua borda sem alcançá-la por completo.

Minha psicóloga sempre me disse que deveria tratar do caso por meio de hipnose, mas ainda acho esse um procedimento onde a subjetividade é quem domina a minha razão e acredito que nunca ficaria contente com o resultado sendo ele qual fosse, pois penso que em casos de hipnose a cura é puramente algo induzido pelo hipnotizador.

Mas durante o dia me considero uma pessoa bem normal, pouco sociável talvez, mas nada que hoje em dia seja novidade, culpa da avançada tecnologia eu diria, que torna a todos mais acessíveis, mas ao mesmo tempo mais distantes um do outro. Tentando fugir desses pensamentos existenciais diários, costumo visitar o Museu Histórico de Artes de minha cidade, é lá onde encontro meu “spa mental”, onde posso relaxar e me distrair dos problemas do mundo, um lugar onde a arte habita e me deixa conviver com ela sem julgamentos. E é justamente lá onde estão expondo neste mês os artefatos de guerra da tribo Kuttuna, que estou ansiosa para ver com meus próprios olhos aqueles objetos que meu avô tanto falava, enquanto narrava às histórias daquele povo extraordinário, naqueles que foram os melhores momentos de minha infância.

No dia seguinte, como era de se esperar, acordei cedo e ansiosa para a exposição, mas acabei tendo outros contratempos e não tive a chance de ver a abertura do evento, mesmo assim, consegui um intervalo perto do meio da manhã. Quando cheguei lá o local estava diferente, pouco iluminado e ninguém circulava pelos corredores além de um senhor de idade que cuidava da segurança do local e aparentava pouco se importar com minha presença. Então confesso que não demorou mais que alguns minutos para encontrar a exposição, nesse momento percebi algo que não me chamou atenção no exato instante, mas havia um estranho colar entre as armas tribais que destoava do tema belicoso da mostra. O que estaria fazendo ali? Seria uma referência a lenda que tanto gostava? Seria uma peça do vestiário Kuttuna? Mas não havia ninguém ali no momento para sanar minhas dúvidas, muito menos uma algo como uma etiqueta ou legenda que indicasse a origem de tão singular objeto.

Não resistindo à minha curiosidade quase infantil, admito agora que foi algo impensado no momento, mas tomada pela insanidade e abandonada pela razão, removi lentamente o vidro de proteção, que mais servia para evitar a poeira do que furtos, e toquei o estranho colar com a pedra esmeralda e senti um calafrio percorrer meu corpo, não conseguindo soltá-lo ou mesmo desviar meu olhar do interior da joia onde podia ver meu reflexo desaparecer lentamente, quase que tomada por um devaneio ou assim pensei inicialmente.

Mas logo que consegui desviar meu olhar do brilho da joia e da imagem que ela parecia me mostrar, fiquei atônita ao notar que não mais estava na sala do museu e nem ousaria tentar através de conjecturas tentar adivinhar onde realmente estava agora. Mas mesmo sem saber o que estava acontecendo, mantive-me firme e destemida, talvez fosse a estranha energia que acalentava meu corpo, como um abraço estranhamente amigável ou um belo e inesperado sorriso de um bebê. Mas o local onde me encontrava era a mais perfeita definição do vazio, não havia nada ali além da minha pessoa, não podia definir o tamanho daquilo, que droga, poderia ser infinito!

Então um som emergiu do silêncio eterno e literalmente rasgou algo que logo defini como uma parede e dessa ruptura surgiu uma criatura distinta. Possuía uma forma humanoide, mas aparentava ter seus membros mais alongados, um rosto sereno e com barbas longas, olhos cansados e longos cabelos tão negros como as asas de um corvo, seu corpo era coberto por algum tipo de pelugem que dificultava o detalhamento de sua anatomia. Permaneceu em completo silêncio por algum tempo que não saberia definir, mas pareceu-me longo o suficiente para classificar como perturbador, nesse período somente seus olhos me fitavam avidamente. E então sua voz se fez real como um trovão:

- O que é você? – falou a criatura com uma voz áspera.

- Meu nome é Annabel! – respondi com certo medo.

- Sei quem é você! Mas você sabe o que é? – questionou-me o ser. – Que espécie de animal é você?

- Eu não sou um animal, sou uma mulher! – respondi sem hesitar.

- Após tanto tempo, ainda continua uma tola! Todos os seres humanos são animais, só não sabem de que espécie! – respondeu-me.

- Se os humanos são animais então o que são os animais que conhecemos? – perguntei.

- Simples, são a representação mais pura do ser! São o molde dos homens, foram criados sem propósito e sem maldade, ao contrario, o homem surgiu por acaso, trazendo consigo o espírito das feras unidas ao seu cerne. Aquilo que vocês vulgarmente chamam de “alma”! – disse a criatura com um ar de grandeza.

- Então se me conhece, diga-me que animal eu sou! – provoquei com tom de desafio.

- Terás que lembrar-se sozinha! Nunca se esquece realmente o que somos, mas as vezes, nos desviamos daquilo pelo que queremos ser. Olhe atentamente em seu interior, nos cantos mais obscuros de seu ser e verá que a resposta sempre esteve lá! – orientou-me o ser com um tom de sabedoria que nem a idade poderia lhe conferir.

Fechando meus olhos e voltando-se completamente a mim, entrei em um estado de transe meditativo quase que instantâneo, nesse momento recordei-me de meu sonho, o sonho que tinha a muito tempo, mas dessa vez era diferente, possuía total controle da situação. Passei do estágio de expectador para me tornar protagonista de minha onírica fantasia. Então dessa forma, pude facilmente chegar até a borda do riacho e para minha surpresa, não desejava beber água dali, aparentemente meu objetivo sempre havia sido outro. Quando olhei para baixo, sob a água plácida vislumbrei sobre seu véu, um rosto conhecido, era a minha própria imagem refletida diante de meus olhos, mas a imagem logo ficou turva e pouco nítida, então insistindo com meus olhos busquei o que não estava claro, fitei atentamente a minha imagem e pensei sobre o que estaria por trás daquela figura conhecida. Só então vi o animal que estava diante dos meus olhos, não mais afogado em uma memória esquecida, mas agora emergindo do âmago de meu ser. Eu era uma grande e bela capivara, livre e serena em meu habitat natural. Tudo estava nítido nesse momento, minhas dúvidas estavam respondidas, senti-me preenchida por algum tipo estranho de sentimento que ao mesmo tempo em que me abrasava também me fazia sentir sem aquelas lacunas que habitavam minha existência.

Então voltei-me de minha meditação e novamente revi o ser diante de minha pessoa, ele estava sorrindo para mim nesse instante. Então me sentindo mais confiante, ousei lhe perguntar:

- Eu sou um animal, sou uma capivara! Mas então me diga qual o significado do meu sonho?

- Nossos sonhos são um instrumento para comunicarmo-nos com nosso cerne, podemos perder nosso rumo muitas vezes, mas se seguirmos confiando em nossos sonhos, não poderemos perder a capacidade de sermos aquilo que o destino nos fez! Você esta certa em afirmar que é uma capivara, mas esta errada ao dizer que é somente isso. A partir de hoje suas memórias retornarão em ritmo acelerado e descobrirá que é na verdade a reencarnação de Ascoldi, “O grande roedor”, que foi destinado a proteger as terras onde os deuses hospedaram os primeiros seres! Agora parta e faça de sua vida aquilo que lhe foi reservado! Assim ordena RAMOG! – Conclamou o ser agora nomeado, fazendo com que eu adormecesse instantaneamente.

Despertei de meu sonho ou minha visão, não sabendo ainda distinguir. Mas estava em minha casa, em minha cama completamente vestida e sem memória alguma de como teria chegado até ali, tinha duvidas se aquilo que presenciei havia sido real ou apenas um reflexo de minha atual fadiga mental em virtude de todo o peso do trabalho que vinha tendo nas ultimas semanas. Mas ao pender minha cabeça para o lado, constatei que havia algo em meu travesseiro, eram pequenos pelos marrons, sendo uma bióloga experiente logo notei que se tratavam de pelos de uma capivara.

FIM

Giomar Rodrigues
Enviado por Giomar Rodrigues em 09/12/2014
Código do texto: T5064164
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