Oz existe?

OZ EXISTE?

Miguel Carqueija


Caminhei rapidamente pelos longos corredores do museu, batendo compassadamente a ponta de magiplast da minha bengala envernizada, mantendo ritmo com meus passos, enquanto a minha sobrinha seguia ao meu lado, sem tanta preocupação com os próprios movimentos. Tínhamos deixado a sessão pré-histórica onde a garota apreciara esqueletos de desaparecidos sáurios — matéria de sua pesquisa escolar — e afinal nos vimos, inadvertidamente, num salão dedicado aos veículos do passado, todos anteriores à Guerra da Água.
— Veja aquilo ali, tio! — exclamou ela, apontando um objeto.
Correu até o mostruário onde se via algo parecido com uma bicicleta.
Parecido, não, era uma bicicleta. A tabuleta informava:

VELOSOLEX
Bicicleta motorizada
Início dos anos 1970

Ela olhava e olhava como se, para uma menina de onze anos, aquele pequeno veiculo fosse uma das maravilhas do mundo. Meio intrigado — pois os veículos motorizados tornaram-se raros desde o advento da antigravidade — procurei ler as letras menores:

“A bicicleta motorizada Velosolex começou a ser fabricada em 1941, na França, e é um dos veículos mais populares do mundo. Foi fabricada também no século XXI, até o advento das Guerras da Água, e já muito aperfeiçoada, funcionava a eletricidade. O inventor da Velosolex foi Marcel Mesmesson.”

O modelo mostrado era de 2012, de um atraente verde-garrafa.
— Pena que não se possa tocar nela — disse a minha sobrinha, olhando tristemente o cordão de isolamento. — Eu gostava de passear numa coisa dessas!
— Vamos, Cleise. Isso é coisa do passado. Agora tudo voa.
— Tudo não, tio! Os carrinhos de mão dos pobres pedreiros continuam terrestres! Ninguém se lembrou de botar antigravidade neles!
Pior que era verdade. Eu continuava vendo operários transportando material de construção em carrinhos de mão, e empapados de suor.
Afastamo-nos. Eu queria dar uma olhada na sala das bengalas, algo que eu apreciava muito, mas subitamente Cleise se desligou de mim e voltou para perto da bicicleta, numa atitude estranha. Parecia estar falando sozinha, e gesticulando.
Ocorreram alguns problemas mentais na minha família. Preocupado com aquilo, chamei Cleise em voz alta, aproveitando que a sala estava vazia. Ela olhou para mim, disse qualquer coisa para ninguém e correu até onde eu estava.
— O que você estava fazendo? — indaguei, perplexo.
— Ora, tio! Eu estava conversando com aquele garoto...
— Que garoto? Não tem ninguém ali!
Ela olhou para a bicicleta.
— Ele já foi...
—Você deve estar delirando — observei pacientemente. — Não havia ninguém. Agora é que parece que está chegando gente...
— Você não viu o garoto de verde?
— Não, eu não vi, e começo a ficar preocupado com isso.
Ela assumiu uma atitude de profunda reflexão.
— Se você não o viu, é que pode ser o Peter Pan. Havia uma poeirinha luminosa em volta dele. Sabe, ele me convidou para um passeio numa bicicleta como essa, só que voadora... mas agora não sei como encontra-lo.
Eu quase disse “ainda bem”. Curioso, pensei. Cleise nunca tivera amigos imaginários que eu soubesse. Iria começar a tê-los com onze anos, quando geralmente eles já desapareceram?

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Naquela noite eu tive um dos maiores sustos da minha vida. Como nas velhas histórias, uma garota escapou prendendo lençóis na grade da janela e descendo por eles. Quando constatei o sumiço de Cleise, dominou-me um pânico incomensurável. Eu era responsável por ela, perante meu irmão e minha cunhada, que permaneciam em Belo Horizonte. Eu morava no Resto do Rio, isto é, na parte restaurada após a Guerra da Água, onde levava vida de solteirão. Se a menina sumisse, que satisfação eu daria aos pais? Mas, ela era tão comportada e ajuizada que tal hipótese nunca passara pela minha mente.
Se realmente a tivesse avistado falando com um rapaz no museu, não duvidaria de um caso de sedução. Mas, ela estivera falando com o ar. No fim das contas, uma perturbação mental era coisa menos perigosa que um rapto. Vesti-me às pressas e saí para a noite no carro, na esperança de que pudesse avistá-la pelas ruas próximas, já que eu não sabia exatamente há quanto tempo ela fugira. Talvez fosse coisa de poucos minutos.
Dei voltas e mais voltas, ampliando aos poucos o âmbito da minha procura, mas afinal desisti. Teria mesmo de fazer aquilo que eu resistira quanto pudera: chamar a polícia. A coisa assim repercutiria até meu irmão e minha cunhada. Mas não me restava alternativa: a menina sequer levara o seu celular.
Eu estava desesperado quando voltei para casa. Você, se já viveu mais do que uns poucos anos, deve ter passado várias vezes por situações assim; todos nós em geral passamos. Na hora, é terrível.
Mas tive uma grata surpresa. A luz do quarto da garota estava acesa. Entrei e subi correndo a escada. Encontrei-a debruçada na janela, espiando alguma coisa.
— Onde você esteve? Por que fugiu daquele jeito? — perguntei, chegando perto dela. Não a maltratei; não sabia agir desse modo.
— Passeava na Velosolex... sabe, “ele” conhece o jeito de faze-la voar.
Toquei a testa de Cleise; ela percebeu o que me ia pela cabeça, e riu:
— Oh, para com isso! Não estou maluca e nem com febre! Olha lá, no ar, está vendo?
Ela apontou com a mão direita; eu olhei na direção e fiquei petrificado.
A bicicleta motorizada passava voando... sem ninguém nela.
Ninguém que eu visse.
Mas Cleide via e acenava em despedida.
— O que significa... tudo isso?
— Tio, eu falei que poderia ser o Peter Pan. Seja como for, não quis me dizer o nome. Eu posso ser uma criança, mas já li que existem dimensões misteriosas em volta de nós. Sabe por que ele me chamou para um passeio? Porque eu posso vê-lo, e porque eu gostei da bicicleta. Ele a pegou “emprestada” e agora vai devolvê-la ao museu.
— E ele só queria isso... leva-la a passeio?
— Só, só! Você acha, mesmo, que um ser mágico vai ter os mesmos pensamentos de um rapaz do nosso mundo?
Então eu me lembrei das histórias que ela contava aos pais desde os cinco anos, e eles me repetiam, divertidos com a imaginação da filha: como ela ia parar em terras onde existiam dragões, duendes, fadas, unicórnios e outras criaturas...
Talvez não fosse invencionice de criança. E, nesse caso, era algo que dava medo.
— Acho melhor... — balbuciei — não aceitar mais esses convites. Pode ser perigoso.
Fui me deitar, com a incômoda impressão de que ela não ligara muito para o meu conselho.


(imagem downloadwallpapers)