Era uma vez...
O rosto do Rei estava estampado em cartazes por toda a cidade. Sua expressão era severa com os olhos negros encarando os pedestres, a barba negra e branca mal feita, vestido em sua armadura vermelha e com a espada apontada para frente. As palavras vermelhas e contornadas de preto era o motivo da fúria do Rei.
“Magia é do demônio. Junte-se a mim na caça às criaturas que desejam nos corromper. Denuncie-os. Mate-os. É a nossa vez de reinar”.
Sera respirou fundo e abaixou a cabeça. Pegou uma latinha de refrigerante do chão e jogou no saco de lixo enorme que arrastava pelo centro da cidade. Demorou alguns segundos para voltar a posição normal (suas costas estralavam quando entortava seu corpo para fazer alguma coisa. Eram os anos cobrando suas dívidas.)
Depois, continuou a andar.
Tinha 73 anos e já vivera momentos piores, embora também já vivera momentos muito melhores. Há 10 anos, ela era considerada uma das melhores curandeiras da cidade com uma modesta loja no centro da cidade ao lado de uma padaria e em frente a uma perfumaria. Lá ela vendia poções para praticamente tudo: tanto para aliviar dores de cabeça quanto para deixá-lo absurdamente sortudo por algumas horas. Havia livros também, muitos livros e muitas visitas. Havia pessoas desesperadas, pessoas curiosas, pessoas desconfiadas e pessoas experientes. Sera tinha tudo que podia querer e seus dias eram passados dentro do seu laboratório ou andando pela cidade ou até mesmo no campo, visitando as fadas e rindo dos centauros – criaturas bobas e tão orgulhosas! Agora tudo que tinha era uma casa minúscula feita de madeira velha e seus dias eram passados no lixão procurando por comida e coisas para vender ou catando latinhas espalhadas pelas ruas na esperança de vendê-las e conseguir comprar o jantar.
Sera sabia que seu destino tinha sido melhor do que muitos que partilhavam de sua antiga profissão. Alguns foram queimados na praça, outros jogados na prisão e torturados, outros simplesmente desapareceram. Às vezes, Sera se esquecia de quem era agora e praguejava para a figura do Rei nas televisões e cartazes, apenas para ser cutucada por algum estranho.
“Há guardas em todos os lugares, senhora. Cuidado”.
Ela queria gritar, chamar a atenção dos soldados, amaldiçoar alguns e rir enquanto fosse presa, mas pensava em sua casa e no que ela abrigava, então respirava fundo, abaixava a cabeça e continuava a catar lixo.
Era verdade: haviam guardas em todos os lugares, mas eles não se importava com Sera, uma velha senhora que se arrastava pelas ruas, sempre suja e cheia de tralhas, com um chapéu de aviador, um longo vestido desbotado com um casaco de pele sintética, os sapatos marrons furados que permitiam que se visse as meias azuis também furadas e com poucos dentes na boca. Eles procuravam por jovens bruxos e bruxas, fadas, centauros, alquimistas, shape-shifters e qualquer outro ser que não fosse humano e “normal”. Uma velha sem teto não os preocupava nem um pouco.
Para Sera, isso era bom... Mais ou menos bom... Na verdade, ela não sabia bem o que achava daquilo.
Catava latinhas duas vezes na semana: no sábado e na segunda. No sábado para poder comprar comida para o domingo – já que nada abria no domingo santo. E na segunda por que o lixão não abria na segunda também.
O resto dos dias passava catando lixo.
Era incrível o que as pessoas jogavam fora. Às vezes achava um sanduíche meio comido, mas não estragado e o devorada, às vezes achava outros restos e os guardava. Achava caixas de leite vencidos – mas não vencidos há muito tempo, então ainda conseguia bebê-los.
Achava roupas, sapatos e até pentes de cabelo e escovas de dente. Recolhia tudo que podia. Achava brinquedos, livros, cadernos e alguns lápis. Achava folhetos, algumas bijuterias velhas e quem diria... Achava até bebês.
Conseguiu achar um velho centro de reciclagem que ainda não tinha fechado. Vendeu as latinhas e pegou o dinheiro. Agradeceu o homem que lhe deu um extra de 10 unidades e foi embora. O dinheiro era suficiente para um pacote de pães e uma manteiga – se desse sorte de alguma estar vencendo, pois o dono da padaria normalmente lhe dava um desconto generoso.
Quando ainda tinha a loja, seu lugar favorito era a padaria ao lado. O dono era um senhor gordo com um enorme sorriso e sua esposa baixinha adorava soltar piadinhas o tempo inteiro. Sera se perguntava o que tinha acontecido com os dois. O filho do casal era estudante de alquimia na Universidade de Methlon. Quando fechara sua loja, a padaria tinha sido queimada pelos soldados do Rei.
Comprara os pães e uma manteiga vencida. O céu estava negro e a chuva já começava a cair. Ela correu com medo de perder os pães.
A luz da casa já estava acesa e Sera já estava molhada quando entrara no lugar. Soltara um palavrão e depois ouvira risos.
- A chuva está bem fria. – ela disse – Vocês fariam o mesmo no meu lugar.
As crianças se olharam e riram.
Era cinco. Dois rapazes de 8 anos, uma menina de 7 e uma de 6, a mais nova tinha 3.
Um deles, o rapaz com os óculos de armação negra remendada, se levantou do colchão velho no chão, deixou o livro rasgado de lado e se levantou. Ele se aproximou com um sorriso divertido e pegou os pães.
- Ainda tem água quente. – ele disse. – Nós tomamos banho muito rápido para sobrar para você.
Sera sabia que ele estava mentindo. Ela sabia que um deles provavelmente tomara banho frio para que a água quente sobrasse. Ela também sabia que eles faziam rodízios – com exceção da menina de 3 anos – e todo dia um ficava com a água fria e deixava o resto de água quente para ela.
- Obrigada, Matheus. – ela disse sorrindo. Entregou o pacote para ele e o responsabilizou de preparar o lanche para os outros.
Leon argumentou que era tão responsável quanto Matheus. Sera riu e disse que ele era o segundo em comando e que Matheus passaria a manteiga e Leon distribuiria os pães.
As meninas, Camille e Larissa, só reviraram os olhos e continuaram com o jogo de tabuleiro que Sera achou no lixo na semana passada. A mais nova, Maia, dormia.
Achara os cinco no lixo. Alguns mais velhos do que outros e cuidara deles como se fossem dela própria. Eles estudavam numa escola pública da região para crianças carentes e todo o material escolar deles era achava no lixo ou doado pela prefeitura. O Estado não queria saber deles e só se importava se eles iriam a escola ou não.
A assistente social, Miriam, disse que infelizmente a fila de crianças para adotar estava imensa e que não havia mais espaço nos abrigos. Ela às vezes conseguia uma cesta básica para Sera como auxilio e a olhava com muito pesar.
- São tempos difíceis. – disse Miriam.
Sera concordava.
Tomou um banho quente no pequeno banheiro separado da cozinha apenas por uma cortina remendada e vestiu sua camisola.
- A casa está trancada, crianças? – perguntou assim que abriu a cortina.
Foi Camille que respondeu. Sua boca sem dentes se curvou num sorriso.
- Eu fechei! Está trancadinha! O Matheus confirmou.
O rapaz de óculos assentiu e continuou fazendo os sanduiches. Depois, todos foram para a sala/quarto. Havia uma velha poltrona reclinada que Leon e Matheus acharam um dia no lixo e com a ajuda de um vizinho trouxeram para Sera.
Ela se sentou na poltrona e comeu o sanduiche em silêncio, só ouvindo o tagarelar das crianças ao recontar seus dias.
- O professor de ciências disse que eu tenho muito talento! Ele disse que eu vou adorar química e física! – contou Camille com orgulho. Sera concordava, se o mundo ainda estivesse certo, Camille seria uma grande alquimista.
- O professor de literatura adorou o conto que eu fiz para você, Sera! – exclamou Matheus. – Ele disse que eu tenho muito talento e deveria escrever mais! – ela não sabia do conto e disse que queria muito lê-lo quando o professor devolvesse.
- Eu gosto de desenhar. – disse Larissa abaixando a cabeça. – mas a professora não gosta muito do que eu faço. Ela fala que é bizarro... Seja lá o que isso significa.
- A arte é sua, não deixe que ninguém diga se está certo ou errado. Desenhe o que você quiser, quando você quiser, da forma que você quiser, tudo bem, minha princesa?
Larissa abriu um grande sorriso cheio de dentes falhos e assentiu.
- Tudo bem!
Maia, finalmente acordada, mordiscava o pão e admitira que gostava de “getografia”.
- É geografia. – disse Leon.
- Getografia!
O mais velho revirou os olhos e os outros riram.
- Os professores não gostam de mim. Falam que eu sou arrogante e mandão, só que eu tiro as melhores notas, então eu posso! – disse Leon terminando o pão e estufando o peito.
Sera riu.
- Hora da história? – ela perguntou.
Os cinco brilharam e se aproximaram da poltrona. Maia sentou-se na poltrona ao lado de Sera, Leon sentou-se numa dos braços da poltrona e Larissa no outro. Camille se sentou em frente para Sera.
- Matheus?
O rapaz tirou algumas tralhas que estavam em cima de um baú, que guardava o livro de história de Sera. Pegou o objeto e fechou o baú, se esquecendo completamente de voltar tudo ao lugar. Depois correu para o lado dos outros. Entregou o livro para Sera e se sentou ao lado de Camille.
Ela pegou o livro e abriu um sorriso.
- Estão todos aqui?
Um miado vindo de fora da casa fez Camille correr até a porta e deixar o gato laranjado e ensopado molhar. Ela o pegou no colo e o enrolou na própria blusa.
- Agora estamos todos aqui.
Ladrão começou a ronronar e se enrolou mais em Camille. Matheus cobriu os dois com uma manta velha e Sera abriu o livro.
- Sobre o que será a história de hoje? – perguntou Leon olhando para as folhas amareladas e cheias de palavras.
- Príncipes e dragões! - exclamou Matheus.
- Princesas e grifos! – disse Larissa.
- Gatos! – disse Camille abraçando Ladrão.
- Guerra! – disse Leon erguendo os braços.
- Bolo! – disse Maia e soltou uma gargalhada.
Sera riu.
- Tudo e mais um pouco! Só não garanto o bolo, Maia.
Passou as duas mãos no livro e sussurrou: Imaginarium. Os olhos das crianças brilharam mais uma vez e Sera riu.
- Sejam bem vindos ao mundo da imaginação.
As palavras sumiram e em seu lugar um imenso castelo branco surgiu, pássaros voavam ao redor das torres e uma lua minguante brilhava no céu sendo rodeada de estrelas.
- Era uma vez cinco irmãos... Cinco irmãos destinados à grandeza. Uma alquimista, um bardo, uma pintora, um rebelde e um anjinho. Havia também uma bruxa velha e cansada, mas que amava muito os irmãos e os seguia fielmente em sua jornada. Ela faria qualquer coisa por eles. Qualquer coisa, inclusive ficar numa cidade em ruínas por que ela não conseguiria protegê-los dos perigos da estrada. Ela os amava tanto que não saberia o que fazer caso os perdesse e portanto, lutava sozinha contra todos os monstros que apareciam para eles. E assim, os irmãos prosseguiam em suas viagens com a bruxa os seguindo.
- Eu gosto da bruxa! – exclamou Maia abraçando Sera.
- Que bom, meu anjo. Eu também gosto dela.
À medida que falava as imagens no livro iam se modificando. As imagens dos cincos irmãos, a velha bruxa, a estrada cheia de árvores e perigos, o grande dragão, as batalhas, tudo era registrado no livro.
As crianças ouviam e viam fascinadas, e por fim, quando a chuva
diminuiu, Sera decidiu por terminar a história.
- No fim, eles voltaram para o vilarejo onde comemoraram a noite inteira a aventura bem sucedida. Ah, havia muito bolo e o anjinho nunca esteve mais feliz! – Maia soltou um gritinho animado. - E fim. Hora de dormir, crianças. Não deixem o Sandman pegá-lo acordados.
Reclamando, cada um foi para seu canto. Matheus e Leon dormiam um ao lado do outro. Maia dormia no meio com Larrisa ao seu lado. Camille dormia abraçada a Ladrão, que ronronava grande parte da noite.
Sera se reclinava no sofá, levantava os pés e dormia encarando para a porta. Não era novo o fato dos soldados do Rei invadirem casas e sequestrarem as crianças, e como Sera dissera na história: ela faria qualquer coisa por aquelas crianças. Qualquer coisa.