Velha Alegoria
Tentando prolongar a estadia da espécie na infinita linha do tempo, o último dragão vê os primeiros raios de sol de mais um dia alcançando seu cantinho em sua caverna escura.
Os dragões que antes dominavam os céus eram nada mais que lembranças de tristes histórias e sábios conselhos de que o mundo estaria perdido se um dia os dragões deixassem de existir.
Acreditando que era a única esperança de fazer algo bom pelo mundo, um certo dragão adiou a extinção se escondendo nessa caverna em uma montanha alta longe de tudo e de todos, esperando pelo momento em que faria a tal diferença que seus finados amigos profetizaram.
O dia prometia passar, como todos os outros, quando uma suave voz deslizou fria pelos túneis de sua caverna:
-Por aqui, estamos quase lá!
Antes de qualquer pensamento tomar forma, o dragão se viu encontrado por três crianças, que o olhavam timidamente curiosos.
-Eu não disse ? Aí está ele...- Disse uma das crianças.
-O que devo fazer?- pensou o dragão- Devoro todos antes que contem que eu estou aqui? Se me descobrirem estarei morto com certeza...
Antes que pensasse no que fazer, uma voz infantil e angelical lhe perguntou:
-Você é um dragão?
Com medo de que só o poder de sua voz pudesse matar a todos, o gentil dragão apenas aproximou seu rosto das crianças, tentando expressar o que ele acreditava ser um sorriso humano.
-Corram !- disse o menino mais velho - Ele vai nos devorar ! - continuou, mas com uma estranha incerteza em suas palavras.
Sozinho novamente o Dragão se lembrou dos sábios conselhos que ouvira em sua juventude milenar.
"Cuidado com os humanos, eles serão os responsáveis pela perdição do mundo."
Soava como bobagem após ter ouvido vozes tão suaves de criaturinhas tão doces e curiosas.
-Que bom que não ataquei os humanos.- pensou - Ninguém acreditará caso eles digam que viram um dragão em um lugar tão longe. Se eu os tivesse devorado, certamente viriam procurá-los e eu teria problemas.
O dia terminou de passar sem novas surpresas e a lua apareceu para cantar canções de ninar para o sol. O dragão se preparava para sonhar que voava livre com outros dragões.
- Então era verdade! - disse uma voz suave porém grosseira que despertou de repente o dragão de um sonho agitado.
Antes de contar quantas crianças haviam na caverna, sua grossa pálpebra teve que se fechar para que uma pedra não acertasse seus olhos amarelados.
- Morra dragão!
- Você não vai atacar o nosso castelo!
Diziam enquanto a gentil criatura se empenhava em se esconder atrás de sua asa sem que seus movimentos abalassem a estrutura da caverna.
-Precisarei devorá-los - pensou o Dragão temendo ser descoberto e impedido de cumprir seu papel de simplesmente aguardar o dia em que um dragão seria necessário para salvar o mundo.
Mas os impactos cessaram, sua asa não sentia mais o áspero das pedras. Percebeu que não havia mais ninguém com ele além da dúvida. Fizera o certo ?
Os dias não passaram mais tão tranquilos como os dos últimos séculos. Seus sonhos eram temerosos e aterrorizantes. Não se via mais voando com seus amigos de outrora, e sim como se queimasse em seu próprio fogo.
Não podendo mais voar pelos céus em seus sonhos, o dragão considerou sair da caverna como a milênios não fazia. Sem seus sonhos, a caverna era nada mais que uma prisão escura e solitária.
Era noite, mas o tempo logo traria as horas frias que antecediam a aurora. Outro dia incerto estava por vir.
Logo um tom esverdeado acariciava o céu antes estrelado com o toque fresco do amanhecer.
Um longo suspiro foi tudo o que teve tempo de fazer quando uma voz firme como um trovão ricocheteou pelas paredes da caverna:
- Então era verdade !
Ao se virar pra olhar de onde veio a voz, se deparou com dúzias de cavaleiros.
Estavam todos ajoelhados, exceto um.
Este carregava um estandarte com belas cores, e se aproximou imponentemente do dragão.
- Você é o último dragão vivo, oh criatura majestosa! Os rumores se confirmam. As lendas são tão verdadeiras quanto o chão em que piso. Esperamos por esse dia desde antes do nascimento dos pais antes de nossos pais. Nosso povo o aguarda. Daremos uma festa, teremos um belo banquete. Junte-se a nós!
A Dúvida penetrava friamente em suas duras escamas, mas seu corpo nunca estivera tão desconfortável entre as paredes da caverna. Sentiu vontade de ganhar os céus, como fizera tantas vezes em seus sonhos. Era chegada a hora ? A Grandeza dos dragões finalmente tivera sido reconhecida ?
Suas dúvidas eram como grilhões que o prendiam nas pedras frias e negras das paredes, mas a vontade de ver o mundo de cima como nos sonhos fizeram com que essas correntes se partissem e em um levantar repentino o dragão voou.
Sentiu as nuvens acariciarem seu corpo como nem seus sonhos puderam fazê-lo sentir. Olhou pra baixo e viu a montanha, viu os campos verdes, e ao horizonte viu o mar. Fechou os olhos e pensou que faltava apenas seus amigos dragões voando ao seu lado. Não perdeu tempo em ganhar velocidade e sentir o vento em suas asas. Voou acima, abaixo e por entre as nuvens, até que viu o castelo grande e enfeitado que supôs ser o que o aguardava. Se preparou para receber a tarefa que esperou a vida toda, e desceu para entre as muralhas com uma leve alegria em seu coração.
Ao tocar o solo com suas pernas fortes, lembrou de repente que traíra os conselhos de todos os seus amigos. Ao mesmo tempo viu que não havia festa, não havia banquete, não havia música ou sorrisos.
Correntes foram disparadas contra suas asas e pernas, pouco antes de uma rede de metal o cobrir por completo prendendo-o ao chão.
Sentiu o seu fogo há tanto apagado se acendendo na garganta, e sabia que era capaz de derreter tudo o que o ameaçasse. Mas antes de exalar sua baforada infernal, uma balista penetrou com facilidade as escamas de seu pescoço extinguindo a chama que o libertaria da sua prisão de aço.
-Pegamos ele!- Disse uma das milhares de vozes que urravam com sua derrota.
Antes de a escuridão tomar conta de suas últimas memórias de sonhos alegres, o Dragão viu que o mundo era muito mais bonito do escuro de sua caverna.