Depois Dos Deuses - Cap. I - Vida Seca

Esta história tem início no Prólogo, se quiser acompanhar, este é o link: http://www.recantodasletras.com.br/contosdefantasia/5030187

Sem mais...

Parte Um – Sete Dias

Capítulo Um

Vida Seca

Tão logo o sol estava, e lá estava também o senhor Jerônimo, acordara cedo e esperançoso de que Valquíria estivesse melhor, vestia uma cueca de algodão e uma camiseta regata encardida e que um dia fora branca, esta não acompanhou o crescimento da barriga do velho homem deixando-a um pouco amostra, principalmente quando levantava os braços. Apesar disso o homem não se importava com sua vestimenta vergonhosa, o sol nem bem havia nascido e com toda certeza ninguém passaria por ali numa hora daquelas.

Com mãos apressadas Jerônimo destrancou o trinco de ferro já bem enferrujado, ao ouvir um espirro vindo de dentro da construção deu um salto e depois de dois passos já estava parado de novo, desta vez apenas encarando Valquíria que lambia o próprio focinho repetidas vezes. No primeiro minuto em que o homem ficara ali, desolado, a vaca espirrara por duas vezes e pareceu profundamente incomodada com a presença do dono, mugia e fazia menção de avançar entre um espirro e outro.

Uma lágrima quis escorrer do rosto do velho homem que a reprimiu no mesmo instante, a uma semana inteira ele se levantava naquele mesmo horário e experimentava aquela mesma agonia, ver seu último animal com os ossos quase rasgando a carne de tão magro, cada dia mais magro e sempre piorando, cada dia mais agressivo e espirrando além de outros comportamentos que nenhuma vaca saudável teria. Os pelos negros já não tinham vida e Jerônimo por vezes duvidava que aquelas patas tão finas pudessem se aguentar de pé, os vizinhos não davam mais nem uma semana para Valquíria e odiava ter de concordar com eles.

Não, prometera a si mesmo não chorar naquela maldita manhã, aceitaria o destino preparado para ele como um homem.

Com cuidado, Jerônimo abriu a portinhola libertando o animal para pastar na terra seca que era seu grande quintal, ainda havia algum feno, mas nenhuma água. Um pouco para o homem e sua família talvez, mas não mais do que isso, sabia que já havia tirado mais do que deveria de sua mulher e filha e não poderia deixa-las com sede de novo.

Com uma expressão vazia o homem se dirigiu ao assento de madeira bem no meio do quintal, só era possível sentar-se ali naquele horário, ou a noite, já que o sol escaldante do dia tornava aquele um péssimo local para se construir um banco, mas o sol ainda estava longe de sua potência máxima e o céu naquele momento era apenas uma imensidão azul arroxeado cortado por algumas linhas alaranjadas, lindo era ver algo como aquela manhã. Mas Jerônimo não prestava a menor atenção ao céu, apenas tinha olhos para seu último animal caminhando debilmente por entre as arvores desfolhadas do terreno, a cabeça balançava de um lado para o outro sem parar, assim como Jerônimo fazia quando uma ideia terrivelmente ruim lhe vinha a mente, balançava como se dissesse não para tudo, as orelhas grandes balançando livremente junto e olhar perdido e mais humanos do que muitos que Jerônimo já tinha tido a chance de observar.

- Você anda negando um bucado de coisa não tá? – resmungou o velho perguntando-se por que diabos ela fazia aquilo, por que diabos todos os outros animais fizeram o mesmo antes de morrer.

Perguntando-se questões tão tolas, Jerônimo nem ao menos notou a aproximação de um homem que mancava com um pé de madeira no lugar do pé esquerdo, seu quintal a muito já não tinha um portão e no pequeno vilarejo em que moravam não haviam tais parcimônias como esperar do lado de fora.

- Você acha que ela está melhor? – mesmo com a voz tranquila do visitante, Jerônimo deu um pulo com o susto.

- Diabo Emmet! – gritou ele colocando a mão no peito, imaginou que um princípio de infarto lhe acometia. – Colocou um amortecedô nessa desgraça de pau que você usa no lugar do pé?

Emmet não pôde deixar de gargalhar, mais alto do que o horário permitia era bem verdade, logo parou quando se lembrou do horário.

- O que faz aqui uma hora dessa? Caiu da cama homem?

- Queria ter conseguido dormir. – o sorriso logo foi deixado de lado por Emmet que se sentou na outra extremidade do banco que devia ter pouco mais de um metro.

Jerônimo não respondeu, ao invés disso apenas prosseguiu observando a vaca que permanecia da mesma forma. Só depois de um minuto Emmet continuou.

- Acabou tudo.

- Tudo o que? – a voz de Jerônimo já não era mais exasperada, agora era um misto de frieza com impaciência. Sabia do que se tratava, não queria ouvir mas sabia a frase seguinte de Emmet, sabia também que logo seria ele a dizer aquilo para algum outro vizinho que pouco se importaria com seus problemas, exatamente como ele estava fazendo naquele momento.

- A agua, comida, tudo. – Emmet tentava olhar para o vizinho que nunca fora exatamente um amigo, mas percebia o quanto era inútil.

Jerônimo continuou sem responder, nem ao menos olhou para o perneta cabisbaixo ao seu lado, suas mãos esfregavam a própria coxa peluda como se um frio subitamente tivesse lhe atingido.

- Tenho que me apruma. – foi o que conseguiu responder após um curto período. – Tô só de cueca.

O velho Jerônimo se levantou e devagar dirigiu-se para a porta dos fundos da sua casa, Emmet não se deu ao trabalho de olhar para trás, sabia o quanto aquele homem não valia a pena.

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Nicolli acordou com o som da porta de madeira, e com Dara lambendo sua boca e nariz com sua língua excessivamente molhada, nunca teve o sono muito pesado e fazer barulho àquela hora, acordar a cachorra era tudo o que precisava para se levantar. Bocejou largamente com os dois braços estendidos e a cachorra não fez o mesmo, apensa balançava o rabo de um lado para o outro e parecia sorrir com a língua de fora. Ao abrir a porta as untas rangeram, mas o piso de emadeira não o fez como era natural naquela casa já que andava cada dia mais magra. Seu quarto dava de frente para a sala/cozinha da humilde residência e a visão que teve ao deixar o cômodo não foi de forma alguma agradável. Seu pai, trajava apenas as roupas de baixo e aquela camisa sem mangas horrível e que sua mãe por vezes quis jogar fora. Esparramado em sua velha poltrona o homem tornava a última garrafa de aguardente que havia na casa, aquela que ele comprou se esquecendo que tinha uma filha e uma esposa que precisavam comer. Quis ignorá-lo e ir direto para a cozinha, Dara conseguiu mas para ela o plano não deu certo.

- Volta pra cama, ainda é cedo. – a voz ainda não estava embargada, ele havia começado agora.

- Sem sono.

Nicolli respondeu e nem ao menos olhou para trás, tentou seguir o caminho mas não funcionou também.

- Eu disse para voltar para a cama!

Dessa vez Jerônimo usou toda a potência vocal que possuía, a menina que a pouco tempo completara dez anos deu um pulo com o susto e sua cachorra fez o mesmo, igualzinho a seu pai quando o vizinho o abordou minutos antes, e correu para o quarto, a fome podia esperar afinal.

Ela odiava os dias que começavam daquele jeito, “Se começar ruim, vai terminar ruim.” Era o que sua mãe costumava dizer, e invariavelmente ela acertava nas previsões de todas as desgraças que ocorreram nos últimos tempos. Desde os homens do rei virem buscar os garotos da vila para morrerem na Grande Guerra até a chuva que não vinha a mais de um ano. Antes de dormir, enquanto as duas estavam sozinhas em casa e Jerônimo bebia sozinho por algum canto do vilarejo, ela havia dito que a pobre Valquíria não passaria da próxima manhã, seria esta a razão da bebedeira matinal do pai?

Nicolli só ousou colocar o pé para fora do quarto algumas horas depois, ao ouvir a forte batida na porta da frente da casa, que indicava que o pai se cansara de beber debaixo do próprio teto e provavelmente beberia em algum outro lugar, sua mãe Rousy fizera o mesmo, as duas acabaram abrindo as respectivas portas de seus quartos ao mesmo tempo e deram de cara uma com a outra, Dara não prestou a tenção a mulher excessivamente magra e excessivamente baixa e tratou de correr para o grande quintal nos fundos, onde estava a vaca doente. Com um balançar de cabeças mãe e filha se cumprimentaram indo logo em seguida em busca de algo que pudesse acalmar o estômago. Meio pão foi tudo o que acharam na pequena despensa de madeira que ficava bem ao lado da velha e mal cheirosa poltrona de Jerônimo, que um dia fora de um coro avermelhado mas que na presente situação tinha uma cor que não lembrava nada, além dos rasgos ocuparem mais espaço que o couro em si. Fora o próprio Jerônimo que a construíra muitos anos antes, quando parecia-se muito com outro homem, um melhor que aquele. Rousy deu dois quartos do pão para Nicolli que dividiu com Dara que aceitou de bom grado e quase levou a parte que não era dela, e a mãe comeu uma pequena parte do que restou.

- Por que mãe? – perguntou Nicolly com toda a indignação que uma criança de dez anos e olhos grandes e verdes podia sentir. – Ele não pensa em você, por que pensar nele?

Rousy sorriu um sorriso desdentado em resposta, engoliu o pequeno pedaço de pão e cuidadosamente embrulhou o que restou e guardou para quando seu marido bêbado chegasse. Mal o guardou e seu coração quase subiu pela boca com o susto.

- DESGRAÇADO! DESGRAÇADO!

- É o seu pai!

Correndo a mulher escancarou a porta dos fundos sem se importar se ela estaria inteira mais tarde, Nicolli estava logo atrás e qual não foi a sua surpresa ao ver seu velho pai ajoelhado ao do cadáver de Valquíria. Dos olhos verdes do homem escorriam lágrimas e de sua boca voavam maldições para os quatro ventos além de saliva que molhava a carcaça da pobre vaquinha.

- MALDITO SEJA! – esbravejava Jerônimo, a garrafa de aguardente estava caída ao seu lado derramando na terra seca o pouco liquido que ainda restava nela. – ELE MATOU A MINHA VACA!

Lucas Amirati
Enviado por Lucas Amirati em 14/11/2014
Reeditado em 14/11/2014
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