Depois Dos Deuses

Prólogo

- Então os demônios do oriente vieram e comeram a cabeça dele? - perguntou a pequena, apenas com os olhos arregalados a mostra, o restante de seu corpo miúdo já estava debaixo da coberta azulada desde que percebera que o pai contaria uma daquelas histórias aterrorizantes.

A luz azulada da lua cheia iluminava o pequeno quarto, e apesar do medo que a menina possuía de insetos o pai insistiu para que a janela ficasse aberta enquanto contava a história, além de ser uma daquelas noites abafadas de verão, o intuito maior era o de assustar a filha em um momento de suspense, este que logo chegaria.

- Não. Acontece que aquele não era um homem qualquer, e os demônios não conseguiriam comer a cabeça dele tão facilmente. - respondeu o homem num sorriso fraterno para a pequena que apenas esboçou um “Aaaaa.” típico de quando as crianças entendem algo. - Após cavalgar dias e dias com seu cavalo branco chamado Pé de Pano, o príncipe encontrou finalmente o castelo do Rei Leão! E não era um castelinho qualquer não, era o maior castelo de todo o Oriente, protegido por uma centena de demônios gato que conseguiam pular cinco metros para cima e correr mais rápido que um cavalo!

- Noooossa papai. - os pequenos olhos azuis pareciam querer escapar do lugar onde estavam, o pai não conseguia segurar o sorriso ao vê-los arregalados mais e mais a cada frase. - E eles eram grandes?

- Humpf, se eram! Cada demônio gato tem o tamanho de dois homens, e garras mais afiadas que qualquer espada. Mas o príncipe era um guerreiro valente, e com seu cavalo negro como a noite, ele adentrou no castelo e sem descer de sua montaria ele passou a espada nos demônios que vinham em sua direção.

- Mas o cavalo não era branco papai?

- Branco, você não está prestando atenção não é? Era negro querida, eu sempre disse que era negro.

- Hum...

- Foi uma batalha incrível, depois de horas estraçalhando centenas de inimigos, o príncipe finalmente pôde entrar no castelo em busca do Rei Leão e a da princesa raptada.

Ao ouvir a porta do quarto se abrindo o pai interrompeu seu pequeno conto, uma mulher de longos cabelos castanhos e vestido simples entrou no quarto com uma expressão não muito amigável, mas que não chegava a ser de mal humor.

- Acho que quando ela pediu uma história sobre princesas, não era bem assim que ela imaginava que seria... - censurou a recém-chegada. - Não vá reclamar quando ela resolver dormir na nossa cama.

- Mas essa é tão bonita. - tentou explicar o pai, com um sorriso torto no rosto e com uma súbita coceira na nuca, não fazia ideia de que estava sendo ouvido por mais alguém. - No final ele resgata a princesa.

- Verdade? - perguntou a filhinha já sentada, o quarto não estava mais tão escuro agora que a luz das velas do outro cômodo entravam pela porta aberta.

- Viu, você me fez contar o final! - Reclamou o pai, mas mantendo o bom humor, a trapalhada fez com que a esposa e a pequenina soltassem uma sincera gargalhada, a segunda riu muito mais pelo alivio de saber que o príncipe salvaria a princesa do que por qualquer outra coisa.

- É hora de dormir querida. - anunciou a mãe.

Gemidos de protestos foram ouvidos durante os cinco minutos seguintes mas, no fim das contas a criança concordou em ficar pensando sobre a história inacabada que acabara de escutar olhando para as estrelas naquela noite sem nuvens, era uma ótima forma de cair no sono no fim das contas.

Quando o casal ficou a sós, naturalmente todos aqueles sorrisos se desvaneceram no ar, como se nunca tivesse estado ali. Como se fosse magia, ao saírem do pequeno cômodo que servia de quarto para a filha as gargalhadas e trapalhadas do pai deram espaço a um ar de preocupação. Pensamentos amargos que permeavam os pensamentos do casal afinal, quando o silêncio vinha àquela hora da noite o estômago começava a dar sinais de que precisava ser preenchido com alguma coisa e a lembrança de que não tinham nada para comer no dia seguinte vinha como um soco. Uma história ao invés de um prato de comida funcionara durante duas noites seguidas, mas o pai sabia o quanto não resolveria por mais tempo.

- Eu vou fazer alguma coisa amanha, vou arrumar alguma coisa, eu prometo. - falou o marido, a voz completamente diferente da que contava histórias sobre príncipes para a filha.

- Sei que vai.

Não era a primeira vez que o homem prometia coisas como aquelas, por vezes ele falhou em cumpri-las mas não seria tão má a ponto de lembrá-lo de suas falhas, até por que sabia que estavam naquela situação por conta de forças que nada tinham a ver com eles. Gente simples como eles eram apenas grãos de areia no grande jogo que os deuses preparavam para o mundo. Sabia o quanto era privilegiada por não ter perdido o marido para a guerra, a maior parte das mulheres do vilarejo não haviam tido a mesma sorte, perderam, mal sabia dizer quantas perderam seus filhos e seus homens para irem até o oriente morrer. Ter nascido com um pé a menos finalmente tinha servido para algo mais que não só dificultar a vida no campo do pobre homem.

Deitados, alguns minutos depois, o silêncio continuou. O marido encarava a escuridão com olhos molhados enquanto a esposa remoía em sua mente as mesma preocupações que remoeu o dia todo.

- Você acha que vai acabar logo? - foi a mulher que cortou o silêncio, sabia que o marido não estava dormindo já que não roncava.

A resposta demorou um pouco mais do que ela imaginava.

- Não sei, o ancião do templo vive dizendo que o tempo é diferente para eles. Vai saber se essa guerra não é apenas uma birra entre eles num café da manha?

- Trinta e cinco anos num café da manha?

- O tempo é diferente pra eles... - era tudo o que ele conseguia pensar naquele momento. - Além do mais, o ancião lê no livro sagrado todas as semanas que, quando a guerra acabar, o mundo também acaba. Você não devia ter pressa.

- Malditos sejam eles então. - resmungou a mulher em resposta fazendo seu marido quase cair da cama num salto.

- Não diga isso pelo amor que tem a sua filha! Você quer morrer? - Teve de levar as mãos à boca ao perceber que havia gritado, não queria acordar sua filha.

- Ele não se importa com agente, por que eu deveria me importar com ele?

- Por que a guerra é aqui na terra, mas é no céu também. O ancião disse no templo que a força de deus é a fé que temos nele, e que se não temos fé, ele não tem força e assim Laab vai acabar vencendo a guerra no céu!

- E de novo, por que eu deveria me importar?

- Por que você não pode morrer, pense na nossa pequeninha ali no quarto do lado, o que ela faria sem você? Se Laab matar ele, ai nada pode proteger nosso lado do mundo, nada impediria os demônios do oriente de invadir nossas casas e matar nossas crianças!

Não houve resposta para o marido daquela vez, apenas um silêncio rancoroso. Duvidava que o homem colocasse fé nas próprias palavras, mas sabia o quanto ele desejava acreditar. No fundo, ela também gostaria de pensar que Alexiel estaria naquele momento travando uma batalha brutal contra o deus do oriente para proteger a raça humana, mas uma gargalhada desesperada vinha do seu estomago ao imaginar a cena.

“Ele não se importa...” Foi a última coisa em que pensou antes de se virar e deitar a cabeça cansada no peito do marido que nada mais falou durante toda a noite.

No cômodo do lado a pequenina demorou a dormir, a lua cheia era tão linda de se olhar, quase hipnotizava a menina que podia jurar que de vez em quando podia ver algumas estrelas se apagarem no céu.

Continua na...

Parte Um – Sete Dias