498-A CRIAÇÃO DO MUNDO Ou ..E Deus Criou Eva.
Javé estava profundamente — infinitamente — aborrecido consigo mesmo. Dotado de Imaginação sem limites e incansável Energia, já havia criado os Anjos, Arcanjos, Serafins e uma legião de entidades espirituais, no que aplicara o melhor de sua Vontade.
Pois não é que justamente uma de suas criaturas mais brilhantes, Lúcifer, havia se rebelado, abandonado o seu seio divino e estabelecido seu próprio mundo? Onde é que havia errado na criação desta criatura iluminada, cuja inteligência era quase igual à dele próprio, Javé. Rebelara-se cheio de Orgulho, julgando-se superior ao próprio Criador.
Felizmente, Lúcifer o abandonara e fora se refugiar, acompanhado de milhares de seres cujo nível de energia lhe eram similar, em um lugar nos confins do Universo, num lugar que seria conhecido como Os quintos do Inferno.
Por isso, pensava em fazer algo material. Nada de seres incorpóreos, tênues e fugidias formas de difícil organização e fácil dispersão. Exercendo o poder de sua Vontade, e pela simples condensação da energia, matéria prima abundante e inesgotável, Javé criou, num movimento explosivo, a parte tangível do Universo: as galáxias, sistemas planetários, astros e estrelas em quantidade infinita e até alguns buracos negros, onde aconteceria a reversão de tudo o que fizera.
Em alguns corpos astrais semeou a Vida. Um novo tipo de criação com formas definidas, textura, movimentos próprios e capacidade de se multiplicar. Com a criação da Vida material, teve de criar também o Tempo. Estas sementes de seres materiais foram se multiplicando, com o passar do Tempo, e adaptando às peculiaridades de cada local onde tinham sido colocados. À medida em que o Tempo foi passando, algumas sementes — ou células da Vida — adquiriram novas formas e capacidades, independentes da ação de Javé. Agrupamentos de células especializadas surgiram e em seguida, as colônias de células formaram novos seres, diferenciadas das células primitivas.
Muito Tempo passado, as células ocuparam os espaços líquidos, onde originalmente vivam, passaram para os lugares secos e espalharam-se pela superfície, organizando-se em seres dos mais variados gêneros: plantas, animais e minerais. Alguns mais capacitados que outros: os animais constituíram-se em classes e a Vida cresceu por todas as partes.
Ora, isto tudo aconteceu espontaneamente, sem que a interferência de Javé fosse necessária. O que era muito interessante mas, para a ânsia de criar do Todo-Poderoso, era tremendamente monótono. Até que a transformação dos seres chegou a um ponto no qual empacou. As espécies atingiram sua plenitude na evolução. Então, a simples multiplicação tornou-se banal aos olhos de Javé.
— Vou criar um ser para gerir toda essa Natureza. Será o Primeiro, o Principal, o mais importante. Entretanto, não vou fazê-lo de energia pura, vai ser uma mistura de energia e matéria.
Colocando a mão na massa (literalmente, foi assim mesmo), Javé usou o barro, material abundante na superfície de um insignificante planeta, para fazer um ser que era o mais inteligente de todos os que haviam resultado da Evolução.
— Vou dotá-lo de Inteligência, sim, mas não tão inteligente quanto os anjos. Sua inteligência será compatível com seu nível na escala da criação. Jamais entenderá coisas como o Infinito ou a Eternidade.
E de barro foi feito um ser diferente de todos os demais: duas longas pernas para andar ereto, mãos com dedos capazes de não só agarrar como também prender e manipular objetos (os polegares, opostos aos outros dedos da mão, foi então a grande invenção de Javé para este novo ser).
O modo como deu vida ao ser de barro foi única: Javé bafejou-o com seu hálito, transmitindo-lhe algumas das características de Si mesmo.
—Será minha criação predileta neste local e vou dar-lhe atenção total. Vou individualizá-lo, como Adão.
Adão acordou com o sopro de Javé. Nada teve de aprender, dotado que era de Inteligência. Passou a circular por toda a superfície completamente coberta pelas mais diversas espécies de Vida. A Curiosidade era seu guia. E, intuitivamente, começou a dar nome a tudo o que via e presenciava. Aos bichos, às plantas, às correntes líquidas entre o chão, às formas etéreas que via acima, às manifestações da Natureza. A tudo, enfim, foi dando nomes.
Entretanto, observou que os animais se completavam com a existência de seres diferenciados da mesma espécie: machos, fêmeas e filhotes.
Tentou se comunicar com os bichos, mas não conseguiu. Os sons que ele, Adão, emitia eram diferentes dos urros das feras, do zurrar da zebra e dos pipilos dos pássaros. Começou a pensar nessas diferenças. Somente ele não tinha um companheiro, um filhote, um ser de características idênticas, com quem trocar sons, brincar ou .... fazer o que os outros bichos faziam e que ele não entendia bem o que era.
Ficou triste, macambúzio, invejoso do bem estar dos demais bichos.
Javé, atento, observou a mudança. Chamou Adão para uma conversa:
— Adão, vejo você caminhar triste, infeliz. Fiz você para ser o maior entre todos os seres que criei, dotei-o de inteligência, coisa que só você tem, e você anda por aí, como que chateado. Que está acontecendo?
— Senhor — respondeu Adão — vejo que todos os outros animais tem companhia. Os leões têm filhotes, têm leoas; também os macacos têm companheiros entre si. As girafas, os tatus, os lobos e os pássaros, todos vivem em companhia. Apenas eu estou só. Tento conversar com eles, mas os leões se tornam ferozes quando emito urros; as zebras fogem, apavoradas, quando faço ruídos como elas. Os pássaros voam o ouvir meus assobios.
Deus achou razoável a queixa de Adão. Os outros animais haviam chegado ao presente estágio pela evolução das espécies, o que implicava na existência de macho e fêmea.
— Sim, você tem razão. Não me lembrei que você, sendo animal, embora dotado de um pouco de minha natureza, deve ter uma companheira e procriar. Vou fazer pra você uma companheira. Será sua fêmea, a Mulher.
— Senhor, como será essa ...Mulher? —Indagou Adão.
Javé, que pensava em dar a Adão o melhor de toda a criação, respondeu:
— Será assim como você, mas muito bonita. Terá o espírito da obediência e servirá a você em todas as suas necessidades. Recolherá alimento para você, irá prepará-los sob as mais diversas formas. Quando você precisar de agasalho para se abrigar do frio, ela os fará para você. Cuidará de um lugar para vocês ficarem, que manterá sempre limpo e organizado. Concordará sempre com você, em cada escolha que fizer. Nunca o enganará e será sempre fiel. Quando vocês tiverem algum desentendimento, admitirá sempre com cada decisão que tomar, mesmo que você estiver errado. Admitirá seus erros. Elogiará e o apoiará sempre. Terá os filhos e cuidará deles. Nunca irá pedir para você acordar no meio da noite para saber porque as crianças estarão chorando. Nunca terá enxaquecas, sempre terá vontade e disposição para lhe dar carinho e fazer amor, sempre que você quiser.
Adão, um tanto desconfiado com tantas qualidades, perguntou a Javé como seria feita a Mulher.
— Vou mergulhar você num sono profundo, tirar-lhe um braço e uma perna, e deles farei a Mulher.
Adão levou um susto.
— Senhor, como vou caminhar numa perna só? E sem um braço, como vou caçar?
Javé não respondeu. Parecia que sua idéia não era tão boa assim. E foi o próprio Adão quem ofereceu a solução.
— Senhor, o que pode fazer com uma costela?
Javé saiu de sua meditação.
— Sim, posso fazer. Claro que não será como a Mulher que havia imaginado.
E hipnotizando Adão, extraiu-lhe uma costela e fez Eva, a Mulher.
ANTÔNIO GOBBO
Belo Horizonte, 16 de junho de 2008 –
Conto # 498 da série Milistórias