O Relógio Novo
O pequeno relógio despertador, tinindo de brilhos de inox, tinha duas campainhas e uma argola para se poder pegar. Foi um amor à primeira vista e o preço, convidativo, fez-me vir com ele para casa. Retirado da caixa, liberto de papéis e plástico ficou, depois da corda dada, alinhado com o outro, vulgar de formas e antigo, cansado de dar horas fiáveis e sem a cabeça do parafuso para marcar o tempo de despertar. Nunca quis deitá-lo fora. Aprendi a amar coisas assim e todos os dias lhe dou corda, certo de que, tiquetaqueando, lhe mantenho a sensação de vida, de trabalho, de utilidade. Sim, ele é para mim, uma coisa viva, um testemunho do tanto que já vivi eu próprio. Pouco diz sobre tempo certo e já não me acorda mas o barulho do seu coração ajuda-me a adormecer e acompanha-me nas insónias. O pequeno e novíssimo relógio veio para fazer a força de que o velho já não era capaz, para gritar-me o tempo de acordar, para dizer-me com certeza que havia ultrapassado o momento certo de me deitar ou o número de horas em que estive ausente no sono. Infelizmente o pequeno, irresponsável, em pouco mais de duas horas gastou a corda do dia inteiro e grande susto me deu por, de repente, me dizer acabado o dia que mal tinha começado. Mentiroso, perdulário, vaidoso e impante, o jovem afinal não podia, não sabia, não queria dar horas e, muito menos, certas. Na loja só o testei no som e era estridente, fino, com a impertinência suficiente para se impor à minha eventual preguiça. Aí era imbatível o maroto. A bem tentei corrigi-lo, freando-lhe o ritmo, dando-lhe conselhos e diretrizes, sacudindo-o para o chamar à razão. Que não, disse-me. Era lindo e novo e isso chegava. Que acordasse sozinho, que me orientasse pelo sol, que havia o galo da vizinha, a luz a bater no espelho, o bater do portão da garagem, os gritos da Conga a arrastar as correntes e, se nada disso chegasse, que continuasse a dormir que, afinal era o que ele, relógio novo, mais gostava de fazer. Não fazia ideia da minha ou de outra vida e preferia ficar na caixa sem fazer nada. O relojoeiro disse-me que não valia a pena. Era defeito da têmpera da mola, que o devolvesse. Na zanga deixei-o lá e trouxe numa bracelete e em micropilhas o seu valor. Olhei-o para o adeus e o malcriado, lindo embora, nem respondeu.