Meus oito anos
O primeiro vento frio de dezembro sopra forte, sacudindo com força a copa da árvore que me abriga e assanhando meus cabelos brancos. Levo a mão à cabeça e, pela primeira vez, sinto que o tempo tornou-me igual ao meu avô. Surpreendo-me com a sensação agradável que essa convicção me traz. Sinto diminuir no meu peito a desolação causada pelo tremor que deixou meus dedos inseguros. Mas outra vez a certeza da proximidade inexorável da morte, que tanto tem me atormentado esses dias, volta e junto com ela o nó na garganta.
O medo terrível que me invade e me deixa sem forças mesmo nos lugares mais movimentados toma conta de mim. As palavras engasgadas e o medo não são apenas causados pela proximidade da morte. Algo mais angustiante me domina, algo que só agora no fim da vida me dei conta. Algo que tem a ver com a humanidade, com o que verdadeiramente somos e o que nos une nesse curto tempo em que vivemos. Relembrar a minha trajetória será como revisar o passado e encontrar respostas, melhor, encontrar soluções para o que me atormenta.
Olho ao meu redor e me emociono com a beleza da praça iluminada pelas luzes de Natal. A água cristalina do pequeno córrego no meio do largo fica colorida pelo reflexo das luzes. Uma alegria intensa me invade quando ouço os risos de uma criança vindos por trás de mim. Viro-me e vejo uma menininha, brincando de esconde-esconde com a mãe entre as palmeiras imperiais e violetas que contornam as vias da praça. E hoje, os ramos floridos que embelezam a pérgula estão ainda mais cheios de vida. Um casal luta para conter os seus filhos que insistem em alimentar as tartarugas da pérgula. Ali perto no coreto, uma linda garota compõe melodias com seu violão enquanto rapazes concorrem por espaço na escadaria para vê-la.
Levanto a vista e percebo que essa era a cena que há muito tempo eu sonhava em ver nesse lugar, cercado por imponentes palacetes e bangalôs. Os prédios históricos restaurados e repletos de luzes coloridas, pessoas nas sacadas, casais abraçados, crianças correndo em círculos... Ainda havia gente comprando presentes nas lojas.
Por ironia do destino, dos que participaram daquele movimento, eu era o único que estava vivo! A lágrima que escorre agora, lentamente, pelo meu rosto enrugado não é de tristeza, mas de saudade. Eles ficaram para trás, mas durante todos esses anos eu os trouxe comigo para verem, desse banco, as tardes de domingo esvaírem-se.
Fecho os olhos e penso: - Foram tantos anos lutando, trabalhando na reconstrução dessa cidade, que mal tive tempo para parar e refletir sobre a minha vida. Percebo agora, depois de tantas décadas, que a busca pelas respostas do passado do meu avô trouxeram uma nova identidade para mim. Mas não me recordo com precisão do momento em que deixei de ser aquele menino da fazenda, deixei de ser Carlinhos... Despedir-me de Carlinhos não foi apenas deixar no passado a minha infância, não, definitivamente não. Relegar ao ostracismo Carlinhos foi o mesmo que esquecer a minha humanidade, o que havia de mais puro e perfeito – o elo do amor, unicamente do amor. Pois de todas as lições que aprendi esta foi a única que valeu a pena. Escrever sobre a minha vida será o mesmo que buscar o amor que deixei escondido, privado de mim, restrito unicamente na vida de Carlinhos, no elo com meu avô.
* * *
Essa história começa por um episódio que mudou minha vida, quando eu e meu avô morávamos em uma fazenda, um lugar que exalava o perfume da paz e onde o tempo parecia nem existir.
Nossa casa era bem rústica, porém muito aconchegante. Os únicos móveis requintados e bem trabalhados eram os do escritório do vovô. As cadeiras altas, a mesa de cedro e as estantes que alcançavam o teto fascinavam-me. Escadas eram utilizadas para alcançar os livros mais distantes. Cada vez que eu entrava lá, era como se adentrasse em outro mundo. Aquele gabinete cheio de livros foi minha única escola.
De sua imponente cadeira, vovô sedimentou toda a minha educação. Não freqüentei escolas. Vovô repetia por diversas vezes que as escolas brasileiras eram despreparadas e incapazes de gerar pensadores. E que para você pensar tinha que se desviar dos livros alienadores, dos professores livrescos e buscar por si mesmo o conhecimento, a sua própria metodologia de aprendizagem. Livrar-se dos determinismos ideológicos, pensar e sentir como um só ato. Sempre achei que sua relutância em me levar à escola não era apenas baseada nessa visão. Havia algo mais, mas em vida nunca me dissera.
Pois bem, a minha educação foi toda sedimentada por ele. Apertava forte minha mão e dava tapinhas em meu ombro a cada sucesso meu. Descobri mais tarde que era sua forma de elogiar. Foi assim das primeiras palavras até ao último texto que escrevi para que ele lesse.
Meu rigoroso preceptor não dava trégua para que eu me distraísse com a vista oferecida pela janela que me seduzia com o sereno lago que refletia todos os tons de verde e azul. Somente quando encerrava nossas aulas matinais, tinha permissão para juntar-me aos patos e marrecos criados por seu Zé, um homem negro e forte que há muito tempo era nosso caseiro. Lá aprendi a nadar e a pescar, imitando os grasnos dos bichos. Passávamos o dia em contato com a natureza, estudando seus fenômenos e encantos, pois vovô aproveitava todas as situações para me ensinar alguma coisa.
Quando o verão se estendia mais do que o esperado e o calor dentro de casa tornava-se sufocante, costumávamos ficar embaixo da copa verde do tamarineiro, uma árvore secular que ainda teimava em guerrear com o tempo. Ele costumava apontar para uma casa abandonada feita de paredes de barro que ficava no pé da colina, logo após o cercado e começava a contar estórias de terror. Passei a infância e boa parte da adolescência sem coragem de chegar perto daquele lugar. Quase sempre no mesmo horário da tarde víamos o sorridente Zé puxar dois jumentinhos carregando barris em direção ao rio mais próximo. Todos os domingos percorríamos quilômetros montados em jumentos rumo à farinhada, onde comprávamos além de farinha, mercadorias vindas da cidade. Quando voltávamos de lá, corria em direção à porteira de casa já sonhando com a água gelada da bica. Subindo o caminho feito de enxada desviava-me das bananeiras e coqueiros que existiam até o alto da colina. Ouvia lá de trás o grito do meu velho pedindo para ligar a máquina. Puxada por um motor e levada por um extenso cano metálico a água saía geladinha. A água chegava com força. Deixava o meu rosto por um bom tempo sentindo aquela sensação de alívio invadir. O calor era substituído pelo arrepio do frio.
Os meus brinquedos eram feitos artesanalmente. Juntava latas de leite e as enchia de areia. Amarradas por uma corda elas rolavam no chão enquanto eu as puxava. Quando não corria atrás de galinhas e pescava piabas, passava horas a fio brincando no terraço de casa com aquele caminhão improvisado. No final, as latas já estavam quase vazias e a areia que havia nelas fora deixada no caminho, junto com a disposição de brincar. Vovô costumava dizer que a rapadura, a maxixada, a coalhada e o leite mugido eram os culpados pela minha energia desmedida durante o dia.
O mundo em que cresci era cheio de amor, unicamente de amor. Nunca pensei que fosse conhecer e desbravar outro além daquele em que nasci. Contudo ele me foi apresentado numa manhã chuvosa, daquelas que fazem os pensamentos correrem em recordações do passado.
* * *
Seis horas
Manhã cinzenta. Gotas insistentes na vidraça do quarto me despertaram antes do previsto. A claridade mansa do dia que começava chuvoso atravessou minhas pálpebras pálidas interrompendo meu sono. Tinha apenas oito anos e isso ainda me dava o privilégio de continuar a dormir na cama do vovô.
Sonolento, abri a porta do seu quarto, pronto para implorar pela permissão de deitar com ele, mas não o encontrei. Depois de investigar em todo o quarto, entrei em pânico: estou sozinho em casa? O pensamento me fez procurá-lo pelo resto da casa, sem sucesso. A idéia de encontrá-lo caído em algum lugar me apavorava. E foi justamente naquele momento que lembrei do porão da nossa casa, único lugar em que não o procurara.
Ofegante, corri até àquela porta, e me surpreendi ao encontrá-la entreaberta, como nunca esteve antes. Tive a certeza de que era lá que vovô estava. Ele sempre fora muito cuidadoso com aquele lugar, mas naquele dia havia falhado ou talvez eu houvesse despertado inesperadamente. Ele não deve ter girado totalmente a maçaneta da porta. O medo voltou a me dominar, todavia era preciso entrar ali para conferir se ele estava bem.
Jamais me aventurei a entrar no porão antes, porque aquele era o retiro de vovô, sua eira sacra, para onde ele só vinha em ocasiões muito especiais como Natal e outras datas que ele se recusava a me explicar. A fim de não me magoar, deixava que eu dormisse antes que fosse até lá. Era seu jeito de evitar que eu me sentisse rejeitado. E, mesmo sendo apenas um menino, eu entendia e respeitava isso.
Da minha janela, muitas vezes o vi esqueirar-se por aquela porta que agora estava aberta para mim, num convite irresistível, num apelo que pulsava tão profundo e violento que impulsionava minhas ações, meu corpo. Eu não podia perder aquela oportunidade!
Empurrei a porta cuidadosamente com a ponta dos dedos, acreditando que não faria qualquer tipo de barulho. Porém minha pouca força acabou deixando a velha e pesada porta fechar-se, provocando um som de dar gastura. Mesmo com esse deslize, não ouvi nenhum sussurro. Acuei aflito: será que meu velho está mesmo aqui? E se está, o que prende tanto sua atenção a ponto de fazê-lo esquecer do mundo?
Rapidamente, todas essas indagações foram abafadas pela minha curiosidade que imediatamente se aguçou por aquele lugar. Quase caí quando dei os primeiros passos. Tive que me apoiar na parede. Segurei firme o lençol para não tropeçar. Só depois que meus olhos adaptaram-se à penumbra, enxerguei a escada de madeira antiga e de difícil acesso, tamanha a verticalidade dos degraus.
Dei-me conta de onde estava quando, ao tentar me apoiar na parede, senti a umidade daquele lugar que exalava um cheiro forte que só voltaria a sentir anos depois. Tive que descer fazendo força para segurar o peso do meu próprio corpo, pois poderia tombar para frente. Desci a escada devagar e voltei a lembrar o que viera fazer ali quando a escuridão se desvaneceu por causa de um foco luminoso que batia timidamente nos últimos degraus.
Chegando ao final, avancei uns passos e virei o rosto para a direita, em direção à luz. Era uma pequena luminária sobre um banco. Observei a luz caindo por cima do meu avô, agachado em frente a um baú grande, velho e aparentemente muito pesado. O que estará fazendo? O que eu realmente queria saber era o que havia naquele baú!
Enquanto ele não percebia a minha presença, olhei em volta todas as coisas que havia no porão. Uma mesa empoeirada à minha direita chamou minha atenção. Passei o dedo e uma camada grossa de poeira indicava que há muito tempo fora colocada ali. Sobre ela havia uma foto, em preto e branco, coberta por enormes teias de aranha. Tentei identificar quem era a mulher, mas a pouca luz não ajudou. A luminária mal dava para clarear o local. Nesse ínterim, acompanhei meu avô que continuava imóvel, com um sorriso nos lábios e um olhar concentrado no que havia dentro do baú. Parado, fiquei um momento a fitar o seu rosto. Não me conformando com sua estranheza, levantei a voz e perguntei:
- O que o senhor está fazendo aqui?
Não entendia a sua mudez! Ele continuava absorto, de cabeça baixa, em frente ao baú. Sem obter resposta, nem ver nenhum esboço de reação por parte dele, senti aflição ao ver que não mais conhecia aquele homem. Que estranho!, pensei. “Era como se o porão o tivesse transformado”. Eu não fazia a menor idéia de quem ele era naquele instante. Meu coração palpitava cada vez mais forte. Decidi chamá-lo baixinho, pois talvez o conseguisse trazer de volta daquele transe.
- Vovô...! Está tudo bem? – chamei-o fagueiramente, tentando fazê-lo me enxergar ali.
Silêncio absoluto e bastante prolongado. Nenhum movimento.
Ainda mais assustado, estendi corajosamente meu braço para tocar em seu ombro, empurrando-o de leve. Quando o fiz, ergueu-se de uma vez, como se estivesse fazendo algo de errado. Olhou-me enrubescido, e depois me dirigiu algumas palavras:
- Que susto! – exclamou estrondosamente, levantando-se e me fazendo recuar rápido, com temor.
- Não precisa se preocupar! - continuou vovô, ao perceber meus olhos arregalados, cheios de lágrimas, e meu rosto contraído, tentando evitar o choro.
- Eu não vou brigar pela sua curiosidade que o fez entrar em lugares sem permissão! - falou isso pegando carinhosamente em meu ombro com a sua mão grande e pesada. Sentiu meu tremor e, para me acalmar, abrandou a voz - Aliás, foi até melhor assim. Quer conhecer as preciosidades que estão dentro desse baú?
Aquela proposta foi feita com um olhar de expectativa, como se implorasse para que eu aceitasse. Queria dividir algo comigo. E eu precisava ajudá-lo. Antes que eu respondesse, puxou meu braço com força, fazendo-me ajoelhar junto ao baú. Parecia mais criança do que eu, mostrando e explicando tudo ao mesmo tempo. Atentamente escutei, prestando-lhe uma solidariedade tácita. Não queria desanimá-lo, caso deixasse transparecer que compreendia pouca coisa.
- Tentei me conter todos esses anos! Não queria que você viesse a conhecer as recordações e saudades que tenho da minha terra. Mas vejo que é chegado o momento de lhe apresentar a cidade onde eu e sua mãe nascemos. – falava como se fosse confidenciar um crime - Parnaíba é a cidade mais rica dessa região! – dizia, puxando um mapa do baú - Tanto no comércio, como na indústria, agricultura, cultura e História! Parnaíba foi a primeira cidade do Nordeste a manter navegação de longo curso para a Europa. Era muito fácil você comprar móveis, roupas, utensílios domésticos de outros países – explicava, abrindo os braços e gesticulando muito - Os navios iam para o estrangeiro carregados de charque, ceras de carnaúba, algodão, babaçu, mamona...– e continuava com um orgulho desmedido pelas peculiaridades daquela terra - A primeira bicicleta do Piauí rodou na minha cidade, sabia? E também os primeiros automóveis, barcos a vapor e locomotiva. Aeroclube, estação radiofônica, usina elétrica só existiam em Parnaíba! Carlinhos, os dois primeiros times de futebol do Piauí foram criados em Parnaíba: o “International Athletic Club” e o “Parnahyba Sport Club”... – e nesse ritmo, meu avô prosseguiu na dissertação histórica da cidade. Foram horas e horas a fio, simbolizando uma verdadeira declaração de amor àquela terra até então desconhecida para mim.
Cada palavra era aquecida pela chama do ufanismo e da euforia que, aliás, nunca mais se apagaram. Tinha certeza que estava conhecendo um outro avô, ainda mais especial do que já o era!
- Vou lhe mostrar até fotos que comprova o quanto Parnaíba é uma terra abençoada! – disse, olhando-me de uma forma desafiadora.
Puxou uma caixa de cetim azul por fora e branco por dentro de uma abertura lateral do baú que eu nem tinha notado, e me mostrou toda a beleza de Parnaíba. Fiquei maravilhado! Pôs a caixa em meu colo e explicou cada foto e recordação com magnífica inspiração.
Fotos, retratos e uma pequena escultura serviram para que vovô demonstrasse o minucioso conhecimento que possuía daquela cidade. Esbanjava orgulho com as histórias e lendas.
- Vê esses retratos?
- Sim, quem são eles?
- São as maiores figuras da História do Piauí! – e desfiou uma longa história sobre Simplício Dias[1] e Leonardo Castelo Branco[2] – São dois heróis da Independência do Brasil! - identifiquei-me particularmente com “Simplição”, como é carinhosamente chamado. Anos depois, pude ver que nossa disposição de abrir mão de tudo em prol de nossos ideais era o ponto em comum. De Leonardo, tomei emprestado a bravura e a capacidade de enfrentar perigos. A lembrança desses dois seria decisiva para mim em muitos momentos da maior luta que travei na vida. Vovô nem poderia supor quanta intimidade eu viria a ter com Simplício.
- Preste atenção nessa escultura. – disse-me, sério.
- Sim, vô. O que é?
- Esse é o famoso Cabeça de Cuia – falava o nome envaidecendo-se da escultura de madeira. Você a quer de presente? É uma relíquia! – sua frase soou tentadora!
- Ele é muito feio! – disse-lhe – Ele é doente, vovô? Por que ele é assim?
- Ah! Essa é uma estória muito assustadora. Você não vai querer escutar!
- Não, vô, eu quero escutar... Conte-me, por favor! – fiz o pedido com os olhos faiscando de curiosidade. Ele adorava me provocar!
- Não me culpe se tiver pesadelos...
- Eu já sou bem grandinho – insisto – Não tenho medo de nada! Durmo até de luz apagada! Não vê minha coragem? Entrei até no seu porão! – argumentei para convencê-lo de vez.
- Ah! Mas depois dessa estória, tenho certeza que você não dormirá mais no escuro. Vai acabar me dando trabalho de noite...!
E foi nesse suspense que vovô começou a contar a lenda.
- Essa escultura é de um rapaz chamado Crispim que matou a própria mãe, batendo com um osso em sua cabeça, pois ficara com muita raiva e fome por não ter pescado um peixe sequer nas águas do Poti, um afluente do rio Parnaíba, o “Velho Monge” do Nordeste brasileiro. Antes de morrer, a mãe o amaldiçoou, dizendo que ele ficaria com a cabeça deformada e penaria eternamente entre a terra e as águas – disse compassadamente – De fato, a cabeça do rapaz começou a crescer, fazendo-o apavorar-se, jogando-se nas águas do Parnaíba! Seu corpo, porém, nunca foi encontrado. Dizem que até hoje ele passa a metade do ano na terra praticando “fantasias” – expressão que utilizou para amenizar a promiscuidade do personagem - e a outra metade nas águas do rio, causando enchentes e afogando banhistas e pescadores. Muitas embarcações já viraram por causa dele. E ele só deixará de penar no dia em que devorar sete mulheres virgens, o que ainda não deve ter acontecido, pois o amaldiçoado continua vivo nas tragédias contadas pelo povo - finalizou meu velho fazendo o personagem ganhar vida naquele instante.
Vendo-me com os olhos espantados, começou a dar gargalhadas, acrescentando: “Não fique assim, meu neto! Prometo que não acontecerá nada com você, mesmo porque já é quase amigo íntimo dele, não é?”- disse isso olhando para a escultura que estava na minha mão.
Durante toda a minha infância quis acreditar nessa tal amizade. Mesmo assustado com a estória, decidi manter a escultura por perto, para evitar que nos atormentassem. A estratégia deve ter funcionado, pois jamais tive pesadelos ou medo d’água. Todas as vezes ele acrescentava que lá nas águas do “Velho Chico”, como é carinhosamente chamado o rio São Francisco, há um ser mitológico que possui os mesmos hábitos do Cabeça de Cuia e que é conhecido como Negro d’Água. E contava como se estivesse contado pela primeira vez. Meu carinho por ele era tanto que eu ouvia com o mesmo sentimento de novidade. Só depois de adulto é que percebi que as repetições eram, em verdade, sinais da velhice.
A partir daquele dia, vovô passou a contar essas lendas freqüentemente. Após o Cabeça de Cuia, ele sempre dava um jeitinho de contar a da Macyrajara[3], uma depois da outra, repetidas vezes. Mesmo adoentado e de voz cansada, não desistia. O desejo do meu velho de perpetuar aquela tradição oral ocupou grande parte de minha infância. Todo ano, no dia 22 de agosto, comemorávamos o Dia do Folclore relembrando as estórias que faziam parte da riqueza híbrida do imaginário popular brasileiro.
Em noites de lua cheia, quando tudo se aquietava na fazenda, ele levava sua cadeira de madeira e pano para a varanda. Bastava isso para que eu entendesse que devia pegar minha cadeirinha, também de madeira, pois iria ouvir estórias. Ficávamos olhando os reflexos prateados da lua no nosso lago. Então ele começava a contar, compenetrado, todas as estórias que vinham em sua mente! Saci-pererê, boitatá, caipora, lobisomem, mãe d’água, mula-sem-cabeça, negrinho do pastoreiro, uirapuru, cuca, iara, curupira, moço bonito, matintapereira, eram como aperitivo para vovô explicar as origens e heranças culturais deixadas por índios, negros africanos e colonizadores portugueses. Ele as usava para me ensinar História, Geografia, Antropologia, Sociologia e até Filosofia.
Prometendo explicar melhor as fotos da cidade, tornou, pois, a meter a mão no baú e devagar, demonstrando muito respeito, retirou um pano de seda, cuidadosamente dobrado. Levantou-se, desdobrou, e falou com orgulho:
- Essa é a bandeira da Parnaíba. Olha como é bonita! – disse, sem esconder a emoção. - Foi criada por Christino Félix de Melo. Ele dividiu a bandeira em três faixas, sendo duas brancas e uma intermediária, de cor azul, com uma estrela branca. Christino usou as duas faixas brancas para homenagear as comunidades do Porto das Barcas e Testa Branca, que deram origem à cidade. As Armas Municipais, que aparecem no canto superior esquerdo, representam a cidade de Parnaíba. E o mais interessante é que esse símbolo, que representa o município, é o brasão de armas concedido a Simplício Dias da Silva!
- E o que são esses números?
- Ah, são mais do que simples números! Antes de ser uma cidade, o povoado era conhecido apenas por Vila de São João da Parnaíba. A primeira data, 1762, é o ano da fundação da Vila. A segunda, 1844, foi quando a Vila foi elevada à condição de cidade, recebendo o nome de Parnaíba. O último ano inscrito na bandeira é 1963, quando foram instituídas as Armas Municipais.
Depois das explicações de meu avô, que dividiu comigo todo aquele mar agitado de sentimentos, percebi que sua alma estava em paz. Ele despertava agora para uma nova fase de sua vida. Durante aqueles instantes mostrou-se tão alegre que não se conteve. Apanhou livros, dentre eles o Almanaque da Parnaíba, e recortes de jornais.
- Esse é o mais antigo Almanaque em circulação no país. Foi idealizado por um amigo querido, o Bembém[4]. É um tesouro. E é seu agora. Tome-o! – Deu-me de presente, sem titubear. Fiquei ainda mais emocionado quando ele me disse:
- Trate de cuidar de todas essas coisas com muito carinho. Confio em você!
E foi com essa confiança que me senti guardião da fortuna que havia acabado de receber.
Depois daquele dia, minha vida se transformou. Todo final de tarde, lá estava eu, ao lado do vovô, insistindo para que ele contasse mais uma passagem histórica da Princesinha do Igaraçu. Ele não se fazia de rogado. Seu olhar espiando o vazio tinha algo de especial e merencório, e a voz ficava solene ao proclamar as grandezas da “Metrópole das Províncias do Norte” - um título que ele sentia prazer em dizer e eu, em ouvir, porque soava belo aos meus ouvidos. Parecia-me digno de uma cidade altaneira, especialmente por ter sido dado por um imperador. “Parnaíba recebeu esse título de Dom Pedro I, em 1823, por ter sido a primeira cidade do Norte e Nordeste a proclamar a Independência do Brasil!”, exclamava vovô, com orgulho, numa postura estufada como se fosse ele próprio, o dono do título.
Ensinar-me sobre Parnaíba foi o coroamento da instrução intelectiva que vovô me ofereceu. Era também a maneira encontrada por ele, para fazer as pazes com o passado! Deleitava-se tanto com isso, que se esquecia de sua frágil saúde. Havia momentos em que parecia um jovem combatente, defensor ferrenho dos valores e ícones daquela terra. Declamava poesias parnaibanas e encerrava cantando o hino daquela terra. Talvez pela idade avançada, invariavelmente perguntava-me se eu sabia que Raimundo Petit era o autor da letra. Eu dizia que sim, e ele completava: “belíssima música a de Ademar Neves, não é, meu neto?”.
Não era apenas da História oficial de Parnaíba que meu avô falava. Contava também sobre o povo, as histórias das famílias, inclusive a podridão da alta sociedade de sua época. Sabia detalhes sórdidos! Mas preferia fazer-me conhecer algumas obras literárias que denunciavam os podres daqueles a quem chamava de aristocracia decadente: “De resto, somente a plebe rude presta, em Parnaíba!”, dizia, com sarcasmo.
- Carlinhos, a beleza de Parnaíba só não é completa por causa dessa epidemia. – disse-me um dia, em tom de lamento – Infelizmente, as pessoas pararam no tempo, iludidas com a pompa que um dia tiveram. Vivem de lembranças, porque não têm forças para trabalhar, estudar e tantas outras atividades que enobrecem o ser humano. Acostumaram-se com a indolência, como se ainda fossem velhos senhores de escravos! Não possuem nada e arrotam títulos e sobrenomes, rastejando atrás de um reconhecimento social que não merecem porque não possuem mérito algum. É de dar pena vê-los nas festas, exibindo-se com roupas alugadas, como se uns não soubessem da vida financeira dos outros. Todos encenam entre si! Mesmo endividados, continuam posando de ricos!...
- Então eles mentem uns para os outros e não sentem vergonha disso?
- Ah, meu filho, um grande artista francês, Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière, já dizia: “A hipocrisia é um vício que está tão na moda que vira virtude, e qualquer hipócrita representa o papel de homem de bem com razoável perícia”.
Vovô sempre enfatizava que Parnaíba não era apenas um centro comercial e industrial, pois atraídas pela possibilidade de riqueza, pessoas de todas as regiões brasileiras e do exterior geraram a mais complexa formação social do Estado. Ele enchia a boca quando pronunciava:
- Em diferentes épocas, índios, africanos, brasileiros, europeus e árabes miscigenaram-se, originando uma sociedade de identidade cultural aparentemente informe. O sotaque, o modo de vida e o conjunto de prédios diversificados – expressão mais visível dessas culturas que aqui aportaram – refletem essa extraordinária variedade.
Quando o meu velho falava do patrimônio arquitetônico eu sempre me lembrava das cidades de São Luiz e de Belém.
Nossa vida a dois foi muito reservada. Meu velho dedicava dias inteiros à minha educação e amadurecimento literário. Vovô chegava a brincar comigo no chão como se tivesse a minha idade. Apesar disso, sabia exatamente que valores queria enraizar em mim. Mais do que conhecimentos, ele queria que eu tivesse a capacidade de ser, a um só tempo, nobre, culto e solidário, especialmente aos mais fracos.
Essa formação só foi possível porque meu maior contato com o mundo exterior era através dos livros do escritório de meu velho, uma verdadeira biblioteca. Representantes de toda a literatura universal encontravam-se naquelas estantes organizadas numa ordem metódica. Por falar nisso, quando criança, pensava que as paredes do escritório eram feitas de livros.
Ainda lembro dos primeiros livros que ele me deu. Fez questão que eu me interessasse inicialmente pelos de Assis Brasil[5]. O primeiro foi “O cantor prisioneiro”, um livro infantil que me fazia imaginar executando um vôo reto e firme de liberdade como o sabiá, personagem principal do livro. Como era um livro de alicerce no mundo da leitura, meu avô teve paciência. Aliás, o conceito de liberdade que Assis Brasil me mostrou foi substituído quando li Rousseau na minha adolescência. Ele pregava: “O homem nasceu livre, e em toda parte, está na cadeia”. Frase que hoje me faz todo o sentido.
O que me fez realmente pegar gosto pelos livros na infância foi um clássico de Jean de La Fontaine com fábulas traduzidas para o português. Demorei uma semana para ler as primeiras palavras. Naquela época um livro com muitas letras ainda não me interessava. Chegava até a dar sono! O que realmente me atraía eram os desenhos de animais. Uma maravilha! Cada um mais bonito do que o outro!
O livro do “francês”, como vovô gostava de chamá-lo, foi uma escolha sapiente e paciente. No início, como todo menino traquino, a cada vez que ele perguntava como ia minha leitura, mentia dizendo que estava lendo, achando que o enganava. Ele sabia que eu não tinha lido absolutamente nada, mas também tinha certeza da grande atração que os desenhos me despertavam.
Enquanto ele bebia seu vinho tinto, eu fingia ler o francês, só para agradá-lo. Viajava com os desenhos de animais, fazendo um conversar com o outro. Com o tempo, observei que as minhas estórias eram sem graça e repetitivas. Foram necessários sete dias para atingir esse estágio. Ele sabia de tudo o que se passava.
Comecei, desde então, a procurar a conexão entre as palavras e os desenhos. Compreendi que as estórias narradas acerca das gravuras eram mais interessantes que as minhas. Após essa constatação, devorei o livro em horas!
Ao terminar, não me controlei. Incandescente com o aprendizado, fui contar as descobertas para meu avô. De tão empolgado, não percebi os risos de meu velho. Ele me deixou à vontade! Contei todas as fábulas, sempre explicando os desenhos.
Assentada a poeira do meu impulso de menino, ele me disse uma frase baixinho, da qual nunca esqueci.
- “O saber é tão solidário, que o seu dono não se contém, tem que dividir, ensinando o próximo”.
Depois dessa frase, pedi desculpas pelas mentiras e destaquei a fábula mais sábia e interessante do “francês”. “Era um busto oco e maior que o natural. A raposa, louvando o esforço da escultura: Bela cabeça, disse, mas quanto ao cérebro... nada... Quantos grandes senhores são bustos, são nada!”. Essa fábula, intitulada “A Raposa e o Busto”, foi um dos grandes ensinamentos de minha meninice. As estórias do “francês” me ensinaram o que é um leão e o que é uma raposa. E desse conhecimento, passei a compará-los com o homem.
A biblioteca de meu velho era repleta de literatura piauiense, além de brasileira e estrangeira, das quais ele não perdia a oportunidade de se gabar. Passávamos noites e mais noites discutindo o conteúdo dos livros. Nessas memoráveis conversas, ora nos emocionávamos, ora nos revoltávamos. Ensinávamos e aprendíamos mutuamente, numa constante descoberta do saber. “Mestre não é quem sempre ensina, mas quem de repente, aprende, meu filho. O escritor Guimarães Rosa sabia o que estava dizendo quando falou isso!”, disse certa vez quando o surpreendi com uma nova descoberta filosófica. Enquanto pôde, vovô orientou minha formação. Cresci assim - cercado de amor, cultura, arte e ensinamento filosófico. Mas isso tudo foi apenas o começo.
[1] Simplício Dias da Silva (1773, Parnaíba – 1829). Foi Alferes de Cavalaria Miliciana da ordenança da Parnaíba, comandante militar da Vila de São João da Parnaíba, coronel comandante do Regime de Cavalaria Miliciana, professo na Ordem de Cristo, teve o foro de fidalgo Cavaleiro da Casa Imperial e foi dignatário da Imperial Ordem do Cruzeiro. Em 19 de outubro de 1822, proclamou, com outros compatriotas, a independência em Parnaíba.
[2] Leonardo Senhora das Dores Castelo Branco (1788, Barras – 1873) – Político, militar, poeta, prosador, filósofo e mecânico. Obras: “Memória acerca das abelhas da Província do Piauí”, “Astronomia e mecânica leonardina”, “A criação Universal”, “O ímpio confundido”, “O Santíssimo Milagre”. Participou do movimento 19 de outubro de 1822 e da Confederação do Equador. É Patrono da Cadeira n° 17 da Academia de Letras do Vale do Longá e da Cadeira n° 33 da Academia Parnaibana de Letras.
[3] Macyrajara é a lenda da criação da Lagoa do Portinho: uma linda índia de olhos cor de mel e cabelos negros que desafiou seu pai, o chefe Botocó da tribo dos tremembés, por causa de Ubitã, um jovem guerreiro pertencente a uma tribo inimiga. Essa paixão levou o pai da índia a prendê-la numa oca vigiada por bravos guerreiros. Ubitã, aconselhado por Tupã, procurou salvar o seu grande amor. E nessa empreitada, foi atingido no peito por uma flecha, levando-o a morte. Ao saber da tragédia, Macyrajara corre na escuridão da noite e passa três dias vagando pela mata, até encontrar um olho-d´água, onde começa a chorar. Tupã comove-se com o pranto da índia e decide transformar suas lágrimas numa lagoa para separar as duas tribos. A lagoa chama-se Portinho e separa hoje, Luiz Correia de Parnaíba.
[4] Benedicto dos Santos Lima (1893 – 1958), carinhosamente chamado de Bembém pela população parnaibana. Foi proprietário do Almanaque da Parnaíba, surgido em 02 de agosto de 1923. Foi ainda, Gerente do Jornal A Praça, Diretor e proprietário do Jornal Aljava, co-editor do Livro do Centenário da Parnaíba, Fundador da Biblioteca da Criança, Primeiro Presidente da Associação Profissional dos Jornalistas da Parnaíba, Membro da Associação Brasileira da Imprensa, Membro da Academia Charadística Luso Brasileira e Patrono da Cadeira n°3 da Academia Parnaibana de Letras.
[5] Assis Brasil (Francisco de Assis Almeida Brasil) – n 18-02-1932 – Parnaíba (PI). Romancista, crítico literário, jornalista e professor Já publicou mais de cem obras. Dois dos seus romances foram laureados com o prêmio Walmap (maior prêmio literário do Brasil). Membro da Academia Parnaibana de Letras e da Academia Piauiense de Letras.