Um dia antes

E do silêncio absoluto deu-se o primeiro grito. Antes, não havia nada. Agora, existia o som.

E do som, brotaram as cores. Escarlate, dourado e o negro, misturando tudo.

E os gritos e as cores ficaram juntos, tocando-se mutuamente. E isso durou por muito tempo. Toda a I Era Escura foi assim, de gritos e cores. E então, nasceu a fúria. Rainha soberana. Seu reinado durou tanto, que mais duas Eras Escuras se passaram. E tudo o que existia era fúria. Todo o som era fúria. Todas as cores eram fúria. E nada existia que não pudesse ser fúria.

A III Era Escura marcou o tempo da transformação e uma grande coisa aconteceu. A Rainha Fúria gerou a primeira de todas as criaturas. Foi então que Ele nasceu. As cores se renderam. O som calou-se. E a fúria, dormiu por todas as Eras Escuras que se seguiram. E Ele, que era feito de fúria, som e cores dominou a existência completamente. E nada havia senão Ele. Todo o espaço era Ele. Todo o tempo era Ele. E isso foi quase infinito, até a V Era Escura surgir e, com ela, o desejo.

E Ele se encheu de desejo. Seus mil olhos brilharam com tamanha intensidade, que da Escuridão fez-se a Luz. E a Luz mostrou o vazio que existia além Dele. E foi então que a primeira criatura que existiu sofreu e dali em diante, tudo que fosse criado estava marcado pelo sofrimento, até o fim de todos os tempos.

O desejo, a fúria, o sofrimento e a Luz fizeram Dele um louco. E a loucura passou a reinar por muitas eras. Até que, no início da X Era Escura, Ele estava absurdamente louco. E louco, Ele passou a inventar. E inventando, Ele criou a segunda criatura que existiu. E Ela era cheia de Luz, tão cheia de Luz e tão diferente Dele, que isso fez crescer dentro Dele alguma coisa quente e intensa. E desesperado, Ele fugiu para longe. Cada vez mais longe Dela e da sua Luz perturbadora.

Distante e perdida, Ela passou a varrer todos os espaços com seu rastro de Luz, procurando por Ele. E Ela procurou e procurou e procurou... E enquanto procurava, alguma coisa acontecia além Dela e além Dele. A Escuridão Dele e a Luz Dela se encontraram sozinhas. E desse encontro, surgiu a esperança, que atingiu todo o resto. E mesmo as duas criaturas desesperadas e solitárias, se encheram de esperança. E nada mais foi capaz de

segurá-los, desde então.

Foi o fim das Eras Escuras. E tudo se modificou mais uma vez. E tudo se encheu de sussurros. E os sussurros foram lentos e intensos, marcando o Início da Era da Criação, que durou por tanto tempo, que tudo o que veio antes parecia nunca ter acontecido. E então, Ele e Ela passaram o tempo todo juntos em sussurros intensos e assustadores. E foi nessa época, que todas as coisas surgiram. O sol foi uma pequena fagulha que escapou de uns dos mil olhos Dele. A Terra brotou dos cabelos Dela, que eram tão longos e tão vastos, que quando um fio se soltou, ele se enrolou sozinho e deu tantas voltas em torno de si mesmo, que fez surgir uma esfera. E a esfera se tornou tão grande, dando origem a Terra. E o Sol brilhou sobre ela e todas as coisas começaram a aparecer ali, enquanto Ele e Ela sussurravam, hipnotizados Um pelo Outro.

E depois que os mares salgaram a Terra; depois que todo tipo de árvore jogou uma brisa doce sobre a Terra; depois que as montanhas ondularam a Terra; depois que as flores iniciaram um tipo de encantamento na Terra; depois que as chuvas lavaram a Terra, deixando-a abundante; depois que a neve caiu por todas as partes da Terra, fazendo-a tremer; depois que os tornados rasgaram a Terra em muitas fendas; depois que os germes brotaram e as pragas surgiram; depois que, um a um, os animais foram acontecendo e fazendo o mundo ficar cheio deles; depois de tudo isso, Ele e Ela ainda continuavam a sussurrar juntos, uma música temerosa e absoluta. A música dos Dois.

E num desses momentos, Ela olhou para a Terra pela primeira vez. E percebeu o que haviam criado juntos enquanto cantavam e sussurravam. Ela não sorriu e nem contou para Ele. Ela simplesmente decidiu o que fazer e fez.

Os dois nunca poderiam habitar aquele lugar, nem Ele, nem Ela. Nem mesmo poderiam tocar a Terra, ou qualquer coisa que ali vivesse. Eram criatura majestosas, e destruiriam qualquer coisa que se aproximasse muito Deles. Então, Ela iniciou seu trabalho em silêncio, enquanto sussurrava para Ele, todo tipo de temor e amor que havia na Luz Dela. Ele fez sua parte e o mundo sacudiu-se em trovões, que dilaceraram os céus, permitindo que a Luz e a Escuridão preenchessem todos os espaços. E isso durou até o final da Era da Criação.

Ela então parou, porque estava exausta demais para continuar e não podia mais esconder Dele o que havia feito. E Ele então percebeu e toda fúria acordou Nele. Mas Ela o enrolou em seus cabelos longos demais e o carregou para longe. E cegou a Escuridão Dele com a Luz Dela. E Ele desistiu dessa luta e deixou-se levar. Em um dos seus mil olhos, Ela

quase percebeu a alegria surgir. Mas isso aconteceu tão rápido que Ela nunca teve certeza do que realmente viu ali. E Eles foram para tão longe, e Ela passou todo o tempo, desde então, a enrolar seus cabelos Nele, a fim de conter a fúria que Ele se tornou. E assim aconteceu para sempre. A Luz Dela e a Escuridão Dele, enrolados um no outro, num infinito maldito.

Na Terra, o trabalho Dela estava feito. E além de todas as coisas e de todas as criaturas que a música Deles tinha feito surgir, havia uma criatura feita de som, de cores, de fúria, de desejo, de sofrimento, de loucura, de temor, de amor, de desespero, de solidão, de alegria, de esperança e, sobretudo, de Escuridão e Luz. Ela sabia que não poderiam habitar o mundo que, juntos, haviam criado. Mas dentro dela também existia a certeza, de que uma ínfima parte Deles poderia. E assim, em segredo, Ela deu origem ao filho Deles. E antes de partir, sussurrou, com sua voz etérea, nos ouvidos da pequena criatura: “Teu nome é criatura humana e de tudo que teu Pai e tua Mãe criaram você é soberano. E nesse pequeno mundo, chamado de Terra, vais viver e dele vai vicejar teus próprios filhos e encherás a Terra deles. E viverás por todos os tempos e continuarás o trabalho do teu Pai e da tua Mãe, criando vida em abundância até o Fim. E quando esse tempo chegar, Eu e teu Pai retornaremos para te buscar. E aí, seremos três a reinar sobre todas as coisas”.

E então, Ela enrolou o próprio cabelo em torno Dela e Dele, para calar a fúria Dele e afugentar a dor que sentia em abandonar o próprio filho. Mas sabia era assim que todas as coisas tinham que acontecer. E por amá-lo tanto, pode abandoná-lo para que ele cumprisse seu maldito papel em toda criação.

E isso tudo aconteceu um dia antes da primeira criatura humana abrir os olhos. E vai ser assim até que chegue o tempo do Fim. E então, tudo acabará para sempre.

Kelly Shimohiro
Enviado por Kelly Shimohiro em 27/10/2014
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