Maldição

Marquila garantiu que o viu levitar. Não um ligeiro descolar de pés do chão de terra batida mas uma franca ascensão. Erecto, magro, em tronco nu e descalço como trajavam os negros velhos da sanzala. Perguntei se alguém sabia a sua origem mas todos confirmavam que ele era o mais velho, que já ali estava quando construíram as casas de adobe e as cobriram com capim entrançado. Temiam-no. Por essa razão deixavam à sua porta víveres, frutos, leite coalhado, carne seca e mel. Julgavam, assim, livrar-se de eventuais malefícios comprando uma paz que só nas festas da iniciação dos mancebos se alterava por influência do álcool de massambala que todos cultivavam por ali.

Quando o conheci, estava coberto de cinza e preparava um banho ritual no rio. Assisti de longe até perceber que se afogava. Amparei-o até casa e, a seu convite, entrei. Respeitosamente escutei a sua história. Era guarda e mestre do filho de um soba guerreiro e a educação do menino a sua única tarefa. Cuidou dele, ensinou-lhe as regras, a arte da guerra e da caça, o sentido das palavras e as fórmulas da magia que só os predestinados usavam. Quando o seu pupilo morreu em combate acusaram-no de não o ter preparado melhor e expulsaram-no da região completamente desonrado. Ninguém queria conviver com ele, nenhuma das mulheres da terra o quis. Chegou ali sem saber como, sob uma pele de coiote e desconhecia a vida pregressa até se achar, um dia, como agora era: velho e temido. Gostaria de ser apenas mais um dos habitantes do lugar mas, quebradas as asas da graça, todos os anjos se tornam malditos, disse. Sempre que os olho ou me aproximo, eles fogem e gritam tal como dizia a maldição, acrescentou.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 07/09/2014
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