Misteriosas Ligações

Perder o dedo indicador forçou-me a reaprender o manejo da caneta para manter o bom domínio da escrita. Ao que de início foi difícil, logo me acostumei. Perder o dedinho foi um golpe maior. Perde-se um dedo, mas dois... Ainda mais se tratando da distância entre eles e da distância entre os momentos das perdas. Secretamente eu acreditava que o dedinho menor das mãos tinha simples função de acabamento. Mero capricho do criador. Mas a realização deste pensamento me veio à cabeça somente após a perda.

A perda do dedinho trouxe-me incerteza. Estaria o estrago ainda não concluído? Pouco me atrapalhou no hábito de escrever. Exceto que agora eu ficava ansioso de talvez perder outro. E se perdesse o polegar? Pensei o bom exercício que seria começar a escrever com a mão esquerda.

No outro dia acordei sem a mão esquerda. O acontecimento me assustou muito. Se eu estivesse sendo observado e meus pensamentos ouvidos, tal como em voz alta, precisaria ser mais atento quanto ao que pensar. Pensar em treinar a mão esquerda, perder a mão esquerda. As misteriosas ligações. De qualquer forma agora me restavam apenas três dedos.

Seria isso por passar tanto tempo calado e apenas escrevendo? Teria eu que abrir a boca e usar a língua para me comunicar depois de, por anos, desenvolver a técnica de poder pensar e revisar tudo o que eu digo, de modo que nunca erro despropositadamente. Se fosse eu um homem sentimental, teria me escorrido lágrimas dos olhos.

O dedo anelar perdi um dia enquanto fazia as atividades normais. Dei pela falta dele somente à noite, no momento de escrever o diário. Eu agora equilibrava a caneta apenas entre dois dedos. Minha caligrafia ia se modificando durante este processo. Não pior ou melhor, apenas diferente.

Impressionou-me notar a diferença na caligrafia através dos momentos e das perdas. Após escrever minhas notas diárias, naquele dia pus-me a reler as antigas anotações. Fazia já muito tempo que eu não fazia este exercício, que serve para alimentar tanto a memória do passado quanto a do futuro. Além de notar as caligrafias diferentes, notava as ideias que me recordavam os dias passados.

Voltando páginas e páginas pelo caderno, cheguei ao ponto da caligrafia principal, desde antes da perda do indicador. Fiquei a reparar por um tempo e ela não era mais bela, tampouco os dias mais interessantes. Mudaram algumas formas de palavras, outras formas persistiam.

Continuei a folhear e fui chegando às primeiras páginas. Eu passava os olhos, como se procurasse palavras que eu não saberia dizer quais eram. Palavras-chaves. Então li “polegar”. E em algum dia entre março e junho de uns bons anos atrás estava escrito “e espero que eu nunca perca o polegar. Afinal...”. Chocado, trouxe minha mão pra perto dos olhos de modo que pudesse vê-la bem. Neste momento vi que havia

perdido o dedo do meio, me restando somente o polegar.

Talvez por receio, não continuei a leitura. Afinal... Fui dormir, e naturalmente não pude evitar os questionamentos que insistiam em ser pensados. Não sei que horas eram quando finalmente adormeci.

No outro dia, acordei, preparei o café e comecei minhas atividades diárias. Perto da hora do almoço, eu estava roendo a única unha quando entraram na sala para me perguntar algo. Apressado, pus a mão direita e o coto da esquerda nos bolsos, e balancei a cabeça concordando com nem sabia o que. Depois que a pessoa foi embora

eu ergui os braços e lá estavam minhas mãos completas. Agora não sei como foi isso. Depois de um tempo fazendo força pra lembrar o que a pessoa havia me perguntando, me vieram à cabeça estas palavras: “Preferes o retorno das mãos em lugar da cabeça pra escrever?”. Mas agora eu não lembro. E talvez tenha inventado tudo isso. Então doutor? Qual o diagnóstico?

B Brant
Enviado por B Brant em 21/08/2014
Código do texto: T4932110
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