UM DIA UM LOBO – Parte
final



 
     O lobo caminha pela Praça da República, pára num sebo, compra um livro, senta no banco, entre as pombas e os cachorros vadios. Acaricia a lombada do volume como se tocasse corpo de mulher. Sente saudade, não sabe bem de quê. Talvez tenha a ver com o título TODOS OS HOMENS SÃO MORTAIS, de Simone de Beauvoir, talvez esteja doente da própria imortalidade, isso deve pesar muito. Já leu o livro, mas faz tanto tempo... só lembra que é também a história de um ente imortal.
 
           “Eu interrogava pacientemente o jovem inca e, pouco a pouco, enquanto atravessávamos o imenso planalto situado a mais de oito mil pés acima do mar, e onde cresciam ainda cactos azuis, eu ia ficando a par do que fora o império de seus maiores. Os incas ignoravam a propriedade privada; possuíam em comum as terras que lhes eram distribuídas anualmente, reservando-se uma terra pública para a manutenção dos funcionários e abastecimento dos armazéns em época de penúria; denominava-se “Terra do Inca e do Sol”. Cada índio ia, em determinados dias, trabalhar essa terra e também lavrar os campos do enfermo, da viúva e do órfão. Trabalhavam com amor, convidando-se entre amigos e juntando aldeias inteiras para lavrar as suas parcelas: os convidados acorriam com a mesma solicitude com que teriam acorrido a uma festa. Todos os anos, havia distribuição de lã e, nas terras quentes, o algodão das terras reais era de todos; cada um fazia em sua casa o que lhe era necessário, sendo todos pedreiros e ferreiros, ao mesmo tempo em que donos de um campo. Não havia pobres entre eles. Eu escutava Filipillo e pensava: “Eis o império que destruímos, o império que eu desejava estabelecer sobre a terra e que não soube construir!”
 
                                               [...]
 
          “ - Vede – disse-me meu jovem guia. – Vede o que fizeram dos homens de minha raça.
            Pela primeira vez, sua voz impassível tremia e, à luz da tocha, vi lágrimas em seus olhos. Nas galerias sombrias trabalhava um povo inteiro que não era mais um povo de homens, mas de vermes; não tinham mais carne nem membros, a pele escura colava-se-lhes aos ossos, que pareciam quebradiços, como galhos secos; já não tinham olhar e pareciam nada ouvir, martelavam os muros com gestos de autômatos; por vezes sem um murmúrio, um desses negros esqueletos desmantelava-se no chão e surravam-no com chicote ou barras de ferro; se não se levantasse rapidamente, matavam-no. Durante mais de quinze horas por dia, escavavam a terra e eram alimentados com um pouco de pão feito de raízes socadas. Nenhum vivia mais de três anos.”
 
           De “Todos os Homens são Mortais”, Simone de Beauvoir
 
 


             Damos de cara um com o outro, ele vindo eu indo em direção ao edifício Copan, aquele de frente para o Hotel Hilton, na Avenida Ipiranga. Surpreende-se, eu não.
         Pensei que estivesse em casa, digitando o texto. Veio me visitar?
            Estava, mas branqueou tudo. Resolvi sair, vagabundear. E você, já releu todo o livro?
           O da Simone? Ah, sim... sempre a mesma história: incas, maias, astecas, judeus, albaneses...nada muda, nunca. Por falar nesse assunto, o que pretende fazer de mim?
              Vamos tomar um café no Floresta.
           Sujo desse jeito? Vá lá, que seja. Aqui ninguém mais repara em nada, mesmo. Me paga o café?
        Faz meia-volta e seguimos para o Copan, o imensíssimo edifício, uma verdadeira cidade, projetado pelo Niemayer. Durante o trajeto, todos os mendigos que passam por nós o cumprimentam, pelo nome.
             Você é famoso por aqui, hein?
         É verdade, mas acho Osicran horrível, não soa grego nem troiano.
              É um anagrama.
              Sei, de Narciso. Um pouco forçado, enfim...
              Tem outra idéia?
            Nenhuma, afinal você é o narrador. Como planeja terminar este... conto...  esboço de novela... novelo...?
             Rascunhei duas possibilidades, não funcionam. Na primeira, você está em 2027, procurando um manuscrito nas ruínas da biblioteca.
              Que biblioteca? Que manuscrito?
         Sei lá. Um manuscrito desconhecido, que lhe elucide, em definitivo, a questão de sempre: Sou um lobo mau? E quem o ajuda a procurá-lo? Chapeuzinho Vermelho, que se tornou sua discípula. Você está muito velho, para morrer...
              Ah, vai me matar?
              Pretendia... Já tentaram isso antes.
             Quer saber? Se você não tivesse perdido a minha pista tantas vezes, eu já teria encontrado a resposta, em algum outro século. Já chegamos à porta do XXI, e nada. Incompetência dá nisso. Bem, diga a segunda versão.
               Osicran acabou de reler TODOS OS HOMENS SÃO MORTAIS e se põe a pensar na Idade Antiga. Deita-se no banco da praça, dorme. Sonha. No sonho, o dia amanhece com as meninas incas dançando ao redor de Narciso. Elas vestem alvas túnicas de algodão e trazem, sobre a cabeça e nas mãos, lindas coroas de flores. De repente param, formam um círculo e erguem preces ao Deus-Sol. Gostou?
                É estranho... Por que esta cena?
                O balcão do Café Floresta está lotado. Aguardamos.
             Por que esta cena? Já pensou se os europeus não chegarem? Se Atahualpa não se der ao sacrifício?
                               ?
                Seremos todos incas, das Guianas à Patagônia.
                E daí, faremos outra História?
              Engulo em seco, sinto um nó na garganta. Osicran o percebe, imediatamente:
               O que houve? Você ficou branco...
               Respondo, com esforço:
             Qualquer Império é Erro Monstruoso, já a partir da Idéia de Império. Este Café é um dos melhores da cidade.
                Também acho. Daqui, vai para onde?
             Talvez assistir ao “Shakespeare Apaixonado”, lá no Belas Artes.
                Também você? Quanto a mim, sempre gostei dos heróis de Hollywood, desde que morava na floresta. Esse aí, dizem que é bom.
                Vamos ver.
             Vamos? Não posso ir vestido assim, ainda mais ao Belas Artes. Mas, logo logo, esse filme passa na TV. Quando descobrir o que vai fazer de mim me avise, por favor. Devo permanecer um bom tempo no endereço atual. Boa sorte, caro amigo.
                Obrigado, eu o procuro. Sempre se acaba chegando a algum final. “É, sempre se acaba chegando...” entretanto, enquanto subo a Rua da Consolação, só me ocorre que, mais uma vez, não ganharemos o Oscar de melhor roteiro, tampouco o Oscar de melhor ator.



Texto escrito em 1999.
Republicação