UM DIA UM LOBO – Quarta parte       
 



 
      Um lobo anda pelas ruas. Há seis meses perdeu todos os empregos temporários, ficou sem moradia, livrou-se do computador, embora ainda atenda pelo nome de Osicran, seu derradeiro apelido na Internet. Osicran, efebo de Atenas, mais ou menos heterossexual, intensamente viajado, atlético, olhos negro-azeitonados, de passagem por São Paulo, em disponibilidade plena. Por estes dias, alugou um canto no extremo da calçada-fronteira entre a Ipiranga e a São João, ponto privilegiado. Todas as noites enrola a cabeça nos lençóis, mas tem problemas para dormir porque um dos colegas de quarto trouxe para casa um aparelho de TV furtado no Metrô, o mais recente prodígio da tecnologia digital, em cores, com controle remoto, com cinco polegadas e som estéreo; transmite todas as novelas e noticiários da Rede Globo e assim todos podem acompanhar o sobe-desce da Bolsa de Valores, o desembarque dos States na Iugoslávia que ninguém mais sabe o que é, a saga dos afogados na enchente do Anhangabaú, a previsão do tempo para amanhã, a prisão do bandido pela infração de fumar no elevador, o recebimento, pela família, da orelha do sequestrado, orelha enviada pelos sequestradores para provar que o referido ainda está vivo e de repente lá estão na telinha Osicran e os outros mendigos ali na calçada em imagem de alta definição no show dos cowboys mais autênticos da nossa tradição rural a enviarem beijos à plateia enlouquecida mas Osicran confunde tudo e julga que está vendo um trio elétrico tocando na missa de Páscoa enquanto as tietes gritam para o padre LINDO LINDO LINDO e a personagem chora sentida que o pai não sabe da sua existência acordou agora após trinta anos em coma enquanto o pobre Osicran não consegue dormir sequer um mísero minuto por causa das câmeras pulgas e compara: “A outra Idade Média foi bem menos barulhenta, apesar das Cruzadas.” Aproveita a entrada dos comerciais e o farol vermelho para se recordar das próprias pessoas virtuais: ex-psicanalista famoso, neurótico assumido, membro da Greenpeace, professor de Língua Árabe, sem-terra, violinista de orquestra sinfônica, cantor pop, atriz de cinema pornô, halterofilista amador, voyeur profissional, colecionador de gibis raros, manequim, consultor sentimental e o farol fica verde câmera ação receita de Chicken Pie atenção um frango limpo e cortado em pedaços duas colheres de sopa de suco de limão sal pimenta do reino uma cebola picada três colheres de sopa de óleo líder de seita pedófilo lolita drag queen professor de ikebana fiscal de rendas animador de TV. Durante os tempos de Internet, Osicran aprendeu muito. Viajou pelo Louvre, recitou tantras no Tibet, fez sexo oral com feminista dos anos sessenta, estudou Húngaro em Budapest, acupuntura na China, soube, nos bastidores, quem ganhou o Oscar de melhor ator, escalou o pico do Everest e, após tanto aprendizado, já não sabia distinguir pera de morango. E o sono fez-se sonho e do sonho fez-se o branco e do branco foi nascendo Osicran, o jovem grego. E como era belo, atraiu muitos efebos nativos a lhe proporem orgias na Ilha de Creta, senhoras procurando detalhes sobre o iate de Onassis e ainda outros tantos com a pergunta: O milênio termina em 31 de dezembro deste ano de 1999 ou em 31 de dezembro de 2000?
 


                                      FIM DA QUARTA PARTE


Texto escrito em 1999
Republicação