UM DIA UM LOBO – Terceira parte
“Ela só faz o que quer. Às vezes penso que tem má índole. É um horror pensar isso, mas tenho quase certeza: foi ela quem envenenou o gato da vizinha. Minha filha não tem pulso para educar essa menina. Eu tenho, por acaso? Mas é preciso torcer-lhe o pepino, creio que ainda é tempo. Vou engrossar minha voz, ela vai ver com quantos paus se faz uma avó de verdade.”
“Faço gato e sapato da vovó e ela nem liga. Adoro levar-lhe os bolinhos que minha mãe frita, só para deixá-la doidinha o dia inteiro. Mas não me iludo: essa permissividade toda transforma as crianças em adolescentes problemáticos e estes em adultos completamente neuróticos.”
“Deve haver algo como uma tecnologia do amor, mecanismos que tornem essa energia mais eficaz. Abandonei o curso de Psicologia no segundo ano e me mudei para cá com meu marido, quando ele assumiu o cargo de guarda-florestal. Hoje sou apenas uma boa dona-de-casa. Nenhuma revista especializada... aqui o correio não chega... se pelo menos ela tivesse um irmãozinho... o pai caiu fora antes disso.”
“Na tradição simbólica, o lobo é uma figura de significado ambivalente: sob o aspecto negativo este animal selvagem simboliza a energia demoníaca; sob o aspecto positivo é relacionado à evolução espiritual tornando-se, portanto, um símbolo de luz, talvez pelo fato de enxergar bem no escuro. Hades, Senhor dos Mortos, usava um manto de pele de lobo.”
“Um dia ele disse que gostaria de ganhar o Oscar de melhor ator. Eu não faço questão do de melhor roteiro, prefiro trocar tal notoriedade pelo prosseguimento desta vida anônima na companhia dos meus bem-amados bichos.”
Excertos: “Chapeuzinho Vermelho Revisitado”, de Edmund Fromm Lobo; Editora “A Lenda Viva”; 1968; 2ª edição.
“A primeira edição deste livro é de 1963. De lá para cá muita coisa mudou, não o suficiente para me fazer renegar as propostas lançadas naquele momento, no qual importava divulgar as conclusões de dez anos de prática na Psicanálise, atendendo predominantemente a jovens na faixa de doze a dezoito anos.”
“Quando comecei a clinicar, em 1949, não avaliava claramente a importância dos contos de fada para a formação da psique infantil e juvenil, a influência profunda das bruxas, fadas, lobos maus, considerados em sua dimensão simbólica.”
“Os jovens que apresentavam os maiores desajustes emocionais e de conduta eram aqueles que haviam introjetado apenas o primeiro nível dos personagens-tipo. Esse primeiro nível, o da superfície das ações, revela uma visão maniqueísta do mundo: as fadas são o bem, as bruxas e lobos personificam o mal, enquanto nas camadas subterrâneas cada símbolo tem face dupla, é simultaneamente bom e mau.”
“Comecei a me perguntar por que os jovens mostravam tanta dificuldade para integrarem em si mesmos tal dualidade, o que os levava a ver o mundo sempre em termos de branco/preto, cristão/herege, verdade/mentira. E fui me dando conta: a causa desta dificuldade está na Educação.”
“Escolhi o conto Chapeuzinho Vermelho como base de estudo porque é o mais conhecido e me parece emblemático também no que refere às relações de poder, cujos sentidos e conotações se alteram a partir dos diferentes pontos de vista. Para apreender e tornar clara tal multiplicidade fiz o máximo possível de leituras dos arquétipos: avó, Chapeuzinho, mãe, lobo, caçador.”
Início do texto introdutório à 2ª edição de “Chapeuzinho Vermelho Revisitado”.
Em 11 de agosto de 1971, sob o governo do general Garrastazu Médici, é promulgado o Decreto-lei n° 5692, que fixa diretrizes e bases para o ensino de 1° e 2° graus no Brasil. No auge da ditadura militar, com o amordaçamento de todas as vozes divergentes, apenas uma ou outra, impávida, se ergue em protesto contra o referido Decreto-lei. A revista “Educação Hoje”, uma dessas poucas, publica matéria, no mês de novembro, com declarações de pais, educadores e profissionais de diferentes áreas sobre as mudanças a serem deflagradas no ensino. Destaquemos a colocação de uma professora secundária (como se dizia na época) a qual, por razões óbvias, preferiu não se identificar e, em seguida, o depoimento mais extenso do doutor Edmund Fromm Lobo:
“A Reforma de Ensino de 1° e 2° graus, como todos sabemos... não, como a maioria, certamente, não sabe, é o fruto espúrio do Acordo MEC-USAID, de 1969. Nossa escola pública, apesar de suas mazelas, proporcionava aos jovens alguma formação crítica, humanista. Agora e muito mais a médio e a longo prazo, se tornará apenas caricatura de si mesma visto que, já a partir de 1972, não teremos mais Filosofia nem Sociologia no currículo do 2° grau. Isso é retirar dos jovens o direito ao pensamento. Onde estaremos, daqui a duas décadas?”
“Tinha a intenção de fazer de “Chapeuzinho Vermelho Revisitado” um texto libertário, que levasse as pessoas a pensar. Quanta gente me procurou, colegas da área, professores... Houve polêmica, é claro, muitos achavam as colocações reacionárias, diziam que relativizar a dicotomia bem/mal seria diluir nos jovens a consciência da luta de classes, a consciência da oposição entre classe oprimida e classe dominante. Eu retrucava, tentando explicar que esta era uma visão simplista, redutora. Não chegávamos a declarar estado-de-guerra, de modo algum, embora a tendência geral fosse de extremar as posições.”
O doutor Edmund deixa a revista “Educação Hoje” aberta sobre a mesa do consultório. Vai até a janela, abre-a, oferece o rosto ao vento. Vinte andares abaixo, a Avenida Paulista, que ostenta ainda a fachada de muitos de seus antigos casarões, começa a acender as luzes do crepúsculo e a cruzar intensamente seus veículos, nesta hora de fim de expediente. 1971 corre, também, para o término. Prossigamos a leitura:
“Universidade de Brasília, Comissão da Cultura Popular, Paulo Freire. Não sentia oposição real entre minhas propostas e as deles e o livro se mostrou útil, tanto que em 68 ganhou uma 2ª edição, que coincidiu com as magníficas rebeliões dos jovens em Paris e em várias praças do mundo, inclusive do Brasil. E agora me vejo citado como um dos mentores intelectuais dessa execranda reforma de ensino. Escolheram, a dedo, os trechos do trabalho que – agora me dou conta – permitem interpretações passíveis de manipulação, talvez por falhas de linguagem, alguma questão mal formulada... O que não quero nem vou admitir é o uso fraudulento dos seus princípios, os quais reafirmo. Só pretendo limpar meu nome, refutando um por um, os argumentos daqueles que, por má-fé, me incluíram em grupo de extrema-direita; creio que possa contar, para esse desagravo, com algum espaço nesta conceituada revista.”
O doutor Lobo não teve a satisfação de ver sua autodefesa publicada em qualquer número posterior da “Educação Hoje”, periódico suspenso por tempo indeterminado. “Vejo-me obrigado a repetir, como tantos outros, que ninguém pode prever as consequências de seus mínimos atos. Por que não mantive as ideias no interior do consultório? Não consigo lavar as mãos, não há inocência possível.”
“Ela só faz o que quer. Às vezes penso que tem má índole. É um horror pensar isso, mas tenho quase certeza: foi ela quem envenenou o gato da vizinha. Minha filha não tem pulso para educar essa menina. Eu tenho, por acaso? Mas é preciso torcer-lhe o pepino, creio que ainda é tempo. Vou engrossar minha voz, ela vai ver com quantos paus se faz uma avó de verdade.”
“Faço gato e sapato da vovó e ela nem liga. Adoro levar-lhe os bolinhos que minha mãe frita, só para deixá-la doidinha o dia inteiro. Mas não me iludo: essa permissividade toda transforma as crianças em adolescentes problemáticos e estes em adultos completamente neuróticos.”
“Deve haver algo como uma tecnologia do amor, mecanismos que tornem essa energia mais eficaz. Abandonei o curso de Psicologia no segundo ano e me mudei para cá com meu marido, quando ele assumiu o cargo de guarda-florestal. Hoje sou apenas uma boa dona-de-casa. Nenhuma revista especializada... aqui o correio não chega... se pelo menos ela tivesse um irmãozinho... o pai caiu fora antes disso.”
“Na tradição simbólica, o lobo é uma figura de significado ambivalente: sob o aspecto negativo este animal selvagem simboliza a energia demoníaca; sob o aspecto positivo é relacionado à evolução espiritual tornando-se, portanto, um símbolo de luz, talvez pelo fato de enxergar bem no escuro. Hades, Senhor dos Mortos, usava um manto de pele de lobo.”
“Um dia ele disse que gostaria de ganhar o Oscar de melhor ator. Eu não faço questão do de melhor roteiro, prefiro trocar tal notoriedade pelo prosseguimento desta vida anônima na companhia dos meus bem-amados bichos.”
Excertos: “Chapeuzinho Vermelho Revisitado”, de Edmund Fromm Lobo; Editora “A Lenda Viva”; 1968; 2ª edição.
“A primeira edição deste livro é de 1963. De lá para cá muita coisa mudou, não o suficiente para me fazer renegar as propostas lançadas naquele momento, no qual importava divulgar as conclusões de dez anos de prática na Psicanálise, atendendo predominantemente a jovens na faixa de doze a dezoito anos.”
“Quando comecei a clinicar, em 1949, não avaliava claramente a importância dos contos de fada para a formação da psique infantil e juvenil, a influência profunda das bruxas, fadas, lobos maus, considerados em sua dimensão simbólica.”
“Os jovens que apresentavam os maiores desajustes emocionais e de conduta eram aqueles que haviam introjetado apenas o primeiro nível dos personagens-tipo. Esse primeiro nível, o da superfície das ações, revela uma visão maniqueísta do mundo: as fadas são o bem, as bruxas e lobos personificam o mal, enquanto nas camadas subterrâneas cada símbolo tem face dupla, é simultaneamente bom e mau.”
“Comecei a me perguntar por que os jovens mostravam tanta dificuldade para integrarem em si mesmos tal dualidade, o que os levava a ver o mundo sempre em termos de branco/preto, cristão/herege, verdade/mentira. E fui me dando conta: a causa desta dificuldade está na Educação.”
“Escolhi o conto Chapeuzinho Vermelho como base de estudo porque é o mais conhecido e me parece emblemático também no que refere às relações de poder, cujos sentidos e conotações se alteram a partir dos diferentes pontos de vista. Para apreender e tornar clara tal multiplicidade fiz o máximo possível de leituras dos arquétipos: avó, Chapeuzinho, mãe, lobo, caçador.”
Início do texto introdutório à 2ª edição de “Chapeuzinho Vermelho Revisitado”.
Em 11 de agosto de 1971, sob o governo do general Garrastazu Médici, é promulgado o Decreto-lei n° 5692, que fixa diretrizes e bases para o ensino de 1° e 2° graus no Brasil. No auge da ditadura militar, com o amordaçamento de todas as vozes divergentes, apenas uma ou outra, impávida, se ergue em protesto contra o referido Decreto-lei. A revista “Educação Hoje”, uma dessas poucas, publica matéria, no mês de novembro, com declarações de pais, educadores e profissionais de diferentes áreas sobre as mudanças a serem deflagradas no ensino. Destaquemos a colocação de uma professora secundária (como se dizia na época) a qual, por razões óbvias, preferiu não se identificar e, em seguida, o depoimento mais extenso do doutor Edmund Fromm Lobo:
“A Reforma de Ensino de 1° e 2° graus, como todos sabemos... não, como a maioria, certamente, não sabe, é o fruto espúrio do Acordo MEC-USAID, de 1969. Nossa escola pública, apesar de suas mazelas, proporcionava aos jovens alguma formação crítica, humanista. Agora e muito mais a médio e a longo prazo, se tornará apenas caricatura de si mesma visto que, já a partir de 1972, não teremos mais Filosofia nem Sociologia no currículo do 2° grau. Isso é retirar dos jovens o direito ao pensamento. Onde estaremos, daqui a duas décadas?”
“Tinha a intenção de fazer de “Chapeuzinho Vermelho Revisitado” um texto libertário, que levasse as pessoas a pensar. Quanta gente me procurou, colegas da área, professores... Houve polêmica, é claro, muitos achavam as colocações reacionárias, diziam que relativizar a dicotomia bem/mal seria diluir nos jovens a consciência da luta de classes, a consciência da oposição entre classe oprimida e classe dominante. Eu retrucava, tentando explicar que esta era uma visão simplista, redutora. Não chegávamos a declarar estado-de-guerra, de modo algum, embora a tendência geral fosse de extremar as posições.”
O doutor Edmund deixa a revista “Educação Hoje” aberta sobre a mesa do consultório. Vai até a janela, abre-a, oferece o rosto ao vento. Vinte andares abaixo, a Avenida Paulista, que ostenta ainda a fachada de muitos de seus antigos casarões, começa a acender as luzes do crepúsculo e a cruzar intensamente seus veículos, nesta hora de fim de expediente. 1971 corre, também, para o término. Prossigamos a leitura:
“Universidade de Brasília, Comissão da Cultura Popular, Paulo Freire. Não sentia oposição real entre minhas propostas e as deles e o livro se mostrou útil, tanto que em 68 ganhou uma 2ª edição, que coincidiu com as magníficas rebeliões dos jovens em Paris e em várias praças do mundo, inclusive do Brasil. E agora me vejo citado como um dos mentores intelectuais dessa execranda reforma de ensino. Escolheram, a dedo, os trechos do trabalho que – agora me dou conta – permitem interpretações passíveis de manipulação, talvez por falhas de linguagem, alguma questão mal formulada... O que não quero nem vou admitir é o uso fraudulento dos seus princípios, os quais reafirmo. Só pretendo limpar meu nome, refutando um por um, os argumentos daqueles que, por má-fé, me incluíram em grupo de extrema-direita; creio que possa contar, para esse desagravo, com algum espaço nesta conceituada revista.”
O doutor Lobo não teve a satisfação de ver sua autodefesa publicada em qualquer número posterior da “Educação Hoje”, periódico suspenso por tempo indeterminado. “Vejo-me obrigado a repetir, como tantos outros, que ninguém pode prever as consequências de seus mínimos atos. Por que não mantive as ideias no interior do consultório? Não consigo lavar as mãos, não há inocência possível.”
FIM DA TERCEIRA PARTE
Texto escrito em 1999
Republicação