UM DIA UM LOBO – Segunda parte
Atores perplexos, suspensa a apresentação da peça, público indignado e exigindo o dinheiro de volta, Shakespeare se revirando no túmulo em Stratford-on-Avon. Quem poderia prever aquele desfecho, bem no meio do espetáculo? Era o ano de 1626 e o Terceiro Festival de Teatro Amador homenageava o Mestre morto há uma década. Durante duas semanas, os amantes da Arte Dramática iriam se deliciar com os desmandos da megera domada e se enternecer com Ariel; se deixariam oprimir pelos crimes dos Macbeth e derramariam lágrimas por Romeu e Julieta. Ninguém estava preparado para as cenas improvisadas durante a apresentação de Hamlet, no quarto dia do Festival.
Tal apresentação vinha sendo aguardada sob grande expectativa, porque a antecedia um boato segundo o qual o ator do personagem-título era um talento verdadeiramente promissor, dos destinados não apenas a conquistar as plateias de Londres, como também as da Europa culta. Imaginem isso um século e meio antes da eclosão do individualismo romântico! Todos queriam conferir o trabalho do jovem ator, que até aquele momento apenas desempenhara papéis secundários em peças de muito pouca expressão.
Que o dissessem seus companheiros de palco. Durante os ensaios, quantas palmas! Que magnífico Hamlet, que grande intérprete estava nascendo ali! Impossível escapar à emoção impressa nas falas do personagem e ao sofrimento estampado em sua face. Todos os colegas aplaudiam, sem qualquer ressaibo de inveja. Tamanho entusiasmo acabou por chegar aos ouvidos de eminente crítico, que após assistir a um dos últimos ensaios atestou a excelente performance do jovem no suplemento cultural mais importante da cidade.
Noite de estreia, teatro lotado. Hamlet e seu luto, Hamlet diante do espectro do pai, Hamlet dilacerado pela denúncia do assassínio. Começa o terceiro ato. Polônio e o Rei se ocultam para observar à vontade o pseudo louco. Este inicia sua fala emocionada e lúcida à qual se seguirão o diálogo com Ofélia e o comentário do Rei, mal convencido da loucura apregoada por Polônio. Ser ou não ser... eis a questão... e Hamlet emudece, estampa-se-lhe nos olhos intenso pavor, as faces se cobrem de palidez cadavérica. Põe-se a correr pelo palco, uivando, em seguida acerca-se de Ofélia, que acabou de entrar em cena, agarra-a, tenta mordê-la. Estupefatos, Rei, Polônio, donzela, bastidores, diretor, plateia compreendem, simultaneamente: Hamlet está mesmo louco. Dali, o promissor intérprete Harmful Lupus, amarrado, é transferido para o hospício mais próximo, nos arredores da cidade.
Berlim, primavera de 1863. O Sr. Jakob Grimm, filólogo, vai pela rua remoendo saudades do irmão Wilhelm, saudades particularmente aguçadas nesta noite igual a tantas outras que ambos compartilharam sob o aroma das lendas camponesas, nos jardins das bibliotecas, na primeira leitura quando meninos, da Canção dos Nibelungos. Wilhelm, cuidadoso, preciso, o companheiro ideal para as aventuras do espírito.
O Sr. Jakob vai caminhando tão absorto que nem se dá conta do vulto a segui-lo sabe-se lá desde que rua, talvez desde a hora em que saíra da Academia de Ciências, quando a lua cheia começava a se mostrar, ainda translúcida.
“Sobretudo negro, cabelos desgrenhados, enormes olhos escuros, mãos como as de um lobo” assim a descrição que fez do desconhecido ao Inspetor de Polícia, naquela mesma noite. “Agarrou-me pela nuca, obrigou-me a dar meia-volta, olhou-me com incrível intensidade enquanto apertava-me a garganta - eu só conseguia pensar em tal fim absurdo para quem dedicara toda a vida às pesquisas literárias, científicas. De repente, uma nuvem branca lhe passou pelo olhar, foi afrouxando os dedos, cambaleou como se fosse ter um desmaio e disse, com voz sufocada e profunda: “Por sua causa tornei-me um judeu errante, apátrida.” Em seguida, desapareceu. Mas era bem real, veja estas marcas no pescoço.”
FIM DA SEGUNDA PARTE
Texto escrito em 1999
Republicação
Tal apresentação vinha sendo aguardada sob grande expectativa, porque a antecedia um boato segundo o qual o ator do personagem-título era um talento verdadeiramente promissor, dos destinados não apenas a conquistar as plateias de Londres, como também as da Europa culta. Imaginem isso um século e meio antes da eclosão do individualismo romântico! Todos queriam conferir o trabalho do jovem ator, que até aquele momento apenas desempenhara papéis secundários em peças de muito pouca expressão.
Que o dissessem seus companheiros de palco. Durante os ensaios, quantas palmas! Que magnífico Hamlet, que grande intérprete estava nascendo ali! Impossível escapar à emoção impressa nas falas do personagem e ao sofrimento estampado em sua face. Todos os colegas aplaudiam, sem qualquer ressaibo de inveja. Tamanho entusiasmo acabou por chegar aos ouvidos de eminente crítico, que após assistir a um dos últimos ensaios atestou a excelente performance do jovem no suplemento cultural mais importante da cidade.
Noite de estreia, teatro lotado. Hamlet e seu luto, Hamlet diante do espectro do pai, Hamlet dilacerado pela denúncia do assassínio. Começa o terceiro ato. Polônio e o Rei se ocultam para observar à vontade o pseudo louco. Este inicia sua fala emocionada e lúcida à qual se seguirão o diálogo com Ofélia e o comentário do Rei, mal convencido da loucura apregoada por Polônio. Ser ou não ser... eis a questão... e Hamlet emudece, estampa-se-lhe nos olhos intenso pavor, as faces se cobrem de palidez cadavérica. Põe-se a correr pelo palco, uivando, em seguida acerca-se de Ofélia, que acabou de entrar em cena, agarra-a, tenta mordê-la. Estupefatos, Rei, Polônio, donzela, bastidores, diretor, plateia compreendem, simultaneamente: Hamlet está mesmo louco. Dali, o promissor intérprete Harmful Lupus, amarrado, é transferido para o hospício mais próximo, nos arredores da cidade.
Berlim, primavera de 1863. O Sr. Jakob Grimm, filólogo, vai pela rua remoendo saudades do irmão Wilhelm, saudades particularmente aguçadas nesta noite igual a tantas outras que ambos compartilharam sob o aroma das lendas camponesas, nos jardins das bibliotecas, na primeira leitura quando meninos, da Canção dos Nibelungos. Wilhelm, cuidadoso, preciso, o companheiro ideal para as aventuras do espírito.
O Sr. Jakob vai caminhando tão absorto que nem se dá conta do vulto a segui-lo sabe-se lá desde que rua, talvez desde a hora em que saíra da Academia de Ciências, quando a lua cheia começava a se mostrar, ainda translúcida.
“Sobretudo negro, cabelos desgrenhados, enormes olhos escuros, mãos como as de um lobo” assim a descrição que fez do desconhecido ao Inspetor de Polícia, naquela mesma noite. “Agarrou-me pela nuca, obrigou-me a dar meia-volta, olhou-me com incrível intensidade enquanto apertava-me a garganta - eu só conseguia pensar em tal fim absurdo para quem dedicara toda a vida às pesquisas literárias, científicas. De repente, uma nuvem branca lhe passou pelo olhar, foi afrouxando os dedos, cambaleou como se fosse ter um desmaio e disse, com voz sufocada e profunda: “Por sua causa tornei-me um judeu errante, apátrida.” Em seguida, desapareceu. Mas era bem real, veja estas marcas no pescoço.”
FIM DA SEGUNDA PARTE
Texto escrito em 1999
Republicação