UM DIA UM LOBO – Primeira parte
                                                                                                         
                                          
                                 
 
     Era uma vez um lobo que, ainda hoje, por mais que se esforce, não consegue se lembrar de alguma vez ter sido bom, incontestavelmente bom, embora sempre tenha tido excelente memória. Desde criança, seu ABC circulava na boca de cantadores, repentistas... e em variadas versões, das quais restaram duas: a primeira narra a saga de um antropófago bem sucedido; na segunda o caçador termina o conto agradecendo a Academia pelo Oscar de melhor roteiro. Quanto ao lobo, vivia então na plena ignorância disso tudo, que os dias lhe eram dados para brincar de pega-pega, roda-pião, troca-troca, amarelinha...
     Tempos depois, quando já o deixavam explorar sozinho a floresta – nosso herói, como podem ver, era um lobinho obediente e submisso – atravessou-a para conhecer a casa da vovozinha. Aproximou-se furtivamente pelos fundos. A velha rachava lenha no quintal e do interior vinham roncos que ele logo deduziu serem do vovô.
     Ainda adolescente, seu pai o levou para conhecer a rua e a moradia de Chapeuzinho, ele pôde até antever a ponta do dito-cujo por uma fresta da janela e sentir o cheiro dos bolinhos que a mãe da menina fritava naquele instante.
     Na festa de dezoito anos conheceu o caçador, presente entre os convidados. Desde aí, fizeram-se bons amigos e muitas vezes se entretinham em longas discussões sobre o final da história. O caçador, como diriam os amigos pescadores, puxava a brasa para a sua sardinha, ao passo que o lobo se antevia recebendo a estatueta de melhor ator.
     Enfim, chegou a noite dos seus vinte e um. A façanha que o tornaria imortal estava marcada para o crepúsculo do dia seguinte. O lobo bebeu, comeu, fumou, cantou, dançou e, na alta madrugada, fugiu para o próprio quarto com a loba mais cobiçada daquelas redondezas.
     Quando acordou, dois dias após, estava um lixo. Não se lembrara de tomar um Engov antes, muito menos um depois, portanto, ao recobrar a consciência, destripou o mico. Chapeuzinho, vovozinha, caçador se lhe haviam varrido completamente da memória; nem adiantava brigar com o relógio que este, sim, despertou na hora certa.
     Somente na terceira noite após tantas peripécias, nosso herói compreendeu, com a devida clareza, o significado profundo da expressão era uma vez. Chorou, chorou, chorou, sentindo-se culpado, culpado e culpado até a medula dos ossos, perante a vovozinha, Chapeuzinho, o caçador; perante si mesmo; perante a História.

     Desde então, nunca mais o viram. Soube-se muito mais tarde que, em fuga da baixa Idade Média, pedira asilo em um mosteiro Zen.
     Na massa progressivamente cinzenta de seu cérebro havia surgido a primeira, a grande, a imprescindível pergunta: “Sou realmente um lobo mau?” Na busca de resposta, repensou toda a existência no doce lar paterno, desde os mais verdes anos. Nada encontrando que o desabonasse, foi-lhe nascendo outra questão, muito mais crucial: “Se minha natureza é intrinsecamente boa, por que fui destinado ao papel de lobo mau?”
     Deu um nó no pensamento do nosso pobre personagem, seguido por outro, pior: “Eu era um lobo bom, digamos, mediocremente bom, como a grande maioria. Mas, se a lenda me determinava mau é porque ela sabia mais de mim do que eu mesmo. E que fiz? Fugi do campo de batalha. Sou um traidor, um covarde.”
       De repente, a luz: “O verdadeiro lobo mau não era eu.”
      Mas a sombra: “Como não era eu. A floresta é a mesma da lenda, a vovozinha idem, o caçador ibidem. Vi a casa, a ponta do chapeuzinho, todo mundo, desde que me entendo por lobo, me conta tin tin por tin tin essa história da qual sou o protagonista, embora certas más línguas me queiram apenas coadjuvante.”
          “Bem, nas versões escritas não aparece nada sobre meu pai nem sobre minha mãe – Que Deus a tenha! – nem sobre o avô de Chapeuzinho, que ouvi roncar. Mas, isso não prova nada. Os historiadores, os contistas, costumam usar balança diversa da dos mortais comuns para determinarem quem tem peso suficiente para entrar em suas narrativas, ainda que como meros figurantes, tal o centavo, e decidiram da nenhuma-valia de minha mãe, de meu pai, do avô de Chapeuzinho; que motivo teriam para me tornarem astro, assim feio e cantando tão mal? De fato, não devo ser o lobo famoso da lenda.”
     A essa altura, a cabeça do nosso-para-si-mesmo-quase-ex-protagonista doía tanto, que ele se ergueu do tatame e foi de cela em cela pedindo um comprimido. Ninguém o tinha e tanto burburinho acabou por chegar aos ouvidos do Mestre Superior que veio saber o que estava ocorrendo. Como seria um tanto inoportuno contar-lhe as elucubrações de lobo ocidental, disse apenas que estava à procura de um comprimido. O monge manteve o silêncio zen. Cabisbaixo, nosso herói sofrido voltou para a própria cela tão cansado, que acabou dormindo sem remédio e sem koan (a fala que "desperta" os seres, do sono de existir).


 
                                    FIM DA PRIMEIRA PARTE
 


Texto escrito em 1999
Republicação