Rémy

Rémy Fortunato bebeu mais um gole de sua cerveja e mastigou alguns amendoins velhos do balcão. O garçom estava ocupado conversando com duas garotas e não prestou atenção no velho, o que era muito bom. Para sua profissão, o ideal era passar despercebido.

Virou-se rapidamente e viu que sua presa ainda conversava com a mulher de vestido azul. Voltou seus olhos para a garrafa verde e pegou mais amendoins.

Há dois dias recebera uma ligação de Carlos, um antigo companheiro de distintivo, com um pedido:

- “Siga esse cara. Não temos provas para mantê-lo aqui. Se acontecer qualquer coisa, me ligue.”

Rémy era um detetive particular. Policial aposentado, que decidiu tomar aquele serviço para inteirar sua pensão. Pretendia guardar um pouco de dinheiro para ajudar a filha a quitar as dívidas estudantis e quem sabe, pagar uma viagem para Santorini. Não sabia quanto tempo tinha antes de o câncer mata-lo e não pretendia ficar sentado esperando.

Olhou para trás e viu os dois se levantando. Deixou o dinheiro da cerveja no balcão, esperou um pouco e seguiu o casal.

O homem era alto, com barba, uma correntinha prateada e o cabelo bem feito. Vestia uma blusa branca social e calças jeans velhas. Já a mulher... Rémy se perguntava o que ela estava fazendo num bar sujo como aquele... Ela usava um vestido azul justo e sapatos pretos de salto alto, os cabelos curtos eram castanhos escuros e os olhos, castanhos claros.

Os dois entraram num táxi e Rémy foi logo atrás.

O deslocamento durou em torno de 30 minutos e com surpresa, Rémy viu o táxi parar em frente a uma mansão no bairro mais caro da cidade. Tirou o celular e ligou para Carlos. Mandou o taxista parar numa rua paralela, pagou-o pela corrida e saiu do carro.

- Rua Castelo de Santigo, número 113. – disse para Carlos – Ele e uma mulher.

- Jonathan mora na Marechal Odilon.

- Eles não estão na casa dele, obviamente.

- Merda, a minha equipe está toda lá perto. Fique de olho neles.

Desligou o celular e foi andando até a mansão. Rodou-a um pouco e viu que todas as cortinas estavam fechadas, mas as luzes continuavam acessas.

Algo não estava certo. Uma mulher morando sozinha numa casa grande daquela sem sistema de segurança? Sem animais? Uma mulher com dinheiro para pagar por segurança e não o fazia? Nem contra ladrões? Tinha algo muito errado aí.

Colocou o capuz da jaqueta e escalou, com rapidez adquirida em anos no serviço, as grades cobertas de arbustos e pulou dentro do jardim. As grades eram altas e cobertas de folhas e galhos, por isso não se preocupou de ser visto por algum vizinho curioso. Tirara algumas fotos dos dois no bar e depois dos dois descendo do taxi. Independente de que ocorrera, ele tinha provas da culpabilidade do homem.

Agachado, se aproximou de uma das janelas onde ouviu a conversa dos dois. Tirou o gravador de um dos bolsos – em um estava a pequena câmera e em outro o gravador- e o colocou o mais próximo possível das janelas.

- Você costuma fazer isso? – era o Jonathan – trazer homens estranhos para essa mansão luxuosa e fazer o que quiser com eles?

- Só às vezes... Quando eu fico entediada. – ela quase ronronou.

- É um pouco perigoso. – continuou Jonathan. – Você não sente medo?

- Muito pelo contrário. – foi a resposta. – O que foi, querido? Você me

parece um pouco zonzo.

Rémy escutou um gemido de dor e o barulho de algo pesado se chocando com o chão. O detetive engoliu com dificuldade, mas não se moveu.

- Tenha cuidado com ele. – era a mulher. – Quero meus espécimes em perfeitas condições.

O caçador tinha virado presa.

Ficou alguns minutos ainda em leve choque, tentando entender o que tinha presenciado até que o celular vibrando o tirou de seu transe.

- Você tinha disso Rua Castelo de Santigo, número 113, certo? – era Carlos.

- Disse.

- Mas, esse lugar não existe.

- Claro que existe! Eu estou dentro da propriedade agora mesmo!

- Você tem certeza do endereço? Estamos na Castelo de Santiago agora e não tem esse número aqui.

Rémy olhou ao redor e buscou um ponto de referência.

- Olha, é uma mansão grande, uns três andares, branca e tem uma macieira na porta cheia de frutos. As grades estão cobertas por arbustos.

Não teve resposta. Olhou para o celular e viu que ele estava apagado. Apertou o botão para liga-lo e nada.

- Maldita tecnologia. – praguejou e voltou o celular para o bolso traseiro da calça. Rodou a mansão novamente e chegou atrás da casa.

- Que se dane. Vou entrar.

Pensou em quebrar uma janela quando um barulho chamou a sua atenção. Olhou ao redor e não viu a origem do som, mas quando ele se repetiu, Rémy correu para o lado da casa e agradeceu a má iluminação do local.

Um homem vestido em um terno negro saiu da mansão e foi até um local especifico do jardim, tirou as folhas do chão revelando uma tampa grande e negra, depois puxou a porta e desceu as escadas. Rémy esperou um pouco e seguiu o homem. Puxou a tampa e percebeu que o interior estava iluminado. Desceu. Assim que as escadas terminaram, ele conseguiu ver uma porta entreaberta , mas entre a porta e a escada tinham várias macas hospitalares.

Nenhuma estava vazia.

Aproximou-se de uma maca e levantou o lençol. Tampou a boca evitando o vomito. O rosto da pessoa estava negro e podre, não era possível distinguir olhos, nariz ou boca, era tudo uma massa disforme e fedorenta. Pegou a câmera e tirou algumas fotos.

Rémy se agachou quando percebeu a porta se abrindo e se escondeu atrás das macas, ficando numa parte não iluminada pela fraca lâmpada no teto.

- Eu sei. Já disse o que eu acho. – era a mulher de vestido azul, que agora possuía um avental branco e todo manchado de vermelho. Ela estava conversando no celular - Tudo bem. Traga-o para mim, vou ver o que posso fazer.

Ela não olhou ao redor, subiu as escadas, abriu a tampa e saiu. Rémy ficou sozinho. A porta no fundo do corredor estava aberta, então sem pensar muito correu até lá. Respirava com dificuldade e sentia o suor descendo por sua testa. Não tinha duvidas que sua blusa estivesse encharcada.

Quando entrou pela porta, viu Jonathan amarrado a uma maca. O homem de terno estava deitado em outra maca. Os dois estavam desacordados.

Olhou ao redor e percebeu que estava num laboratório.

Havia um grande quadro com várias fotos de pessoas, objetos e pedaços de corpo, desenhos de estranhos círculos, relatórios de óbito e post-its com diferentes letras.

“Suspeito. Relatório em anexo. L”.

“Dê uma olhada e me ligue. Fotos. H”.

“Morte não natural. M”.

E coisas do tipo. Rémy não soube o que pensar. Havia mais macas, mesas cheias de objetos de corte, uma serra elétrica e tinha um machado no canto da salinha. Era como entrar no laboratório do próprio Frankenstein. No quadro, ele viu uma foto de Jonathan e ao redor todas as meninas e mulheres que ele estuprou e esquartejou. Um post-it estava na foto: “Os braços que você tanto queria. W.”

Olhou com cuidado o rosto de cada uma. Tinham sete ali, mas Rémy sabia que tinham mais. Muito mais. Saiu de perto do quadro e se aproximou de Jonathan.

Rémy não sentiu dó. Olhou para o quadro novamente e suspirou. Podia tirar o cara dali. Podia. Mas... Coçou a barba.

- Eu vou para o inferno por causa disso. – disse Rémy para si mesmo. Colocou as mãos no bolso e decidiu ir embora.

- Rémy, não é?

Ele se arrepiou e se virou por instinto. Era a mulher de vestido azul encostada na porta. Ela sorria.

- Você é bom... Esperto e discreto.

- Olha, moça, faça o que quiser com esse cara aqui, eu vi nada.

Ela saiu do encosto da porta e se aproximou.

- Não quer saber o que eu vou fazer com ele?

- Não quero. – lambeu os lábios. – Eu reconheci alguns rostos das

fotos... Assassinos, pedófilos, traficantes, um pessoal barra pesada.

- São pessoas que não fazem falta.

- Continue assim. – com as mãos no bolso do casaco, ele esperava que ela não percebesse o gravador ligado.

Ela balançou os ombros.

- Sabe, eu gosto dos braços dele. Acho que podem ser úteis em outro corpo.

Rémy riu.

- Outro corpo? Tipo transplante de membros?

- Entre outras coisas. De órgãos também. Tipo substituir o seu fígado infectado com câncer por um novo e limpo.

- Quem te disse isso? – ninguém devia nem sabia do câncer.

- Você fede a morte. Ninguém precisa me dizer nada.

- Você é estranha, moça. – ele quis rir, mas não conseguiu.

Ela sorriu e colocou as mãos no bolso do avental manchado de vermelho.

- O que vai fazer com esse conhecimento, Rémy?

- Eu sei de nada, moça. Eu vi nada.

Ela não respondeu e Rémy andou em direção a porta. Suava frio e estava confuso. Não entendia nada daquilo.

- Rémy.

Ele sentiu a voz dela em seu ouvido pouco antes de ser empurrado contra a parede e soltar um grito de dor.

- Agora você me deve. – ela disse. Rémy sentiu algo em seu fígado. – O que é seu agora é meu.

Ele olhou para baixo e a mão dela estava dentro de seu corpo. Os olhos antes castanhos claros ficaram negros, completamente negros e ela sorriu. Uma fumaça negra começou a sair da boca dele, tinha gosto de cinzas e cheiro de morte. Ele viu, confuso e atônito, a fumaça ser sugada para dentro da mulher.

Aquilo que apertava seu fígado sumiu ao mesmo tempo em que ele caiu no chão, com as pernas muito fracas para suportá-lo. Ela teve uma crise de tosse, depois levantou-se, respirou fundo e começou a rir.

Rémy, ainda bambo e sem conseguir pensar direito, saiu correndo. Bateu em algumas macas e subiu as escadas, depois pulou as grades da casa. Atravessou a rua, entrou numa paralela e só parou quando alguém o puxou pelos ombros.

- Rémy?! – era Carlos com uma escolta policial. – Eu estou te ligando há horas! Onde você estava? Não achamos nenhuma casa com uma macieira. O que aconteceu?!

Rémy não duvidava que estivesse pálido como um fantasma, mas não podia perder aquela chance. Pegou Carlos pelo braço e voltou de onde viera. Alguns policiais o seguiram.

Andaram por vários minutos com Rémy os guiando, indo de um lado para o outro. Número 110, 111, 112, 114... Não tinha um 113. Nada. A casa grande e branca com a macieira na porta desaparecera.

- Mas... Estava aqui. – balbuciou Rémy sentido seu fígado arder. – Estava aqui. Eu juro.

Depois se lembrou da câmera e do gravador.

- Eu tenho provas! – declarou. Carlos o olhou com ansiedade.

Tirou a câmera e a ligou. Estava tremendo, mas não importava.

- Não tem nada aí, Rémy.

O cartão de memória estava zerado. Não havia nada na memória da câmera também. Na verdade, de acordo com os registros, a câmera nem tinha sido ligada naquele dia. Tirou o gravador e deu play. Só havia um registro de voz.

“Agora você me deve. O que é seu agora é meu”

E ele desmaiou.

O corpo de Jonathan nunca foi encontrado, nem a casa de número 113.

Semanas depois, Rémy descobriu que não mais tinha câncer. Nada. Seu fígado estava como novo.

Tudo parecia ter sido um terrível sonho.

Até que numa quarta de madrugada, o celular de Rémy tocou. Ele atendeu ainda sonolento, mas não por muito tempo... Quando ouviu a voz do outro lado, ele pulou da cama.

- Você me deve, Rémy.