A semente do mal

(conto longo, leia sentado)

Era uma vez Bernardo e Betty, dois jovens cortesãos que se amavam desde quando eram crianças.

Bernardo era filho do marceneiro e afilhado do menestrel. Aprendeu a fabricar e a manusear com mestria todo tipo de instrumentos musicais. Seu grande sonho, porém, era viajar e conhecer países distantes.

Betty tornou-se professora e ensinava as primeiras letras e os truques da Aritmética para as crianças da corte do Rei Aristemo e dos arredores do castelo. Sua beleza levou Bernardo a converter em paixão a amizade da infância e ambos se casaram numa tarde de sol.

Entre as juras de amor eterno, Bernardo falou de seu sonho de conhecer terras estranhas e Betty concordou em acompanhá-lo. Tomaram o primeiro navio que partia para cruzar o oceano e viajaram até uma terra bravia chamada Benemal, onde desembarcaram e descarregaram a bagagem.

Logo fizeram amizade com o povo da pequena cidade, que eram gentes provenientes dos mais variados lugares do mundo e que misturavam-se aos nativos e aventureiros de toda ordem. Benemal era também uma terra de muitos perigos e gente sem instrução. Ao saber disso, Betty sorriu: isto significava que ali viviam dezenas de crianças a quem poderia ensinar todas as coisas boas que conhecia. E a música dos instrumentos de Bernardo serviria para acalmar e elevar o espírito daquele povo rude. Seria o começo da transformação daquela rude vila em uma cidade culta e feliz.

Assim aconteceu. Os aldeões ajudaram a construir uma escola, tendo Bernardo como engenheiro. Sempre que algum viajante culto passava pelo porto da cidade era convidado para estabelecer-se ali, de modo a ensinar suas técnicas ao povo e a transmitir sua sabedoria. Em Benemal prosperou a agricultura, o comércio, a indústria e a cultura. Também foi construído um teatro onde os alunos de Betty encenavam espetáculos divertidos, sob a direção de um comediante vindo da China.

Benemal cresceu e prosperou também a violência, o jogo, a prostituição e todo tipo de vício. Os cassinos locais tornaram-se famosos, de modo que todos os navios que por ali passavam demoravam-se alguns dias a mais, para que tripulantes e passageiros pudessem divertir-se neles. As companhias de navegação não deixavam de incluir o porto de Benemal nas suas rotas de comércio e turismo.

Quem não estava feliz com o progresso da cidade era o vaidoso feiticeiro da tribo de nativos que vivia naquelas terras antes de os estrangeiros chegarem. Era um feiticeiro rico, que freqüentava os cassinos e podia divertir-se na cidade o quanto desejasse. Porém seu poder tribal e prestígio desaparecera com o surgimento da civilização. Seus conhecimentos, adquiridos na juventude à custa de duras provas de coragem e resistência à dor, agora para nada mais serviam. A tradição milenar de seu povo estava inteira na sua cabeça, mas seus filhos espirituais não lhe davam mais valor. Foi assim que nasceu o rancor em seu coração e cresceu até se transformar em ódio. Se pudesse, atearia fogo à cidade. Mas não podia. Imaginou então destruir a professora Betty e o marceneiro Bernardo, as pessoas mais queridas da cidade, símbolos da nova civilização, pela instrução e cultura que transmitiam ao povo. O feiticeiro sabia que até mesmo os homens de seu povo nativo admiravam o marceneiro e suas mulheres sonhavam ser professoras como Betty. Mas como destruir um homem e uma mulher tão íntegros e felizes? Todos em Benemal queriam bem ao casal e vingariam imediatamente qualquer ataque contra eles. O feiticeiro sabia que a única forma seria destruir a força de seu espírito. Sim, a melhor vingança seria plantar no coração deles a pequena e insignificante semente do mal. Com o tempo, a semente faria seu trabalho e todos reconheceriam seu poder. Faltava ao feiticeiro apenas um plano. Ele pensou, pensou e um dia convidou Betty e Bernardo para conhecerem a aldeia onde moravam os nativos que ainda não haviam se mudado para a cidade.

Betty não pôde ir ao encontro naquele dia, pois tinha um compromisso muito importante e Bernardo foi só. O feiticeiro o recebeu com honras e pompas. Elogiou muito o trabalho maravilhoso que ele e Betty realizavam na cidade há tantos anos, fazendo-o sentir-se orgulhoso da sua importância e dos motivos de ser pessoa tão respeitada. A música dos instrumentos que fabricava fazia sonharem as pessoas, mesmo as mais embrutecidas pela ignorância. Como fazia aquela mágica? – perguntou o feiticeiro.

— É a magia dos serafins – respondeu Bernardo. Aprendi com o menestrel do castelo onde nasci.

— Você seria capaz de promover o progresso entre meu povo nativo, com o poder de sua mágica? – perguntou o feiticeiro, sempre muito bajulador.

— Não sei. Posso tentar, se esse for o desejo de seu povo – respondeu Bernardo. – A maior parte dos nativos já vive na cidade ou produz alimentos no campo utilizando as técnicas modernas. Muitos aprenderam a ler, escrever, contar e fazer música, teatro e obras de arte que os turistas gostam de comprar. Seu povo é inteligente e bom. Qualquer povo do mundo pode prosperar, desde que faça as coisas certas para a época em que vive. O importante é o desejo sincero de ser feliz, bem como a capacidade de cooperar no trabalho, viver em comunidade, respeitar as leis, combater os vícios.

— Você é realmente um grande homem – disse o feiticeiro.

— Bondade sua. Sou apenas um fabricante de instrumentos musicais que teve a felicidade de receber bons ensinamentos quando jovem.

— Venha comer – convidou o feiticeiro, começando a dar ordens para as pessoas da casa.

Foi servido um delicioso banquete, com muitas comidas, bebidas e frutas. O feiticeiro a cada instante oferecia a Bernardo uma iguaria diferente. Em dado momento apresentou uma pequena cabaça cheia de líquido verde. Bernardo sentiu nojo, mas o feiticeiro insistiu para que bebesse, dizendo que aquela poção lhe daria muito poder.

Bernardo resolveu provar. O sabor do líquido verde não era ruim. Era refrescante e a cada gole dava a sensação de que os músculos cresciam e se tornavam muito fortes. Os tambores começaram a ressoar no páteo. Bernardo sentiu uma grande alegria e começou a dançar. As mulheres presentes só tinham olhos para ele. Seu corpo pulava e se retorcia de modo empolgante. Quanto mais dançava, mais energia brotava do seu interior. Agora Bernardo sentia-se o mais forte e ágil dos homens de Benemal. Veio-lhe a sensação de que explodiria se não desse vazão para toda aquela energia. Abraçou todas as mulheres que dele se aproximavam e à luz da fogueira principiou uma orgia. A festa terminou com um banho de cachoeira ao nascer do sol.

Bernardo foi alegre para casa, mas quando lá chegou encontrou um ambiente triste. Betty estava pálida, tristonha. Suas pernas pareciam-lhe não mantê-la firme sobre os pés. O corpo esbelto, que sempre a ele lembrava a figura de um anjo, agora parecia-lhe doente. As mãos delicadas, com dedos muito longos que Betty passava de modo suave entre seus cabelos loiros, agora pareciam feitos de gelatina branca. Quanta diferença daquelas mulheres nativas voluptuosas e com cheiro de terra molhada.

— Você está bem? – perguntou Bernardo.

— Sim, estou perfeitamente normal. E você, está bem? Parece que engordou. Parece inchado. Está com os olhos estranhos. A pele parece suja de gordura e pó. Por onde você andou?

— Estou bem. Estou ótimo. Apenas fui à aldeia do feiticeiro, como você sabe, e passei a noite por lá. Precisamos alegrar essa casa. Está muito triste aqui. Vamos abrir essas janelas. Estou com calor.

— As janelas já estão abertas – disse Betty. — Estou indo para a escola. As crianças me esperam.

— Ora, mande as crianças para o inferno. Quero você em casa, hoje. Vamos fazer planos para o nosso futuro.

A esposa chocou-se com tanta agressividade. Nunca antes ouvira um palavrão na boca do marido. Não parecia o mesmo homem de um dia antes.

— Que planos? Que futuro? Nossos planos são viver em Benemal. Meu futuro são as crianças de minha escola — disse Betty.

Dizendo isto, a mulher apanhou a pilha de cadernos e saiu apressada. Muito irritado, Bernardo procurou algo para comer e só encontrou um lanche dietético. Jogou-o pela janela e foi dormir. Dormiu tanto que babou todo o travesseiro. Quando acordou, uma criada estava fazendo limpeza na sala. Ao vê-la, ordenou que tirasse a roupa. A pobre mulher sentiu medo, mas obedeceu, amedrontada. Bernardo abusou dela, forte e bruto como um cavalo jovem.

Na escola, as crianças notaram a tristeza de Betty e, para alegrá-la, começaram a fazer música. De início ela apenas sorriu. Depois começou a tocar também, passando um por um os instrumentos disponíveis na escola: piano, violino, cítara, kântele, cavaquinho, harpa e todos eles. Por fim estava dançando com os alunos, na maior alegria. Ao final da tarde, as crianças se despediram e uma delas perguntou à professora se não gostaria de visitar sua família, na aldeia dos nativos. A menina disse que seu pai a admirava muito, assim como admirava seu marido Bernardo e os tinha em grande consideração. Ele era o feiticeiro da tribo e sabia contar as lindas histórias da tradição de dez mil anos de seu povo. Betty poderia fazer música, com seu espírito leve e luminoso e isso tornaria toda a gente nativa ainda mais feliz – disse a menina, repetindo as palavras que ouvira do pai. Betty agradeceu e disse que iria programar uma visita à aldeia.

Chegando em casa, a professora encontrou o marido de mau humor. Fizeram juntos um jantar como de costume, mas Bernardo se recusou a comer. Disse que sentia vontade de comer “algo mais gostoso”.

— Tudo o que temos em casa é gostoso – protestou Betty.

— É gostoso mas não é o que um homem precisa — falou com irritação e arrogância.

— O que você quer, então?

— Frutas do Hawai, carne de caça, vinho e aguardente, frutos do mar, moluscos afrodisíacos com temperos tailandeses servidos em porcelana chinesa...

— Cruzes! Por quê tudo isto?

— Porque levamos uma vida tão medíocre? — berrou Bernardo, socando a mesa.

Betty sentiu um choque. A reação de Bernardo foi inesperada. Ela não esperava isso dele. Sua vida era rica e plena de trabalho e coisas boas. Sua riqueza era o amor e admiração que recebiam das crianças e de todas as pessoas da cidade.

Depois de um silêncio, Betty tornou ao assunto.

— Onde você pretende comprar tudo isso?

— Não sei. Vou pensar um jeito — respondeu o marceneiro, com péssimo humor.

A noite foi de pesadelos para ambos. Nas noites seguintes os pesadelos se repetiram. Os dias se passaram e Bernardo anunciou que estava de partida para os garimpos da Serra Distante.

— Lá tem mais morte do que ouro – disse Betty.

— Isso é bobagem! – respondeu Bernardo com grosseria.

— Esqueça os garimpos – implorou a mulher. — Temos tudo o que precisamos para viver com alegria e felicidade. Você é o melhor marceneiro do mundo e eu sou a professora mais querida do mundo. Nós nos amamos e somos felizes.

— Isso é bobagem!

— Bobagem? Somos responsáveis pela felicidade dessa cidade. Temos muito a fazer aqui.

— Isso também é bobagem! – disse Bernardo, e foi arrumar sua bagagem.

O feiticeiro havia plantado e a semente do mal estava germinando no coração de Bernardo.

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Bernardo partiu para a Serra Distante, acompanhado de dois ajudantes. Lá chegando, encontrou uma pequena povoação formada pelos aventureiros. As casas eram favelas de madeira preta construídas sem aprumo. O capim que nascia ao redor das casas não dava flores nunca. Uma caveira de cavalo rolava entre as pedras da única rua ali existente.

Sentindo fome, dirigiu-se ao galpão que tinha na fachada uma placa de madeira pintada à mão para anunciar um restaurante. Sentado à mesa, pela janela dos fundos viu uma pilha de ossos de boi. As cabeças tinham os buracos dos olhos vazios e longos chifres recurvos. Aliás, as caveiras dos bois tinham três buracos: dois redondos, dos olhos, e o terceiro na testa, onde o pobre animal havia recebido um golpe de marreta.

Alguém se aproximou.

— Está servido?

— Que há para comer?

— Churrasco de boi. Você tem ouro para pagar?

— Não. Estou chegando hoje. Tenho dinheiro.

— Não serve. Você pendura a conta e quando tiver ouro, você paga.

Um velhote na mesa ao lado acompanhava a conversa e brincou:

— Você come o boi e se não tem ouro para pagar nós comemos você. Eu daria meio quilo de pepitas para comer um pedaço de carne branca. Há há há!

Bernardo não riu. Fez que não ouviu e apalpou o cabo do facão que trazia na cintura. Seria capaz de partir um boi ao meio com um golpe. Mas usaria sua força para arrancar o ouro da terra.

As minas de Serra Distante formavam labirintos de precários túneis nas montanhas e montes de cascalho à beira dos riachos. Era uma paisagem feia, que nada tinha a ver com a beleza do metal ali extraído. As árvores estavam cada vez mais escassas e os animais que um dia ali viveram haviam sido caçados e comidos pelos garimpeiros famintos. Até as cobras venenosas viravam comida. Os bois do restaurante vinham de longe e eram pagos com ouro e os donos do estabelecimento não deixavam que mais ninguém levasse comida para os garimpos. Os que tentaram fazer concorrência morreram misteriosamente, todos assassinados.

Bernardo trabalhou duro cavando minas e em poucos meses seus dois empregados não suportavam mais o esforço. Desejavam ir embora, mas temiam a vingança do patrão. Continuavam a trabalhar, na esperança de um dia livrar-se daquela verdadeira escravidão. Depois de um ano de suor e lágrimas derramadas secretamente, a obstinação de Bernardo ainda não havia dado os resultados esperados. Tudo o que conseguia – cerca de 300 gramas de pepitas por mês – servia apenas para pagar o restaurante para os três, as noitadas de bebedeira e as ferramentas para trabalhar.

O tempo começou a passar depressa e os meses voavam. A força de Bernardo diminuía gradativamente. Alguns garimpeiros davam sorte e achavam um filão de ouro, colhiam o quanto podiam e iam-se embora antes que alguém os roubasse ou matasse. O sucesso desses poucos reacendia as esperanças de Bernardo conseguir bastante ouro para construir um castelo e enchê-lo com prazeres raros e banais.

Não lhe importava vida árida que levava, desde que um dia ficasse muito rico. Queria ser rico o suficiente para sufocar a imensa sede de prazer que ardia em seus pensamentos, e isto o deixava raivoso e frustrado. Sentia-se uma verdadeira granada humana pronta para explodir. Os cabos das ferramentas que usava para cavar precisavam ser reforçados, a fim de não quebrar muito facilmente. Usava então seus conhecimentos de marcenaria e ia buscar madeira mais forte nas florestas próximas. Ele poderia fabricar equipamentos de madeira que tornassem o trabalho dos garimpeiros mais rápido e produtivo. Poderia assim ganhar muito dinheiro, como os donos do restaurante, mas desistiu logo da idéia, pois seria ficar muito mais rico quanto encontrasse o seu filão de ouro. Além disso, não lhe interessava amenizar a dureza do trabalho dos outros. Ele possuía bastante força para si e os outros que se danassem.

Um belo dia, cavando um túnel novo, Bernardo encontrou à sua frente um bloco de pedra que o impedia de prosseguir. Transtornado de ódio, foi buscar grande alavancas e, com ajuda dos dois empregados, removeu a pedra, quase rebentando o coração de tanto esforço. Atrás da pedra estava um homenzinho de trinta centímetros apenas, cabeça grande, chapéu de couro, longa barba branca e orelhas pontudas. Era um gnomo, encolhido de medo.

— Mata! – gritou um dos empregados, pensando que se tratava de algum animal perigoso.

Bernardo ergueu um grande bastão e ia desferir o golpe quando o homenzinho falou:

— Você quer encontrar bastante ouro?

O garimpeiro gelou de pavor, e levou alguns segundos para recuperar o sangue frio, e respondeu:

— Faz sete anos que estou procurando.

— Posso ajudá-lo a encontrar muito ouro — disse o homenzinho.

— Então mostre-me o caminho.

— O ouro está perto daqui, mas tem uma pedra translúcida no caminho. Só direi onde está o ouro se prometer que me entregará a pedra translúcida que encontrar. Ela me pertence e é tudo o que peço.

— Ora, você está me enganando. Vou matá-lo agora!

— Mate – respondeu o gnomo. Mas se matar jamais saberá se falo a verdade ou não. E jamais encontrará o meu filão de ouro.

O garimpeiro mandou os empregados aguardarem fora do túnel enquanto fazia o acordo com o homenzinho. Para encontrar o ouro que desejava, deveria cavar em outra colina, onde já havia um garimpeiro estabelecido. Bernardo foi falar com ele e propôs a compra da mina. A resposta foi “não”. Bernardo ofereceu sociedade, mas o outro riu, e disse que se precisasse de um sócio buscaria alguém mais inteligente que ele. Trocaram impropérios, brigaram e Bernardo enfiou seu facão no peito de seu oponente. Cheio de remorsos, levou o homem agonizante para sua casa e tentou medicá-lo, mas foi em vão. Depois do enterro, ninguém perguntou o que havia acontecido. Naquele lugar ninguém incriminava ninguém. Matar e morrer era considerado natural. Ali era o inferno em vida. A Lei era o Ouro. Cada um tratava de cavar o seu, sem se importar com os outros. Cada um era responsável por si próprio e por mais ninguém. Sobrevivia quem pudesse.

A mina do garimpeiro assassinado ficou vazia por alguns dias. Bernardo resolveu apossar-se dela, antes que outro tomasse conta. Deixou seus dois empregados trabalhando no lugar de costume, e foi sozinho cavar onde o gnomo havia indicado. Depois de três dias, Bernardo encontrou uma terra preta e mole, fedida como esterco. Quando começou a remover aquele material infecto, encontrou ossos humanos e de animais, e o material fedia como cadáver em decomposição. Bernardo pensou em desistir e cavar em outra direção, mas, depois de anos obcecado pela idéia de encontrar um filão de ouro a qualquer custo, estava com o coração tão endurecido que nada mais o impedia de seguir em frente. Depois de algumas horas removendo aquela coisa, sua pá bateu em algo duro, e ali estava uma pedra transparente do tamanho de um ovo de avestruz. Bernardo lavou a pedra com sua água de beber e viu que era um diamante tão brilhante que iluminou o túnel como o sol da manhã. Qual seria o valor daquela pedra? Imenso. Quem poderia comprá-la? Um rei, talvez. Bernardo pensou em Aristemo, que possuía muitos tesouros escondidos nos porões de seu castelo e muitas terras férteis também. Guardou a pedra em um saquinho de couro e continuou cavando, para disfarçar. Fingia trabalhar, mas de fato apenas jogava cascalho para cá e para lá, esperando a noite chegar para ir embora de Serra Distante levando a sua preciosa pedra brilhante. Foi então que apareceu o gnomo, saindo detrás de um cesto de cascalho. Bernardo ficou gelado de pavor, mas encarou o pequeno ser, e este falou:

— Achou alguma coisa?

— Não! Por quê?

— Parece que você achou alguma coisa – disse o gnomo.

— Achei um monte de terra nojenta, preta e mole como esterco...

— Com uma pedra brilhante dentro – retrucou o gnomo.

— Como sabe?

— Eu sei. E você também sabe.

— E daí?

— Temos um acordo – disse o gnomo. – Você me entrega a pedra brilhante, que me pertence, e em seguida eu ajudo você a achar muito ouro. Esse é o trato.

— Essa pedra vale muito mais que todo ouro que eu possa carregar.

— É verdade. Mas temos um trato – disse o gnomo. — O ouro está nesse túnel, a poucos metros de você.

— E se eu não cumprir o trato?

— Você tem duas escolhas, disse o gnomo. – Cumpre o trato, encontra o ouro e será feliz pelo resto de sua vida. Ou fica com a pedra, não encontra nenhum ouro e se arrependerá amargamente.

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Caro amigo:

Essa história tem dois finais possíveis.

Você viu o jovem Bernardo, inteligente e dedicado, transformar-se em um homem bruto ambicioso e assassino. A beberagem do feiticeiro plantou nele a semente do mal, aumentando sua força bruta, mas enfraqueceu o seu espírito. Antes, sua sabedoria equilibrava a força dos seus desejos. Agora Bernardo estava diante de uma escolha. Ele conhecia as conseqüências de cada alternativa, mas seu coração endurecido não o deixava acreditar no que dizia o homenzinho.

O que você faria, se estivesse no lugar de Bernardo?

Se você tiver mais de 14 anos de idade, faça sua escolha: entregar a pedra ao gnomo ou ficar com ela? Depois de escolher, continue lendo a história de Bernardo.

Se você tem menos de 14 anos, pode ler a história antes e escolher depois.

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PRIMEIRO FINAL

Bernardo escolhe ficar com a pedra

O garimpeiro perguntou ao gnomo o que ele faria se não lhe desse o diamante.

— Não posso machucar você, nem forçá-lo a entregar a pedra que me pertence – disse o pequeno ser. — Mas, se não a entregar, vou odiá-lo com a força dos elementos e você nunca mais terá paz de espírito.

— Fique então com sua paz de espírito – disse Bernardo, e com a pá bateu na cabeça do homenzinho, amassando o seu chapéu de couro e fazendo-o desmaiar. Em seguida saiu dali, para nunca mais voltar.

Ao chegar à cidade de Benemal, Betty estava dando aula para as crianças. Bernardo ficou olhando-a através da janela da escola, observando seus modos delicados, a alvura da sua pele, os cabelos castanhos e finos. Sentiu nojo daquela criatura branquicenta e orgulhosa: “ela não serve para um homem de verdade como eu”, pensou. “Pra começar, ela vai me condenar por ter roubado a pedra da pequena criatura”. Assim, resolveu esquecê-la para sempre. Apalpou a pedra no saquinho de couro que levava na cintura e foi direto para o cais do porto, sem olhar para trás.

No caminho, encontrou o feiticeiro e sentiu um ódio imenso por sua figura asquerosa. Sentiu vontade de enfiar o facão em sua barriga e cortá-lo em pedacinhos. O feiticeiro, pressentindo o perigo, ficou cinzento de medo e tratou de fugir. Quando estava a uma distância segura, deu gargalhadas. Bernardo ouviu e seu sangue ferveu, mas já não podia alcançar e matar o homem que o havia tornado infeliz.

Bernardo embarcou no primeiro navio que partia. Depois de uma viagem sem novidades, chegou em seu país natal. Ficou sabendo que o rei Aristemo havia morrido, e que em seu lugar reinava Aristemo II, que ele não conhecia. Bernardo foi ver o rei durante uma audiência pública, e propôs a troca do diamante por uma certa quantia de ouro e muitas terras. O rei pediu três dias para pensar e deu as costas. Três dias depois mandou a resposta.

— A pedra não interessa ao rei – disse o mensageiro.

Bernardo foi para o reino vizinho, onde ouviu a mesma resposta, e assim percorreu muitas terras estranhas, indo para regiões cada vez mais distantes. A cada rei ou homem rico oferecia o diamante, mas nenhum deles desejava comprá-lo.

Um dia Bernardo chegou a um castelo em meio a uma floresta e pediu pousada. O criado o deixou entrar e ofereceu os aposentos destinados aos viajantes. O castelo estava em ruínas e o velho conde agonizava no leito, tendo ao lado o filho, um senhor de olhar estranho que aguardava a morte do pai com impaciência.

Percebendo que o filho do conde era um homem ambicioso, Bernardo perguntou a ele:

— Deseja possuir o mais belo diamante já encontrado?

— Que diamante, senhor viajante?

— Este! – Bernardo mostrou a pedra e todo castelo ficou iluminado.

— Quanto vale?

— Vale muitas terras, um castelo, criadagem, boas comidas, diversão, um título de nobreza.

— Não tenho tudo isso para oferecer, mas, se você quiser, em troca dessa pedra poderá ser o dono deste castelo, assim que meu pai morrer.

— E as terras?

— Poderá ficar com as terras de nossa família e com o título de conde também. A única condição que exijo é que os criados tenham liberdade para seguir-me, aqueles que quiserem. Quem preferir, ficará.

— Quero também as jóias e o ouro guardado – disse Bernardo.

— Repartiremos meio a meio – propôs o filho do conde. — São 500 moedas de ouro puro, pesando 10 gramas cada uma. Levo 250 e deixo 250.

Bernardo havia observado as florestas, as terras férteis e úmidas do condado e imaginou vender a madeira, plantar lavouras e transformar aquilo tudo em civilização e dinheiro. Fechou negócio e pôs-se a rezar para que o conde morresse o quanto antes.

Não foi preciso rezar muito. O velho estava muito doente e logo morreu. Em vinte e quatro horas enterraram o corpo e foram aos negócios. O filho do conde cumpriu sua parte do trato e partiu, levando consigo quase toda criadagem. No castelo, ficaram apenas um casal de velhos e suas duas sobrinhas, que cuidavam da cozinha, e um jovem guardador de porcos. Dias depois, apareceram quatro rapazes pedindo emprego e Bernardo os contratou para que trabalhassem na serraria. Tinha assim nove pessoas a seu serviço.

Bernardo começou a dar ordens, mas os negócios não prosperaram. Ninguém queria comprar a madeira daquela floresta. Ninguém queria trabalhar nas terras do condado e ninguém sabia explicar por qual motivo isto acontecia.

Poucos anos depois, Bernardo morreu, intoxicado de tanto beber vinho, que mandava vir da França, e de tanto comer carne de porco. A criação de porcos do jovem criador era o único negócio que prosperava naquela terra amaldiçoada.

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SEGUNDO FINAL

Bernardo escolhe entregar a pedra

Vejamos o que aconteceu a Bernardo após a decisão de entregar o diamante ao gnomo.

Depois de refletir sobre o sofrimento que enfrentara nos últimos anos, veio-lhe à mente a face do garimpeiro que assassinara. Sentiu remorso pelo sangue derramado sobre o cascalho, e desprezo pelo cascalho cheio de ouro daquelas montanhas. Também sentiu medo da pedra brilhante e pura que encontrara dentro da lama fétida. Naquele momento, desejou tomar um grande banho morno e dormir entre lençóis limpos.

O garimpeiro olhou para a pequena criatura e lembrou que os gnomos são a força e a sabedoria dos minerais. Lembrou-se de quando era menino e sua mãe ensinava que os gnomos são encontrados nas minas e podem ensinar às pessoas onde achar minerais preciosos. Ela dizia que são seres inofensivos embaixo da terra, mas quando seus tesouros são desenterrados eles passam a viver na superfície e provocam muitas desgraças. Se os humanos não os respeitam, eles perdem o respeito pelos humanos.

Bernardo pegou o saquinho de couro com o diamante e o jogou aos pés do gnomo. Este o recolheu e disse apenas:

— Deus o abençoe.

E desapareceu, como se tivesse passado através da parede do túnel.

Um sentimento de vazio penetrou no coração de Bernardo. As lágrimas correram de seus olhos pela primeira vez em sete de anos. Não sabia se era um bobo por ter-se deixado iludir por uma criatura de trinta centímetros, impressionado por um lenda que aprendeu na infância, ou se era feliz por suas desgraças haverem terminado, finalmente. Sentia-se como quem acorda de um pesadelo. Estava cansado e foi dormir. Na manhã seguinte, chamou seus dois empregados, foram até a mina e recomeçaram a cavar cascalho. Dias depois encontrou um pequeno veio de ouro puro. Juntou tudo o que pôde, pagou o que devia aos empregados e ao restaurante e foi embora dali, para nunca mais voltar.

Levou consigo mais ou menos dez quilos de ouro, que usaria para viver confortavelmente até o final da vida. Chegou à cidade de Benemal disposto a procurar Betty. As pessoas não o reconheciam quando passava. Havia muitos estranhos na cidade. Afinal, as cidades mudam com o passar dos anos. Ele próprio sentia-se outra pessoa, depois de viver nos garimpos durante tantos anos. Seus planos eram agora obter o perdão de Betty, fazerem uma viagem para descansar e serem felizes como antes.

Faltava pouco para chegar em sua antiga casa, quando súbito sentiu um ardor estranho nas veias, uma vontade de esganar qualquer coisa. Era um grupo de homens que vinha em sua direção e entre eles estava o feiticeiro. Sentiu vontade de enfiar o facão na barriga do infeliz e picar seu corpo em pedacinhos. O feiticeiro pressentiu o perigo e ficou cinzento de medo. Mas empinou o nariz e passou por Bernardo olhando pelo canto do olho, fingindo não reconhecê-lo. Bernardo ficou pensando no que fazer com seus maus sentimentos. Estava impotente e ficou ainda mais furioso quando ouviu às suas costas a gargalhada cínica do feiticeiro.

Bernardo voltou-se disposto a matar o feiticeiro naquele instante, mas o pequeno de pessoas que o acompanhava já ia longe e se afastava. Bernardo mal percebeu que a presença daquele homem mau era suficiente para despertar seus piores pensamentos e sentimentos, e que poderia ficar louco de tanto ódio.

Felizmente, nesse instante ouviu os gritos alegres das crianças da escola, e lá estava Betty, entre as crianças, dando uma aula ao ar livre. Seus maus pensamentos sumiram. A felicidade das crianças e a figura delicada de Betty tinham o efeito de um incenso mágico.

De longe, Bernardo ficou olhando sua linda mulher, que se movimentava delicadamente em meio à algazarra dos alunos. Lembrou-se do perfume de seus cabelos lavados e sentiu-se feliz com a idéia de novamente dormir junto dela, entre lençóis sempre limpos. Lembrou como ela deslizava de modo suave os longos dedos entre seus cabelos, refrescando a nuca como o perfume da alfazema. O rosto de Betty tinha o poder de eliminar a podridão do coração humano.

Para não interromper a aula, Bernardo foi até a antiga marcenaria e encontrou tudo intacto. Bastava tirar a poeira e as teias de aranha e tudo estaria no lugar, para novamente fabricar instrumentos musicais. Se o trabalho pesado no cascalho do garimpo não tivesse tirado a destreza das suas mãos, voltaria a fabricar os melhores instrumentos musicais do mundo.

Em casa, o reencontro com Betty foi um tanto esquisito, pois o tempo muda as pessoas.

— Já sei! – disse Bernardo. — Você está namorando outro homem. É justo. Eu a abandonei há tanto tempo.

— Ora, você acha que tive tempo para outras coisas além de ensinar as crianças?

Betty olhou atentamente para seu marido e viu que ele envelhecera. Sentiu compaixão e abraçou sua cabeça contra o peito, passando os dedos entre os cabelos crescidos e sujos.

— Meu querido...

Poucos meses depois do reencontro, eles viajaram, tomando um navio para a terra onde tinham nascido. O rei Aristemo havia morrido e em seu lugar reinava Aristemo II, que eles não conheciam. Seus parentes os receberam com alegria, mas logo descobriram que Betty e Bernardo já não pertenciam mais ao seu reino. Eram pessoas diferentes, que agora pertenciam a um mundo distante, a outra civilização.

Bernardo e Betty foram ver o rei, durante uma audiência pública, e mostraram os instrumentos musicais que Bernardo fabricava e que Betty ensinava às crianças a tocar. Aristemo II examinou um por um, encantado com a perfeição com que eram construídos e acabados e pôs-se a tocar um Kântele. Desajeitado de início, logo foi pegando o ritmo e a melodia brotou milagrosamente do instrumento. Todos ficaram em silêncio, como se a música os transportasse para os mundos mágicos do início dos tempos. Betty tomou outro Kântele e passou a acompanhar a música do rei, aumentando ainda mais a magia do momento. Lágrimas corriam dos olhos dos cortesãos. O sol da tarde entrava pelas janelas do salão e as cortinas das imensas janelas ficavam momentaneamente grávidas com o vento leve que soprava.

— Quantos desses você pode fabricar em um ano? – perguntou o rei.

— Não sei. Talvez duzentos, ou trezentos. Se contratar empregados posso fabricar quinhentos, mil...

— Comprarei todos os que você produzir em um ano – disse o rei. – Com uma condição: você escolherá cinco de meus melhores marceneiros, e os ensinará a fabricar todo tipo de instrumento musical. Está de acordo?

— Se Vossa Majestade prover o espaço necessário, a madeira e as ferramentas, serei o mestre mais feliz do mundo – respondeu Bernardo.

Betty ofereceu-se para ensinar a música às pessoas do reino, para que dessem vida aos instrumentos que Bernardo fabricaria.

Selado o acordo, Betty e Bernardo foram convidados para jantar com o casal real naquela noite. À mesa, trocaram muitas idéias sobre a educação do povo e o rei prometeu para si mesmo, nessa ocasião, que dali por diante gastaria metade do dinheiro dos impostos na educação das crianças e dos adultos, e no ensino da música e das artes em geral. Enquanto as pessoas conversavam animadamente, o jovem rei ficou imaginando a construção de uma universidade e a criação de dezenas de bibliotecas e conservatórios espalhados em todo o reino. Imaginava meios de incentivar a instrução e o estudo das ciências, e de atrair para seu reino sábios de todo o mundo. Seu povo seria um dia o mais culto e feliz do mundo, e o nome de Aristemo II seria gravado na história.

Bernardo e Betty ficaram no reino por três anos, dois a mais que o combinado, mas sentiram saudades e retornaram a Benemal. De volta ao seu mundo, eles usaram o ouro colhido no garimpo para ampliar a fabricação de instrumentos musicais, reformar e ampliar a escola onde Betty lecionava, o prefeito pediu ajuda para construir um novo teatro, maior e mais bem equipado, o padre pediu um pouco para reformar o telhado da igreja, o pastor precisava de ajuda para comprar um órgão maior e mais potente e assim, de doação em doação o ouro acabou-se e eles voltaram a ser como sempre foram. Continuavam ganhando algum dinheiro com a fabricação de instrumentos musicais e com o trabalho de professora, tinham uma casa bem construída para morar, e confiavam que as pessoas da cidade os ajudariam, se fosse preciso. Era como se tivessem centenas de filhos. E se as pessoas da cidade não os ajudassem quando ficassem velhos, com certeza o rei de sua terra natal os acolheria com imensa gratidão pela ajuda que deram ao seu povo.

Certo dia, Bernardo caminhava pela cidade quando encontrou-se com o feiticeiro. Este tentou passar desapercebido, mas Bernardo chamou-o pelo nome e ele não teve como esquivar-se. O feiticeiro temia que Bernardo quisesse vingar-se por tê-lo contaminado com a beberagem verde, mas Bernardo nem mesmo recordava os maus sentimentos e pensamentos tenebrosos que tivera um dia. Perguntou ao feiticeiro com estavam sua aldeia, seus familiares, e convidou-o para um dia desses almoçarem em sua casa, e Betty poderia preparar deliciosos pratos que aprendera a cozinhar em sua terra natal. O feiticeiro aceitou o convite e ficaram de marcar um dia.

A semente do mal que um dia foi plantada no coração de Bernardo estava extinta para sempre. Às vezes ele sonhava com o diamante do gnomo, mas não se arrependia de abrir mão dele. Seu coração dizia que tinha tomado a decisão certa.

Marco Antonio Mondini
Enviado por Marco Antonio Mondini em 06/07/2014
Reeditado em 08/08/2023
Código do texto: T4872304
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