O anjo da morte - prólogo.

- Miseráveis são aqueles que ainda acreditam na salvação. Tudo o que sobrou do mundo foi o inferno, meu amigo. Só que ao invés do diabo, sobrou ao desgraçados deixados para trás atormentarem as vidas uns dos outros.

Raul ouvia seu amigo com muita atenção, apesar de seu discurso ser sempre repetido e regado a qualquer bebida alcoólica que encontrassem no caminho. Apesar dos seus mais de dois metros de altura, ainda se sentia inferior frente àquele homem com longos cabelos e barbas grisalhas que não devia ter mais que 1,70 m. Ambos estavam sentados no meio fio, em frente a uma casa de bela arquitetura moderna, mordiscando alguns restos de salgadinhos que ainda não tinham sucumbido ao bolor e tragando uma garrafa de vodka que encontraram fechada e escondida em um dos quartos. O sol já se escondia no horizonte,e além dos dois e uma nuvem de mosquitos, mais ninguém estava por perto.

- O inferno só existe nas nossas cabeças, Lino. - disse Raul melancolicamente.

- Heh, minha cabeça tá muito zoada então Raul, porque pra mim a gente tá afundado num grande monte de merda.

Lino já estava com os olhos injetados e a língua enrolando, sinal de que logo cairia em um sono profundo, e caberia a Raul arrastá-lo para algum abrigo. Ele, ao contrário, não sentia efeito nenhum das bebidas. Já tinham entornado garrafas de Wisky, vinho, vodka, cervejas e outras que nem sabia o que era. Nada conseguia deixá-lo nem ao menos com a língua mais solta, seja qual fosse a quantidade.

Ele se levantou, esticando as costas e fazendo-as estralar. Usava um moletom com gorro,o qual cobria sua cabeça sem cabelos. Aliás, Raul não tinha pelos em nenhum lugar do corpo. Tinha a pele muito alva e os olhos vermelhos. Lino dizia que ele devia ser albino,por isso nunca deixava que andasse durante o dia sem usar o gorro, e se o sol estivesse muito forte, eles paravam em algum lugar coberto até que a tarde caísse. Na verdade, nunca sentira nenhum incômodo com o sol, mas como não se lembrava de nada, não custava seguir esses conselhos. Ele fora encontrado pelo amigo no chão da sala de uma casa, apagado e nu, exceto por uma bandeira do Raul Seixas que usava para se cobrir. Não sabia como havia chegado ali, apenas acordou com Lino o chacoalhando e segurando um copo de água. "Ei, acorda aí. Qual é o seu nome? Você parece que tá fodido pra caramba." Quando disse que não sabia quem era, nem de onde viera, o novo conhecido logo passara a chama-lo de Raul que, segundo este, era um cantor "do caralho". Desde então perambulavam juntos, sobrevivendo no mundo após o fim.

Raul observou Lino, um antigo professor de inglês, com a pele queimada pelo sol e profundas rugas no rosto. Franzino e com um sorriso bondoso, ele provavelmente havia salvado a sua vida.

- Vamos descansar por aqui hoje. Antes que você apague aí mesmo.

Ele ajudou o velho a se levantar e juntos entraram na casa. Havia dois sofás da sala, um de 3 e outro de 2 lugares. Lino se jogou no menor, iniciando imediatamente uma familiar sinfonia de roncos. Raul se deitou no maior, observando as moscas que zumbiam à sua volta. Ele demoraria muito a dormir, passava pouco das seis da tarde. Essas moscas. Tem moscas por todo lugar. No final, além de milhares de humanos, apenas as moscas habitam a Terra. Será que elas são piores que nós, ou o contrário? Ou elas podem estar aqui apenas pra fazer o serviço de limpeza final. Vão consumir os corpos dos que morrem até não sobrar vestígio de nada. Aí, quem sabe, elas alcançarão seu lugar no paraíso. Divagar era tudo o que podia fazer. Por mais que tentasse,não conseguia se lembrar de seu passado. Não lembrava nem mesmo do apocalipse. Lino lhe contara que a guerra não havia durado muito. Um dia simplesmente um trombeta foi ouvida. Parte das pessoas foi imediatamente tomada de uma luz e desapareceram. As que ficaram foram atacadas por demônios por alguns dias, os quais também desapareceram sem mais nem menos. Desde então, restava sobreviver consumindo o que sobrara na Terra. Não havia mais animais para matar, e a terra se tornara infértil. As árvores estavam morrendo, e as pessoas se matavam por qualquer coisa. Apesar de ainda não ser difícil achar suprimentos (Deus salve os conservantes, Lino sempre dizia), água era um produto caro.

A escuridão já tomava o mundo quando Raul escutou um barulho de pés nos fundos da casa. Aquele "tum" abafado de alguém pousando no chão. Esperou mais alguns segundos, o corpo tenso, ouvidos atentos. O som de alguém tentando abrir a porta da cozinha despertou seus sentidos e ele se levantou silenciosamente. Andou até a cozinha, devagar, esperando que a qualquer momento alguém invadisse a casa. Cerrou os olhos, tentando enxergar no breu e identificou um brilho de uma lâmina em cima da mesa. Pegou a faca e voltou para a sala, onde uma janela deixava vislumbrar o exterior. Enquanto tentava ver alguma coisa, o barulho de alguém pulando a janela de um dos quartos o surpreendeu, tirando todo o ar dos seus pulmões. Ele olhou para o amigo dormindo, os barulhos dos roncos dele deve ter atraído alguém, pensou. Respirou fundo e andou até o quarto. A porta estava aberta. Vagarosamente, tomando coragem, foi até ela com as costas encostadas na parede. O corredor era estreito e claustrofóbico. Contou até três e entrou, a faca em punho. Além da janela aberta, não viu nada. Esperou os músculos relaxarem, e notou que havia algo errado. Não ouvia mais os roncos de Lino. Sem pensar, correu de volta para a sala e estacou em frente ao sofá menor, sem sinal do velho. Antes que pudesse pensar mais alguma coisa, algo pulou nas suas costas, agarrando ao seu pescoço. Seja lá o que fosse, guinchava e o apertava forte. As mãos eram grandes e as unhas afiadas, as quais arrancaram um filete de sangue logo abaixo da sua orelha. Raul se debatia, tentando se livrar. Em um movimento brusco,tropeçou nas próprias pernas, desabando de frente. A faca voou da sua mão e ele tentou se apoiar na queda, sentindo uma dor aguda no cotovelo ao alcançar o chão. Eu vou morrer. Mataram Lino e eu vou morrer. Finalmente. Quando instintivamente levou as mãos à nuca para se proteger, ouviu uma pancada e um grito horrendo. A criatura o soltou e ele ouviu mais uma pancada, e mais uma. Quando se virou, viu o amigo arrebentando algo que se debatia no chão com um cano de ferro. Mais algumas pancadas e a coisa ficou quieta.

- Pega a lanterna na minha mochila. Atrás do sofá. - disse Lino arfando.

Raul correu até o sofá menor, passando a mão onde estava machucado e sentindo o sangue escorrer. O cotovelo ainda doía. No caminho, recuperou a faca que estava no chão. Achou a lanterna dentro da mochila e lutou para ligá-la com as mão tremendo. Quando o faixo de luz invadiu o cômodo, ele se aproximou do outro. Apontou para o que o tinha atacado. Era uma criatura com a pele cinza e grossa, garras nas mãos e nos pés. Um rabo saia detrás do seu corpo, mas o rosto era um massa de carne desfigurada e sangue negro. Lino o tinha pegado de jeito.

- O que é isso?

- Isso, meu caro, é um demônio. Um diabinho,um capetinha. Dos menores. No dia do apocalipse tinha uns bem maiores.

- Demônio? Eu achei que eles tivessem sumido. Você disse.

- Tinham. Pelo menos eu nunca mais vi nenhum. Mas parece que esse aqui esqueceu o caminho de casa, ou voltou pra fazer uma boquinha.

Lino fez uma careta e cuspiu no demônio. Jogou o cano de ferro no chão, pegou a garrafa de vodka e deu um longo gole. Depois continuou.

- Eu escutei um barulho e acordei. Quando vi que você não estava ali, corri para fora. Eu tinha visto esse pedaço de cano encostado no muro do vizinho. Quando eu voltei, ele tava grudado no seu cangote.

- Eu ouvi ele entrando, mas deve ter passado por mim e não percebi.

- Calma. Essa coisa pode ser bem furtiva. Mas o que importa é que tá morto.Vamos procurar outro lugar pra dormir. Um lugar que possa ser bem trancado. Pega suas coisas.

Os dois pegaram suas mochilas e saíram na noite. O arranhão queimava no pescoço de Raul, mas não sangrava mais. Seu cotovelo começava a inchar.

- E eu achei que o único problema eram as outras pessoas. - disse Raul depois de um tempo.

- E eu achei que já podia deixar de bancar a babá. - Lino olhou fixamente para aquele homem alto e branco como uma vela. - Agora olha pra mim e diz que o inferno tá só nas nossas cabeças cara. Heh.

Rafael Brandão Moretti
Enviado por Rafael Brandão Moretti em 28/06/2014
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