Saudades da infância

Compondo meus versos de hoje, deixei algo transparecer em minhas recordações, reminiscência de minha infância pelo sertão do Paraná. Em pequenos versos ficaram descobertos perdões que devo pedir a mãe natureza, pelos crimes hoje ambientais que na época eram necessários às brincadeiras e diversões de crianças e adolescentes. Tinha meu cachorro amarelo com grandes manchas pretas; seu nome era pandeiro em homenagem aos tocadores de foliões de Santos Reis.

Admiração espantosa nutria por esta gente e suas tradições, principalmente suas festas realizadas no dia 06 de janeiro, e eram grandes e fartas. Toda a festança era proveniente de prendas arrecadadas na comunidade por onde passavam, e, em casa havia o presépio, repetidos, anos e anos a fio, uma tradição de família, mas para eu sempre era novo, um belo espetáculo. Mas voltemos ao meu pandeiro, ou melhor ao cachorro pandeiro, meu fiel escudeiro daqueles tempos de infância. Nossas aventuras nos finais de semana principiavam cedo, afinal levantávamos de madrugada, costume de roça, e, aos domingos era mais cedo ainda, pra ter mais tempo de folga e mais brincadeiras. As andanças pelas vizinhanças, sítios, matas, riachos, acompanhado pelo pulguento pandeiro; ficavam intensas. Cobras, lagartos, bichos mil, eram sempre acuados e às vezes mortos pelo valente.

Mamãe não se compadecia do bicho, quando eu falava que ele havia alertado do perigo da temente cascavel; dizia-me que sempre fora salvo pelo meu anjo da guarda que estava de plantão, e, minha obrigação era rezar sempre antes de dormir e pedir a ele proteção, bicho bruto e tonto este cão e enxotava o bicho que estava ao meu lado. Sempre rezava, fazia minhas orações, pedia, mas o que via e solicitava era para que mantivesse saúde e vitalidade para o meu cão, esse sim perceptível e benfeitor.

Recordo-me de um domingo que não sai da lembrança, eu e o pandeiro saímos por este mundo, e já nos primeiros passos, vi um pássaro, bem- te- vi, anu preto talvez, não sei ao certo; ocorre que na primeira estilingada o animal veio ao chão. Lamento hoje e agora esse infortunado momento. Naquele instante lembrei-me do Geraldo nosso vizinho, que, quando mudamos pro mato; uma arvore abriu sua cabeça, quando derrubava a mata e ele morreu. Mamãe falou que ele foi para o céu. Já corria algum tempo deste infortúnio, papai lá no sertão era quem fazia os caixões de defunto, quiçá por isso a lembrança. Vendo o cadáver do bicho não pude deixar de recordar, e o pêlo do braço arrepiou, o medo calou bem alto e o silêncio se pôs, mas o pandeiro estava presente e fingi coragem. Para fugir o pensamento, comecei a recordar da ultima quinta-feira em que o patrão trouxe da cidade a pick- up era assim que chamavam a vitrola, e os discos começaram a tocar os caipiras (duplas sertanejas) era muito bom de ouvi-los naquele tempo, meu pai fazia questão de pronunciar long play (LP de alta rotação), e discutia-se mais a qualidade do equipamento do que propriamente as musicas.

Naquele dia, acho que surgiu o gosto pela poesia, uma dupla se fez presente e foi a primeira vez que vi uma viola e um violão ao vivo e a cores, e sei que cantaram muito e um refrão dizia que “cantamos como cigarras nas tardes de fevereiro”. Era pra eu este refrão, meu aniversário era aquele dia, meu mês era fevereiro que alegria em receber de presente uma musica daqueles artistas do mato (caipiras). Mas o medo não passava não, o fantasma do Geraldo estava ali eu sabia e o pandeiro denunciava; inquieto, arrepiava, olhava pelo chão e latia, só ele via eu não. O pânico chegou e junto com ele o terror, pois naquele momento um forte barulho fez se ouvir e no alto do céu reluzente daquele sol de domingo que deveria ser o mais feliz surgiu uma cruz de prata barulhenta que nunca tinha visto; era meu fim. O fim do mundo que minha mãe via e descrevia, segundo ela estava nas escrituras... começou. Só sei dizer que corri e lá no sertão as pessoas falam que pernas foram feitas pra que te quero e então foi correr, eu era bom nisso. Aos saltos tremendo de medo, cruzava pelo mato, atravessei o riacho, abandonei o pandeiro e ganhei o estradão, rumo ao rancho de pau a pique e escondi debaixo da tarimba (cama de peão). Quando contei aos meus o ocorrido, risadas foram soltas, fui saber que o barulho e a cruz no alto do céu era o tal do avião a jato que voava nas alturas rumo ao estrangeiro, mas era tarde e o medo à covardia não deixaram salvar o cão.

Falaram-me que a noite ele viria, mas muitos dias se passaram e nada, disseram-me então que o pandeiro foi morto por uma serpente. A verdade nunca soube, tenho vaga lembrança de que enquanto corria pude enxergar riscando o céu o pandeiro voando como um raio atravessando o horizonte de ponta a ponta e sumir, acho que naquele dia meu anjo da guarda deixou a terra e me protege do alto, bem lá do alto onde pode ver os maiores perigos e alertar-me. Para ele eu completo o verso da tarde:

Lembrança da infância

Frio da manhã, calor da tarde, passeio no campo, banho na cachoeira,

cheiro de goiaba, frescor da noite, dinheiro novo num domingo cedo, presente do vô...

E grande saudade do meu pandeiro, fiel escudeiro que voou.

Luiz Carlos Zanardo
Enviado por Luiz Carlos Zanardo em 28/06/2014
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