O poço empoeirado
Quando a luz da aurora e todos os seus males acertaram com ímpeto uma vez mais a escotilha enferrujada do poço abandonado, um dos pequenos e intrometidos raios que, em deboche, provinham do sol oniinsistente penetrou a escuridão palpável, terrível e assustadora que por acaso feliz resolveu se instalar no interior do poço há muitos anos. Com enxerimento, havia penetrado por um minúsculo buraco criado pela ferrugem e acertou o fundo, ainda que um fundo ainda mais fundo existisse. Preenchendo apenas uma fração minúscula do espaço, iluminou frações minúsculas de monstros, decepções e ilusões perdidas. Permanecendo ali como um mastro da violabilidade, em seu segmento último iluminou uma lembrança atroz, vil e patética. Iluminou e prosseguiu a iluminar até perceber, com certo desgosto, que o poço não dava o menor sinal de vida. Ali, as partículas de poeira que vagavam por entre as escamas dos dragões e as garras dos peixes abissais, eram as únicas formas não vivas e, ainda assim, eram as responsável pela única semelhança do vivo. Resignado e, por último, decepcionado, como se a força da morte ali fosse tão inexpugnável que contagiasse até um maldito raio de luz, passou a escurecer e tornar-se distorcido no tempo e no espaço até que, minguando com vergonha infinita, deixou de existir quando por maravilhosa coincidência um tronco velho tratou de cair por sobre a fenda de onde provinha e a partir desse momento o que fora a luz era, então, algo que se escondia nas paredes cheias de musgo, suor e catarro.