Cap. 1: O Caçador Exilado
É noite. As pessoas na grande metrópole seguem seus caminhos, seja a pé, em veículos públicos ou carros particulares. Os pedestres evitam as ruas congestionadas, andando em frente mas sempre com os olhos varrendo os cantos escuros da cidade à procura de qualquer ameaça. Ladrões, assassinos e maníacos são comuns, e aguardam a hora de surpreender uma vítima desavisada. Naquela noite em especial, entre os transeuntes caminha uma pessoa que está alheia a estas preocupações. Ele sempre gosta de sair nas noites de chuva, com um capote escuro e um chapéu que esconde boa parte de seu rosto. Os passos são rápidos e firmes, o corpo levemente inclinado para a frente, as mãos nos bolsos. As esquinas passam, luzes de carros e postes iluminam a paisagem urbana. Quando os prédios começam a ficar mais altos, acusando que o centro da cidade está cada vez mais próximo, ele pára em frente a uma porta. Comum, porém enfiada em um pequeno prédio comercial em meio aos arranhacéus. Uma luz emana das frestas e é possível ouvir um som de música ao longe. Ele bate três vezes na porta e aguarda. Alguns instantes depois alguém abre uma pequena fresta na altura dos olhos.
-Perdido? - uma voz pergunta lá de dentro.
-Na chuva todos os perdidos se encontram.
A porta se abre e uma luz avermelhada invade a noite, pintando os pingos da chuva como lágrimas de sangue. Ele passa por um brutamontes que precisa se encolher para caber na pequena passagem. Ele veste um terno apertado e surrado, um boné cobre a enorme cabeça. Seu rosto é liso e sem nariz, seus olhos pequenos e negros. Quando fala, é possível ver dentes afiados na sua boca.
- Boa noite Marco. Isso aqui tá uma loucura hoje. Do jeito que tu gosta. - diz o leão de chácara
- Boa noite Bruto. Isso seria ótimo, mas meu assunto aqui é outro. Vim falar com o teu patrão.
- Xiii. Ele não tá com uma cara muito boa hoje não. Aconteceu alguma coisa?
- É o que eu também quero saber.
Marco segue pelo corredor, deixando a grande criatura para trás. Ele gostava de se perder nas badaladas noites do Clube Alcares, mas dessa vez não encontraria diversão ali. O que era uma pena, já que aquele ano não havia chovido muito. No fim do corredor, uma curva para a esquerda leva a outro corredor que se alarga gradualmente. Ali, alguns casais se enroscam na penumbra, sem ser possível identificar gênero ou raça. Um deles para um instante à sua passagem e o observa com olhos injetados. Mostra a língua bifurcada indicando que a aparência humana é apenas um disfarce. Ao fim da passagem ele atravessa uma porta dupla para adentrar em um caos de música, luzes e criaturas. Muitos dançam, alguns observam parados. Drogas e bebidas de todo tipo passam em bandejas levadas por garçonetes humanas escravas, cujos olhos e língua são arrancados para que não se distraiam. Ele passa por um grupo de mulheres que dançam maliciosamente, se acariciando enquanto seus corpos se entrelaçam em um frenesi de luxúria. Vampiros são mestres na arte de seduzir, e pelos olhares masculinos e femininos sobre elas, haverá um banquete esta noite.
Ele segue, passando por gnomos sendo agradados por prostitutas de olho em suas inacabáveis joias, ogros se banqueteando com carne crua e enormes canecas de cerveja, demônios se divertindo antes de buscarem almas inocentes por aí, fadas trocando magia por um pouco de suja humanidade. E, claro, humanos desavisados achando que descobriram a melhor casa noturna do mundo. Mal sabem que são apenas iscas, petiscos e alimentos. Nada de novidade por ali
Em um canto do salão, uma escada leva a um nível mais baixo, protegida por uma dupla de homens idênticos. Baixos, magros e letais. Em suas cinturas, um conjunto de facas mostra a que vieram.
- Quero falar com Alcares. - diz Marco sem rodeios.
- Ele te espera. - respondem os dois em uníssono, abrindo caminho.
Marco desce, suas roupas ainda deixando um rastro de pingos de água pela escada. No fim dos degraus, leva a mão para uma campainha ao lado de uma porta de ferro, mas um estralo acusa que a fechadura acabava de se abrir. Ele avança, entrando em uma sala redonda, luxuosa e com um forte cheiro de charuto. No centro, sentado em uma cadeira de encosto alto, em frente a uma mesa de tampo de vidro, está um anão, com longos cabelos presos em um rabo de cavalo que vai quase até os seus pés. Os olhos levemente estrábicos e um grande e torto nariz adornam um rosto liso e duro. As roupas são compostas de um terno impecável sobre uma camisa caríssima, calças de um negro profundo e sapatos tão brilhantes que é possível fazer a barba se espelhando neles.
- Ora, ora, até que enfim. O grande e importante Marco "O Caçador" Valente está de volta ao meu humilde estabelecimento. - diz o pequeno homem.
- Faz tempo que não chove, Alcares.
- É, é, e meu lucro vai pro beleléu. Maldito aquecimento global, Marco, maldito aquecimento global!
- Você sabe que tem uma parcela de culpa nisso, Al. - diz, tirando o chapéu para revelar seus emaranhados cabelos vermelhos.
- Bah! Aquelas ninfas se ofendem muito fácil. Uma oferta Marco, foi só uma oferta. Poderiam ficar ricas aqui, bastava agradar meus clientes com aqueles lindos rostinhos e corpos perfeitos. Uma abridinha de pernas aqui e acolá, ora, que mal faria. Não precisavam zoar com o clima mundial por isso, porra!
O anão pula da cadeira com uma agilidade que apenas anos de necessidade podiam proporcionar. Alcares já fora um guerreiro na sua dimensão, respeitado entre os amigos e temido pelos inimigos. Ninguém sabia seu nome verdadeiro, nem porque escolhera se tornar dono de uma boate clandestina em São Paulo. Os dois apertam as mãos, e Alcares oferece uma cadeira a Marco.
-O Bruto disse que você não estava com uma cara muito boa. E ele não estava mentindo.- Diz Marco, sentando-se e se servindo de um punhado de jujubas de um pote de vidro sobre a mesa.
- Aquele brutamontes anda muito curioso e de língua solta, isso sim. - responde o anão voltando ao seu lugar, enquanto retira de uma gaveta na mesa uma caixa de charutos. - O trabalho dele é fazer a segurança, não ficar abrindo o bico pra qualquer um que entra aqui.
- Assim até me ofende Al. E não fique bravo, você não vai achar outro ogro obediente dando sopa por aí. O que eu quis dizer é que a casa está cheia, como há muito tempo eu não via. E a chuva parece que não vai parar tão cedo.
Alcares corta a ponta de um dos charutos que tirou da caixa, põe na boca, acende com um isqueiro em formato de uma mulher nua e dá uma profunda tragada. Quando solta o ar, uma nuvem de fumaça densa impregna o ambiente com um cheiro forte e adocicado.
- Nem todo vento forte é um bom sinal, Marco.- ele abaixa a voz gradativamente- Você viu aquelas vampiras lá fora? Elas nunca foram tão provocantes. E as fadas, hã? Estão malucas, trocando magia por prazer sem pensar duas vezes. Até minhas garçonetes andam servindo mais rápido. Vai dizer que não anda tendo sonhos mais reais meu amigo? Ou sentindo um comichão nessas mãos cheias de magia.
Marco acabou de engolir uma jujuba verde, sua favorita, e encarou o homenzinho.
- Eu realmente ando me sentindo meio estranho. Como se pudesse quase... Tocar a magia.
-Magia, Marco, magia! Algo está aguçando a magia. Alguma coisa está acontecendo por aí, mas ninguém sabe me dizer o que.
-Por isso me chamou aqui? Acha que tenho algum palpite?
- Talvez. Mas como já vi que não tem, você ainda é o melhor para descobrir o que diabos está rolando por aí. O último mago, caçador de monstros, conjurador de catástrofes, o impronunciável, o grande Marco Valente.
- Se está achando que eu vou voltar pra lá, Al, tá muito enganado.
- Eu sabia que diria isso.
Então Alcares abre uma outra gaveta, esta trancada, com uma chave que ele retira de uma corrente no pescoço. De lá, retira um objeto que brilha à luz do aposento, criando um espiral de cores na frente dos seus olhos. Um pequeno ovo feito de vidro.
- Onde você arrumou isso? - pergunta.
- Veio até mim. Entregue por uma figura que evaporou depois de me dar isso envolvido em um pano. É vidro draconiano de verdade, Marco. Está quente.
Marco olha para o pequeno objeto e um misto de raiva, medo e tristeza toma conta do seu peito. Ele sabe que um vendaval está prestes a surgir.