Gideão e Mehabel

Era uma vez um menino feliz chamado Gideão. Morava em uma pequena aldeia onde todos cultivavam o campo, criavam animais, eram amigos entre si e viviam em harmonia.

Gideão tinha uma amiguinha chamada Mehabel. Ambos iam à escola juntos, faziam as lições de casa lado a lado e saiam correndo para brincar todos os dias.

Um dia, os pais de Mehabel foram morar em um lugar distante. Gideão chorou de saudade, mas logo esqueceu-se dela e viveu a vida normal dos adolescentes.

Uma bela noite, Gideão teve um sonho confuso. Nele aparecia a imagem de uma linda princesa que o chamava. Ficou perturbado, mas procurou não pensar nisso. Dias depois teve o mesmo sonho e assim durante muitas noites a princesa apareceu nos sonhos do rapaz, chamando-o. Ela dizia precisar dele ao seu lado. Gideão perguntava por quê, querendo também saber quem era ela.

— Sou Mehabel. Lembra de mim? – disse a princesa, em um dos sonhos. — Eu vivo na Terra da Chave do Tamanho e quero você ao meu lado.

A lenda da Terra da Chave do Tamanho dizia que nesse lugar as pessoas e animais podiam tornar-se gigantes, ou minúsculos, apenas pronunciando as palavras mágicas.

— Mas a Terra da Chave do Tamanho não pode ser alcançada. Só pessoas especiais chegam lá – respondeu Gideão.

— Ora, Gideão. Você é especial – disse a princesa.

Ouvindo isso, na manhã seguinte Gideão se pôs a caminho, sem falar nada aos pais. Disse apenas que ia buscar o seu lugar no mundo.

Andou dias e dias, seu dinheiro acabou. Pôs-se a trabalhar aqui e ali para comer e seguir um pouco mais adiante. Os anos passaram e muitas coisas aconteceram, até que ele começou a duvidar da existência de um lugar onde as pessoas sabiam mudar de tamanho e de aparência pronunciando palavras mágicas. Conversando com amigos sobre esse assunto, um deles assegurou que já estivera nesse lugar. Era um país interessante e também de muitos perigos, pois lá as pessoas podiam tornar-se gigantes muito fortes ou formiguinhas mínimas.

— Onde fica esse país? – perguntou.

— Fica no Oriente, além do Desfiladeiro da Transmutacão – foi a resposta.

— Oriente é o lado onde nasce o sol, certo? Muito obrigado pela informação – disse Gideão, e naquele mesmo instante levantou-se a partiu.

Bússola na mão, Gideão danou-se a caminhar na direção Leste, perguntando sempre onde ficava o Desfiladeiro da Transmutação, e recebendo as respostas mais variadas. Meses depois chegou ao mar e nada tinha encontrado. Conseguiu trabalho em um navio e atravessou o oceano. Após desembarcar, prosseguiu a viagem em outro continente, sempre no rumo do Oriente. Atravessou um imenso deserto, conheceu povos de costumes estranhos, chegou a uma cidade maravilhosa, onde onde resolveu permanecer alguns dias, para descansar. Mas nessa cidade conheceu uma linda mulher e por ela apaixonou-se. Casou e teve com ela dois filhos. Para sustentar a família, vendia tapetes no bazaar do sogro.

Sete anos depois, tornou a sonhar com a Princesa Mehabel, que o chamava para estar ao seu lado, e abandonou a esposa, para continuar sua viagem até a Terra da Chave do Tamanho. Atravessou uma cordilheira imensa, a maior do mundo. Conheceu picos de neve tão altos, onde o ar era tão frio e escasso que ele quase morreu. Deparou-se com u'a muralha imensa e para contorná-la levou vários meses. Além dessa cordilheira, conheceu povos prosperando com o cultivo do arroz. Tinham costumes estranhos, alguns de uma delicadeza transcendental, outros espantosamente cruéis.

De tanto andar, mais uma vez chegou à beira do mar, mas esse era um oceano diferente do primeiro. Engajou-se na tripulação de um navio mercante e partiu. Atravessou o oceano e desembarcou em um novo continente, mais estranho ainda, quase tão montanhoso quanto aquele das montanhas altas e frias. Estava doente e fraco de tanto viajar dentro de um navio, e foi salvo por um curandeiro que fazia música com um instrumento composto de vários canudinhos de bambú.

Depois de curado, prosseguiu viagem. Cruzou as montanhas e adentrou terras muito parecidas com aquelas onde nascera. Para sua surpresa, era de fato o lugar onde nascera e vivera a infância, há muito tempo. O mundo é redondo e Gideão havia dado uma volta completa nele. Encontrou seus pais já velhos e resolveu tomar conta das lavouras da família. Poucas safras se passaram e a Princesa Mehabel tornou a aparecer em sonhos, chamando-o para a Terá da Chave do Tamanho.

Desta vez Gideão resolveu não mais seguir viagem, pois daria outra volta no mundo e não encontraria o Desfiladeiro da Transmutação. Porém, alguns dias depois, estava bebendo vinho na taberna com os amigos, e outra vez ouviu falar do Desfiladeiro da Transmutacão.

— Onde fica, afinal, esse lugar? – perguntou.

— Fica no Oriente – foi a resposta.

— Pois bem, dei a volta ao mundo, sempre na direção do Oriente, e nada encontrei – retrucou.

— Amigo, só sei dizer que o desfiladeiro existe e fica na direção do Oriente – disse a pessoa, sorrindo.

Gideão passou uma noite atormentada, mas na manhã seguinte pôs-se a caminho mais uma vez, tomando o rumo do sol nascente, um pouco mais ao Norte que na primeira vez. Poucos dias depois, ao cair da tarde, exausto mas ansioso e cheio de coragem, viu diante de si uma montanha imensa que parecia uma muralha. Nela havia uma estreita fenda na rocha, reta, de cima até embaixo. Sem pensar muito, foi entrando pela fenda, e era um desfiladeiro, com paredes muito altas e chão de areia.

Enquanto caminhava ouvia sons estranhos. Eram gargalhadas, choro de recém-nascidos, risos de crianças brincando, vozes emocionadas de cantores, uivos de dor, zum-zum de gente conversando, farfalhar de multidões aplaudindo, todo tipo de vozes humanas. Nesse desfiladeiro se podia ouvir as vozes de todas as pessoas do mundo, do passado, presente e futuro. Era assustador, mas Gideão estava cheio de coragem e determinação, e superou o medo.

Quilômetros adiante, o ar começou a ficar quente e Gideão viu fogueiras enormes travando o caminho. As labaredas iam quase até o céu. É o fim do caminho, pensou. Tentou avançar, desviando as primeiras labaredas, mas logo desistiu, porque o calor era intenso.

Retornou à entrada do desfiladeiro, e ali chegou quando já era noite. Dormiu ali mesmo e tornou a ver em sonhos o rosto de Mehabel, que dizia:

— Não desista, Gideão. Não desista. Não tenha medo do fogo que não queima. Mantenha em sua mente apenas a imagem do seu objetivo, e você o alcançará. Livre-se das idéias ruins. Elas são apenas idéias, são fantasmas criados pelo teu próprio cérebro. Pense apenas que você chegará na Terra da Chave do Tamanho, e logo você chegará.

Acordando pela manhã, ainda sonolento, Gideão sentou-se sobre uma pedra e disse para si mesmo: "É impossível atravessar a Transmutação. Vou esquecer essa loucura e viver aqui mesmo. Me consolará saber que Mehabel está mais perto, no outro lado deste desfiladeiro".

Pela manhã começou a construir uma cabana de pedras e troncos e a preparou um campo para plantar comida.

Os anos foram passando e de vez em quando ele tornava a sonhar com a princesa. Acordava perturbado, mas o cansaço do trabalho no campo o fazia voltar a dormir serenamente após cada sonho. Um belo dia passou por lá uma caravana de carroças e o chefe do grupo, vendo que as lavouras de Gideão cresciam numa terra tão árida, perguntou como conseguia tal milagre.

— Faço irrigação artificial – respondeu.

— Puxa, que bacana! Podemos ficar aqui para aprender?

— Por que não? – respondeu.

De fato, o lugar onde Gideão vivia era uma terra árida, onde chovia poucas vezes por ano, mas ele cavara buracos para guardar a água da chuva, e, usando pedras, construíra canais subterrâneos para levar a água até as plantações.

Os viajantes levantaram acampamento cerca de três quilômetros dali, e ficaram dias e dias, meses e meses, anos e anos, e quando deram por si haviam fundado uma cidade próspera graças às técnicas de irrigação artificial ensinadas por Gideão.

Gideão era amigo dos moradores da nova cidade, e acreditava que havia encontrado o seu lugar no mundo. Mas no fundo do coração não esquecia o desejo de encontrar a Princesa Mehabel, na Terra da Chave do Tamanho.

PARTE II

Um dia, conversando com as pessoas da cidade nova, Gideão ouviu dizer que era possível atravessar o Desfiladeiro da Transmutação pronunciando palavras mágicas para superar o “fogo-que-não-queima”.

Gideão mostrou-se interessado:

— Que palavras são essas?

— Não adianta eu dizer. Se disser, você não acreditará – respondeu o amigo.

Gideão irritou-se:

— Então porque não fica de boca fechada?

Ele procurou esquecer o episódio, mas não conseguia, porque lembrava que num dos sonhos Mehabel havia falado sobre o “fogo-que-não-queima”, exatamente como dissera a pessoa da cidade.

Dias depois, viu alguém entrando pelo desfiladeiro e seguiu seus passos. Ao chegar diante da fogueira da Transmutacão, a pessoa parou, ergueu os braços e exclamou:

— Eu declaro ser capaz de atravessar o Fogo da Transmutação e chegar à Terra da Chave do Tamanho.

Dito isto, a pessoa pôs-se a caminhar pelo fogo e desapareceu nas chamas. Gideão ficou impressionado e resolveu fazer o mesmo. Aproximou-se das chamas, ergueu os braços para o céu e exclamou:

— Eu declaro ser capaz de atravessar o Fogo da Transmutação e chegar à Terra da Chave do Tamanho.

A fogueira continuava assustadora, mas Gideão encheu-se de coragem e entrou através das chamas. O fogo queimava, ele sentia dores terríveis, os pés tropeçavam nas pedras e, sem enxergar onde ia, batia o corpo e a cabeça contra as paredes do desfiladeiro. Pensou em voltar, mas logo percebeu que isso não o salvaria mais. Foi em frente, mas perdeu os sentidos e caiu por terra.

Sem saber por quanto tempo estivera desmaiado, Gideão recobrou os sentidos e verificou que o fogo havia desaparecido e ele não sentia mais nenhuma dor.

Gideão, que já possuía 41 anos, agora sentia-se jovem novamente, com as energias renovadas. O fogo o transformara em outra pessoa.

Caminhou até o final do desfiladeiro, encontrou um lugar maravilhoso, mas não havia pessoas lá.

— Que droga! Vivi minha vida para chegar aqui e agora que cheguei não tem ninguém?

— Procura alguém? – disse uma voz miudinha.

Era um ser humano tão pequeno quanto um dedo da sua mão.

— Quem é você?

— Meu nome é Pequeno.

— Aqui todo mundo é pequeno?

— Não. Alguns são gigantes.

— Por que alguns são pequenos e outros são gigantes?

— Há os médios, também. Quer ver?

O homenzinho ergueu os braços e exclamou:

— Eu declaro ser médio!

Dito isto, ele ficou do mesmo tamanho que Gideão.

— Puxa que bacana! Posso mudar de tamanho também?

— Claro. Na Terra da Chave do Tamanho basta pronunciar as palavras mágicas.

Gideão ergueu os braços e disse:

— Eu quero ser gigante!

Nada aconteceu e o homenzinho explicou:

— "Eu quero" é outra mágica. Só funciona na Terra dos Anjos Sem Asas. Você deve dizer "eu declaro". Você não lembra das palavras mágicas que usou pra passar pelo fogo da transmutação?

Gideão entendeu e disse:

— Eu declaro ser gigante!

Passados alguns instantes de vertigem, ele começou a ver todas as coisas muito pequeninas. Era um gigante, agora. As árvores mal chegavam na altura dos seus joelhos. Ficou encantado com a novidade, e saiu caminhando, com passos de gigante. Sentiu sede e foi beber a água de um córrego, mas o córrego para ele era apenas um fiozinho de água que mal dava para molhar a língua. Ele olhou as árvores e viu que seus frutos eram minúsculos. Assim, logo compreendeu que morreria de fome e sede, se permanecesse na forma de gigante o tempo todo. Mais que depressa tratou de escolher outro tamanho:

— Eu declaro ser pequeno!

De repente Gideão estava em meio a uma floresta gigantesca, com árvores de 70 metros de altura. Os besouros tinham quase dois metros de comprimento. Um pássaro dez vezes maior que ele passou voando e fez tanto vento que quase o derrubou. "Puxa, como é perigoso ser pequeno!" pensou. Nisso, do alto de uma árvore caiu uma fruta enorme, do tamanho de uma abóbora moranga, e quase o esmagou.

“Puxa, como é perigoso de pequeno”, pensou.

Estava com fome, resolveu comer a abóbora, mas verificou maravilhado que na verdade a fruta era uma pitanga. Como ele estava pequeno, a pitanga, que geralmente tem o tamanho de uma unha, para ele ficava do tamanho de uma enorme abóbora, que dava para várias refeições.

Depois de fartar-se, para livrar-se dos perigos de ser pequeno, solicitou ser médio novamente. Em seguida, acomodou-se num lugar protegido e dormiu, para descansar.

Quando acordou, continuou sua caminhada, para encontrar Mehabel, agora que finalmente havia chegado à Terá da Chave do Tamanho. Para caminhar, tornava-se um gigante. Para comer e para esconder-se dos perigos, tornava-se pequeno. Para descansar, voltava ao seu tamanho normal, que era médio. Pelo caminho encontrava algumas pessoas, e para conversar com elas o tamanho ideal também era o médio.

A todos que encontrava perguntava por Mehabel, mas ninguém a conhecia. Um dia, transmutado em gigante para dar uma volta inteira no mundo em poucos dias, Gideão viu no horizonte, no lado oriental, uma muralha parecida com a montanha do Desfiladeiro da Transmutação. Curioso, à primeira pessoa que encontrou pelo caminho perguntou o que era aquilo e lhe ela lhe disse que lá ficava a Terra dos Anjos Sem Asas.

— É mesmo? E como se chega lá?

— É preciso atravessar o Desfiladeiro Sem Ar.

— E como se atravessa esse desfiladeiro?

— É preciso pronunciar as palavras mágicas.

— E que palavras são essas?

— Não adianta eu dizer. Se disser, você não acreditará.

— Já sei. Eu me torno gigante e atravesso esse Desfiladeiro Sem Ar com um salto.

— Não funciona. O Desfiladeiro Sem Ar é gigante para os gigantes, é médio para os médios, é pequeno para os pequenos.

— É mesmo? E o que existe na Terra dos Anjos Sem Asas?

— Nada. Apenas anjos sem asas e caminhos que levam até o desfiladeiro mágico seguinte.

— Como assim, outro desfiladeiro mágico?

— Dizem que depois da Terra dos Anjos Sem Asas há mais quatro lugares, separados entre si por desfiladeiros mágicos. Você não vivia na Terra dos Pés no Chão, e não passou para a Terra da Chave do Tamanho? Pois bem, chegamos até aqui, mas a vida continua...

Naquela noite Gideão tornou a sonhar com Mehabel, e agora ela o convidava a alcançar a Terra dos Anjos Sem Asas. Na manhã seguinte, acordou cansado, mas se pôs a caminhar. Não desistiria jamais de buscar seu lugar no mundo. Atravessaria cada desfiladeiro, mesmo sendo preciso morrer em cada um deles...

Marco Antonio Mondini
Enviado por Marco Antonio Mondini em 14/06/2014
Reeditado em 14/06/2014
Código do texto: T4845036
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.