Minha Casa
Está bem escuro e eu estou em frente a minha casa. Sei que é minha, mas não a reconheço. Dois andares. Parece uma casa senhorial. Minha casa nunca foi tão grande, tão cheia de janelas, e nem tão escura.
Procuro no meu bolso, pego uma lanterna e acendo-a. A casa é uma casa de fazenda. Tem uma floresta atrás dela, cheia de árvores altas. Talvez pinheiros ou castanheiras. Vou em direção à porta de entrada e Abro-a. A casa está muito escura, os móveis estão todos com plástico por cima e estão muito empoeirados. Tem luz elétrica na casa. Eu a acendo e desligo minha lanterna, mas mantenho-a comigo, pois a luz está falhando bastante.
Há certa poeira no ar, algo de abandonado na casa. Se ela é minha, porque a abandonei assim. Estou numa sala. Vejo um sofá do início do século XX pra final do século XIX. Sinto-me de novo uma criança, as coisas são um pouco grandes. Caso subo no sofá, meu pé não alcança o chão. Vou para a cozinha. Apesar de tudo parecer abandonado e de eu não conhecer o lugar, por algum motivo sei que a cozinha fica na porta a esquerda.
Abro a porta. Ainda tem poeira no local. Como um filme antigo em sépia, tudo tem uma coloração meio amarronzada. A geladeira parece mais nova do que o resto da cozinha. O fogão é a lenha e a mesa é de madeira maciça. Nada muito trabalhado, mas bonito e com um ar natural.
Tem mais uma porta, ela leva para a parte de trás da casa, para a floresta. Prefiro não abrir ela agora. Está à noite lá fora. Não pretendo entrar numa floresta a noite. Volto para a sala. Ela tem mais portas e uma escada para cima. A escada é monumental, começa em um vão e se divide em duas, como a escada de um dos meus jogos preferidos de infância “Resident Evil”. Sei que não era um jogo adequado para uma criança, mas eu gostava dele.
Pego a escada para cima. E vou para o vão da esquerda. Lá encontro uma porta. Abro-a e dou de cara com uma enorme biblioteca. Muitos e muitos livros. Um senhor velho está lá dentro. Na verdade a alma de um senhor velho. Sou uma criança dentro de uma casa assombrada, mas não tenho medo da alma, o velho parece bondoso.
Ele vem em minha direção. Pergunto:
- Quem é você?
- Sou o bibliotecário – Ele responde.
- Engraçado, não me lembro de um bibliotecário em minha casa.
- E quem você acha que toma conta e compra todos esses livros?
- Bem, nunca pensei sobre isso.
- Pois é garotinho, alguém tem de cuidar deles.
- Para cuidar deles não é preciso materialidade?
- Precisa para pegá-los, para cuidar deles não. Quem cuida pode ter ajuda.
- E quem te ajuda?
- Quem me ajuda? São os serviçais da casa.
- Não vejo nenhum aqui.
- Pois é, eles sumiram. Preciso acha-los.
- Posso olhar a biblioteca enquanto isso?
- Ela é sua, fique a vontade.
Vou andando para dentro e vou olhando os diversos livros. São muitos. Vejo até livros que li quando adulto, ou lerei. Estou um pouco confuso com essa mudança de idade. Pego um livro qualquer: “Em Nome da Rosa”. Conheço este. Na verdade quem não conhece. Só não conheço essa capa vermelha com rosas cor de rosa manchadas de sangue e com um cavaleiro templário ao fundo. Coloco o livro de volta no lugar. Sigo andando. Vejo um livro muito grande em cima de uma espécie de objeto para exposição de livros. Vou para perto tentar ver o que é.
A capa do livro é toda preta e ele está aberto. Parece um livro de magia negra, um grimório como os dos antigos magos. Atrás do livro um grande vitral que me deixa ver a escuridão do lado de fora. Sou muito baixo para alcançar o local que o livro está exposto, mas vejo um banquinho para se subir logo em frente a ele. Parece que ele estava me esperando para ser lido.
Subo no banco. Não tinha reparado antes, mas a biblioteca não tem aquele ar de abandonado que o resto da casa tinha. Aqui só as páginas desse livro são sépia. As páginas que estou olhando estão em branco. Volto uma página e vejo letras. Não as entendo, talvez sejam runas mágicas. O velho bibliotecário aparece de novo na minha frente:
- Que livro é esse? – Pergunto
- Esse é seu senhor. Todos temos histórias a contar. É nesse que o senhor conta as suas histórias.
- Por que não me lembro dele?
- Porque não é o senhor que escreve nele e sim seus serviçais.
- Tenho serviçais?
- Tem vários. Todos eles cuidam de sua casa.
- Então porque a sala de estar e a cozinha estão sujas.
- Por que eles limpam de acordo com a necessidade. O senhor não usa sua sala, então para que limpá-la. O senhor não quer fogo, então para que limpar a cozinha.
- Para manter a casa limpa e arejada. Não gosto de uma casa suja. Em falar nisso, quem contratou essas pessoas. Não lembro de contratá-las ou mesmo de ter idade para isso.
- Quem mais as contrataria senhor? Sou um bibliotecário, não seu tutor.
- Tenho um tutor?
- Exatamente, o senhor não tem, mas tem.
- Confuso, me explique melhor.
- Seu próprio tutor é você mesmo, só que daqui a 15 anos.
- Não sei se entendi muito bem, mas ok.
Saio da biblioteca, desço meio vão de escada e agora subo para o lado direito. Entro na porta que está na minha frente. Entro numa sala extremamente branca com um objeto estranho bem no meio dela.
Essa sala é muito iluminada. Há tanta luz aqui que chega a quase me segar. Não consigo ver onde termina o chão e onde começa uma parede. O objeto que está no meio da sala são três círculos de aço, um menor que o outro e um dentro do outro, cada um rodando em uma direção. Eles parecem energizar a casa. Muito confuso. Dou a volta nos três círculos, nada demais. Quando termino a volta, volto a ser adulto. Na verdade estou vestido como alguém do século XIX. Bem apropriado para o estilo da casa pelo menos. O tempo dentro da minha casa é muito estranho, ora criança, ora adulto. Não gosto muito disso, mas fazer o que?
Saio da sala, já que não tem muita coisa dentro dela. Desço a escada. Estranho, o segundo andar parecia maior do lado de fora. Novamente no primeiro andar, pego uma porta que está debaixo da escada. Ela tem mais uma escada, que leva para o porão. Ela está bastante escura.
Acendo a lâmpada que está no teto. Essa casa está me parecendo uma casa um pouco americanizada. Não sei de onde veio esse estilo de casa de verdade, mas sei que vi muito em filmes de terror americano. Lâmpada incandescente fraca numa escada de madeira que leva para um porão bastante escuro.
Pego minha lanterna, acendo ela e direciono o faixo de luz para baixo. Vejo que a escada vai descendo bastante, até eu não conseguir ver seu fim. Vou descendo por ela devagar. A parede do porão é toda sem reboco, com uma textura toda rugosa, que arranha a mão. Tem muita madeira aqui em baixo. Pilares de madeira, vigas de madeira. O porão é frágil, mas é ele que sustenta toda a casa.
Vou seguindo em frente. O único caminho é pra direita, então é por ele que vou. É um corredor grande, sem lâmpadas. A única coisa que ilumina o caminho é minha lanterna. Ratos no chão. A única coisa além de madeira. Não tem nada aqui que é comum de se achar num porão. Nem as coisas assustadoras que fazem sombra. Pensei que iria passar medo descendo pra cá, mas não há nada para se assustar aqui. Acho que tudo foi limpo. Nem migalhas para os ratos. Em falar neles, no final do corredor, acho uma tampa de bueiro, daquelas redondas que vemos as Tartarugas Ninjas se enfiarem quando estão indo para o esgoto.
Levanto ela, com a ajuda de um pé de cabra que estranhamente estava perto dali, como se estive só esperando alguém pega-lo para poder continuar o caminho. Pra baixo mais uma longa escada muito escura. Vou descendo. Quando estou quase chegando lá, vejo algo vermelho com a luz da lanterna. Quando percebo, estou em cima de um tesouro.
Achando que estava indo para um esgoto, acabei chegando num local com panos e panos vermelhos e muito ouro, moedas e moedas de ouros. Tudo escondido debaixo da minha casa , que na verdade nem sabia que tinha.
Acordo e sei que a casa sou eu, que tudo aquilo era um mundo fantástico, mas que debaixo das minhas camadas, debaixo dos meus diversos andares, há um tesouro que só eu sei. Lá dentro de mim tem ouro, onde só eu sei, tem algo de grande beleza, que ninguém ainda ousou tocar.