MARA HOPE

Olhou o conjunto de edifícios dispostos ao longo da avenida, a poucos metros de distância do mar. Perscrutou também as pessoas que passeavam na calçada ou corriam nas margens do asfalto. Tentou em seguida lembrar-se de como havia sido aquela paisagem há exatos quinze anos. Metade dos prédios não estaria ali. Haveria talvez um quarto das pessoas e carros que hoje preenchiam o lugar, tornando-o hermético. Era uma cidade melhor, menos agressiva e mais sensual, sem dúvida.

Sentiu sede e procurou o quiosque mais próximo. Achou um a poucos passos de distância e acabou comprando uma cerveja. Não sentiu alívio ao tomar o primeiro gole; o líquido estava um pouco mais do que frio e parecia mais amargo que o habitual. Abandonou a garrafa quase cheia no lixo, voltou ao quiosque e comprou água. Pediu também um maço de cigarros, embora não fumasse. Naquela noite decidiu fumar. Acendeu todos os cigarros, num intervalo de vinte minutos entre um e outro, tragando-os até a centelha atingir o filtro. Pela primeira vez, desde que se encerrara o melhor capítulo da juventude, sentiu no corpo e no espírito aquele sopro de liberdade bem conhecida dos irresponsáveis.

Já passava das onze da noite quando a calçada começou a esvaziar. Apenas alguns turistas europeus transitavam por ali a procura de prostitutas juvenis. Não pareciam homens, mas bichos com sorriso de superioridade e olhar de rapina. Antes que o prazer recém-redescoberto o abandonasse, em meio ao movimento lutuoso da cidade àquela hora, levantou-se rapidamente do batente em que se mantivera por longas duas horas e se pôs a caminho do pequeno quarto que alugara na véspera. Seria a ultima noite naquele quarto. Seria na verdade a última noite como alguém que não desejava mais ser.

O dia amanheceu com algumas nuvens pesadas sobre parte do litoral. Não ventava. Em virtude do tempo, o mar adquirira um azul concentrado mais ao fundo. Da arrebentação até o ponto que ele pretendia atingir ainda de manhã bem cedo, a água estava clara e com poucas ondas. Tomou um café frugal e iniciou a caminhada até a altura da calçada onde iniciaria o trajeto, a nado, até o Mara Hope. Trajava apenas bermuda, uma camiseta leve e um par de sandálias de borracha. Não trazia carteira, dinheiro nem documentos. Levou exatamente cinquenta minutos para chegar lá. Caminhava sem pressa, olhando cada detalhe da cidade. O forte, os canteiros mal cuidados, as árvores frondosas e antigas do Passeio Público, o viaduto, os jardins simétricos do hotel cinco estrelas construído em forma de navio...

Ao chegar ao lugar desejado, tirou a camisa e as sandálias e as abandonou sobre uma pequena laje. Observou bem o mar. Estava perfeito. Parecia um imenso lago azul, com o Mara Hope a trezentos metros de distância, esperando por ele, escuro e imponente. Desceu a pequena muralha de pedra que separava o mar da calçada, molhou o pé direito e sentiu com prazer que a temperatura da água estava em torno de 27 graus. Calculou que levaria um pouco mais de meia hora para chegar ao Mara Hope, nadando com velocidade média e regular, parando de vez em quando para mergulhar em pontos com melhor luminosidade.

Iniciou a travessia surpreso com a calma do oceano. Não havia ondas nem correnteza. Os peixes só começaram a se mostrar depois de uns cem metros de distância da praia, em alguns pontos onde a luz penetrava melhor a água, permitindo ver a bancada de areia ao fundo. Sentiu-se cansado depois de vinte minutos de braçadas regulares; então parou e se deixou flutuar, observando, de cara pro ar, o céu já limpo de nuvens carregadas.

Naquele momento, procurou lembrar do que deixava pra trás e percebeu, para seu espanto, que nada lhe vinha à memória. Apenas lembranças esparsas de momentos vividos há muito tempo submergiam da sua memória, como barbatanas de tubarões, subindo e descendo, ao mesmo tempo belas e ameaçadoras. Eram imagens de uma praia tranquila e deserta que conhecera na companhia de dois amigos. Um lugar rodeado de falésias, dunas, e uma extensa mata atlântica protegida por lei. Lembrou-se também de uma garota, cujo rosto apareceu um pouco amorfo em sua tela mental.

Não conseguiu precisar quanto tempo ficou naquele estado, flutuando no mar e em lembranças desconexas. Retomou então o nado, dessa vez imprimindo maior velocidade, e quando deu por si estava a poucos metros do Mara Hope. Resolveu mergulhar mais fundo naquele ponto e viu, rodeando o imenso casco enferrujado do Mara, um cardume de peixes coloridos, fazendo movimentos graciosos, à guisa de cortejo.

Logo ali na frente, despontava o imenso casco judiado por trinta anos de sol, chuva, vento e maresia, parte da base dianteira desaparecida, dando a impressão de que a qualquer momento aquela massa negra e metálica tombaria para a frente. Não queria pensar em nada naquele momento, apenas se deixar levar pela corrente, de fazer parte do cardume de peixes coloridos, migrando de um oceano a outro, sem compromisso, com o Mara Hope sempre atrás, singrando a água e mantendo em segurança tudo que estivesse ao redor. Desejava isso, quando de repente foi surpreendido por uma sensação nova, uma espécie de certeza, de uma lucidez lisérgica.

Deu-se conta de que parte do mundo – a outra parte que não compunha aquele cenário – não mais existia e que, por tal motivo, não podia mais retornar, mesmo que quisesse, à vida que levava há meia hora, à cidade onde vivera ao longo de décadas marejadas em lama, em dúvidas, tristezas e incertezas. Concluiu também que o Mara Hope estava vivo de novo, com motores em pleno funcionamento e estrutura nova, pronto para ser conduzido ou conduzir, se lhe permitissem.

Com essa certeza, seguiu em frente e misturou-se às ferragens do Mara Hope, sendo homem e navio um único, eterno e exclusivo ser.

João Pegado
Enviado por João Pegado em 25/05/2014
Reeditado em 26/05/2014
Código do texto: T4820076
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