O DESVIO

DESVIO

Vivia um homem, em uma grande cidade, uma vida sem sustos, feliz e agradável, plena de realizações e conforto. Certa feita, no entanto, sem qualquer aviso passou por ali um vendaval que envolveu tudo em seu movimento destrutivo, deixando, após sua passagem, apenas tristeza e devastação. Dessa forma, desiludido e inconformado com o que lhe ocorrera, esse homem deixou aquele mundo para trás e procurou outro lugar para viver, mais recôndito, afastado do burburinho e da vida agitada, que passaram a incomodá-lo. Sem fugir ao convívio com seus iguais, apenas isolando-se o tanto que para si considerou suficiente, encontrou um recanto à beira de uma estrada, numa curva, onde os carros precisavam diminuir a velocidade ao passar, e ali fez sua morada. O terreno era um pouco elevado em relação à rodovia e, pela porta, pela janela da frente, podia divisar o asfalto, um pouco além de seu jardim, protegido apenas por uma sebe baixa. Durante algum tempo a nova vida desenrolou o seu novelo, a areia escorreu pela ampulheta, as estações renovaram-se, sem que nada ocorresse que lhe chamasse a atenção, aliviasse sua dor, sua tristeza ou ausência de vibração. Os pássaros cantavam, o céu mostrava a chuva, o azul intenso; ventos sopravam, brisas amenizavam o calor, o sol descrevia sua curva no céu, a lua metamorfoseava-se, as estrelas piscavam e viajavam pelo espaço sideral... O homem, entanto cumpria, de acordo com o costume, suas obrigações ou sua rotina, sem em nada encontrar encanto. E foi num desses dias de desencanto ausente, de sonolência da alma, que, ao olhar pela janela ele viu um corpo de mulher, com um leve vestido azul que lhe desenhava as formas, jogado no capim, atrás da sebe. Por sua cultura, sua formação e sua índole bondosa, saiu para ver o que acontecera e saber se ela precisava de ajuda. Quando chegou mais perto, notou que estava ferida, um pouco suja de terra. Tratou-a com respeito e procurou transmitir-lhe confiança, para que aceitasse a ajuda que lhe oferecia. Convidou-a para entrar, a fim de recuperar-se; compartilhou com ela seu almoço, que já estava pronto. Começaram a conversar; ele ficou sabendo que ela fora atirada fora do carro pelo companheiro, depois de uma briga, um rompimento decisivo. Ela lavou os pratos, para agradecer a cortesia e continuaram a conversam por muitas horas, porque ele tinha muito a transmitir e ela, embora com alguma formação, era ávida por saber e tinha muito que aprender. Anoiteceu e ele ofereceu-lhe hospedagem; ela aceitou e permaneceu por um longo tempo na morada. A convivência manteve-se respeitosa, mas muito profícua no intercâmbio das ideias, em sintonia mútua, muito agradável para ambos. E aquele homem incansável, transmitiu-lhe sua sabedoria com dedicação e paciência, instruiu-a em diversas áreas do conhecimento e sentiu-se gratificado ao notar que ela correspondia aos seus esforços. Dedicou-se a fazer desabrochar para a realidade da vida, aquela mulher ainda imatura. E tanto se empenhou nisso, que, por pequenos lapsos de tempo, sucedia-lhe de sorrir e esquecer o infortúnio e o alheamento que a saudade da vida anterior lhe causava. Todavia, uma noite reparou nela uma expressão desconhecida, indecifrável. E, de fato, na manhã seguinte, ela agiu de forma estranha. Depois de lavar os pratos do almoço, comunicou ao seu protetor que ia partir, porque já aprendera tudo que ele poderia ensinar-lhe e não havia mais razão de continuar por ali. Ele abriu a porta, despediram-se, e o homem ficou parado na soleira, acompanhando-a com o olhar, até que ela desaparecesse além da curva, com a esperança, alguma expectativa de que ela um dia pudesse retornar. Tivesse retido parte de seu conhecimento, retardado o aprendizado, e quem sabe ela não teria partido e ele não voltasse a sentir o abatimento que lhe pesava qual uma mortalha.

Para A.C.