O REI CEGO

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À minha filha Ana Carolina,

contadora de histórias.

Era uma vez um rei maldoso e covarde chamado Salamandro, que tinha medo de ser deposto do trono.

Antes de envenenar o pai, assumir o trono e apoderar-se do pequeno mas belo reino de Rahaslix, quando ainda era criança, ele tinha o costume de maltratar pequenos animais, dizendo que era para fazer experiências científicas, coisas como arrancar as penas de uma das asas de um passarinho, cortar uma das pernas da rã e outras maldades do tipo.

Certa vez, estava furando os olhos de um rato com uma agulha, quando o pequeno roedor falou e fez uma terrível profecia. Disse o rato: “Tua maldade não ficará sem castigo. Um homem com visão perfeita irá derrotá-lo e na escuridão morrerás”.

Como haviam lhe ensinado a não acreditar em profecias, Salamandro não se impressionou com o acontecido, e disse para si mesmo que ratos não falam e tudo era apenas fruto de sua imaginação. No entanto, por via das dúvidas, desse dia em diante, manteve sempre um vidro de veneno para ratos ao alcance das mãos, para matar qualquer roedor que ousasse chegar perto dele. E, quando seu pai morreu e ele herdou o trono, mandou furar o olho direito de cada pessoa do reino, e cortar a mão esquerda. Assim ele seria o único a ter a visão perfeita e duas mãos para lutar, de modo que ninguém poderia matá-lo.

Para justificar tamanha crueldade, mandou ensinar nas escolas que ter olhos furados e mãos amputadas era um avanço da civilização. Mandou escrever nos livros, e em todos os lugares, que sua ordem era necessária para a prosperidade do reino, da mesma forma que manter escravos era o melhor modo de obter a felicidade do povo. Por isso, todos deveriam considerar-se felizes, pois graças à sabedoria do Rei Salamandro o povo agora teria a vida garantida contra as ameaças da natureza e as dificuldades da vida. E também mandou ensinar que era um Direito Divino do Rei possuir a visão perfeita e não ser mutilado, e que não seria justo os súditos terem dois olhos e duas mãos, como o rei, o líder supremo do povo. A menos que alguém descobrisse um jeito de o rei ter três olhos e três mãos, mas isso é realmente impossível.

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Quando nasceu o filho desse rei malvado, mandou que furassem seu olho direito, mas ordenou que não cortassem sua mão. Obviamente, o rei nunca falou para ninguém que fazia tantas maldades apenas porque temia a profecia de um rato. Quem haveria de derrotá-lo seria um homem com visão perfeita e se ninguém tivesse dois olhos em todo o imenso reino, nem mesmo seu filho, ninguém poderia ameaçar o seu poder. Dessa forma o rei sentia-se seguro, tiranizando o povo e a própria família, porque era covarde e tinha medo de ser deposto do trono.

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O filho do rei, chamado Demócrito, cresceu e se tornou um jovem talentoso e de bom coração. Gostava de música e poesia, ensinava as crianças a ler e escrever, tinha o coração sensível e era corajoso e generoso.

Certo dia, passeando pelo campo, o jovem príncipe apreciava a linda paisagem da primavera, quando viu um gato selvagem saltar sobre um passarinho, para devorá-lo. Com a rapidez de um raio, Demócrito atirou sobre o gato o livro de poesias que tinha na mão e afugentou-o, salvando o pequeno pássaro. Este, agradecido, voltou-se para o rapaz e disse-lhe:

— Amado príncipe e herdeiro de Rahaslix , o menor porém mais belo reino que já existiu sobre esse planeta. Sou muito grato por salvares minha vida e gostaria de retribuir. Eu conheço um modo de tirar o poder das mãos de seu pai, que é covarde e malvado, e entregá-lo a você, que possui muitas qualidades e bom coração.

— Pequeno pássaro – disse o príncipe, — todo o reino sofre com a maldade de meu pai e eu gostaria de mudar essa triste realidade. A primeira coisa que farei quando for rei será suspender a ordem de furar olhos e amputar mãos. Portanto, diga-me sem demora como alguém, tendo um olho furado, pode derrotar o Rei Salamandro, que tem dois olhos.

— É simples – disse o passarinho. — Quando rei não puder enxergar, seu poder será anulado e ele poderá ser derrotado por um homem que tenha a visão perfeita. Então o reino poderá voltar a viver dias melhores, sem que seja necessário mutilar e cegar as pessoas.

— Que dizes, pequena criatura! – revoltou-se o príncipe. — Você diz para eu cegar meu próprio pai?

— Bondoso príncipe, eu sou um simples pássaro e não sei explicar direito as coisas. Procure então compreender o que eu digo. Presta toda atenção em minhas palavras e grave-as em seu coração. Se você tiver a visão perfeita poderá derrotar o rei e ajudar o povo quando o rei não puder enxergar.

Dizendo isso, o pequeno pássaro voou para as árvores da floresta e desapareceu. O príncipe ficou ali parado, pensativo, cheio de dúvidas e tristeza. Em primeiro lugar, ele não tinha a visão perfeita, pois tinha um olho furado e o outro já estava um tanto míope de tanto ler livros. Além disso, jamais teria coragem de cegar quem quer que fosse, mesmo que fosse o seu malvado pai. Não faria isso por nada desse mundo. Mas teve uma idéia! Não precisaria cegar o rei, seu pai. Bastaria prendê-lo na escuridão, dentro de seu próprio castelo. Afinal, o pássaro não havia dito que ele devia furar os olhos do Rei Salamandro, e sim “quando o rei não puder enxergar...”.

O príncipe procurou seus amigos e expôs seus planos. Para sua surpresa, pois ele meio que duvidava do próprio plano, eles concordaram e durante a noite trabalharam rapidamente para cobrir todas as janelas do castelo do rei com pesados panos pretos, de modo que ao amanhecer não entrasse luz em qualquer dos cômodos. Assim, o rei não poderia enxergar, e ficaria privado de seu poder.

O plano deu certo. Pela manhã, quando acordou, o rei viu que estava tudo escuro e achou que ainda era noite, resolveu continuar dormindo. Mas não sentia sono, e resolveu tomar comprimidos para dormir. Como estava tudo escuro e ele não enxergava nada, ele pegou o vidrinho errado. Pensando que tomava soníferos, engoliu alguns comprimidos de veneno para ratos, e morreu.

O Príncipe Demócrito foi coroado rei com grande júbilo em todo o reino e imediatamente começou a governar, editando novas leis, para restabelecer a Justiça. O filho do rei malvado nunca mais permitiu que alguém fosse mutilado ou cegado. Ao contrário, incentivava os súditos a desenvolver suas habilidades, os conhecimentos, a tecnologia e as artes, para que o reino prosperasse e todos compartilhassem a riqueza. E criou muitas escolas, para que todos usassem seus olhos aprendendo.

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Ah, o que aconteceu com o olho furado do príncipe? Nada. Continuou cego. Mas isso não fazia mais diferença, pois graças às qualidades do seu espírito, com apenas um olho Demócrito podia ver perfeitamente a realidade, ou seja, ele tinha uma “visão perfeita”. E foi um rei feliz, pois com um único olho podia ver em seu reino mil vezes mais alegria e prosperidade que o Rei Salamandro, que possuía dois olhos e um coração maldoso.

Marco Antonio Mondini
Enviado por Marco Antonio Mondini em 18/05/2014
Reeditado em 09/05/2020
Código do texto: T4811563
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