Memórias de um aprendiz - 19/20
Capítulo 19 – Para o sul.
– Parabéns, a primeira parte foi um sucesso total.
– Como assim, temos mais outras partes? Quantas?
– Não “temos” mais nada. VOCÊ tem. Para o sul soldado, para o sul!
– Kitsu! – Diz Raitun, e o vento traz a raposa de volta.
– Olá, raposa idiota. Diz o general, com a Zanbatou em mãos.
– Ah, poupe-me dessa ladainha. Você é o meio orc e eu sou o idiota? Não é melhor admitir que sente saudades de brincar comigo?
– A melhor defesa é o ataque, Gran! –A pressão espiritual do general torna-se maior, até insuportável para o aprendiz. Outra coisa que se torna maior com isso é a já enorme espada. Raitun achava que ela era estupidamente grande, mas ela conseguiu ficar um pouco maior e bem mais larga após as palavras do meio orc. Além de maior estava rodeada por uma aura azul vinda de seu dono, não da própria espada. Isso é mais que suficiente para assustar o aprendiz, porém, como tudo pode piorar, ele fica sem reação quando Sigfried lança uma lâmina de mana em sua direção e na de Kitsu. Não se sabe se isso foi um alívio ou mais um susto, mas Raitun escuta a voz de sua raposa, que está por um momento apenas nas patas traseiras.
– Kitsuhi!– Após a palavra, as patas da raposa voltam para o chão e ela cospe uma rajada contínua de mana contra o ataque do general, como se um dragão cuspisse fogo. Porém o fogo da raposa parecia ser gelado, era azul claro, e raios apareciam aleatoriamente ao seu redor de tempos em tempos.
Foi um breve instante que deve ter soado como eternidade para o aprendiz, uma apreciação única. Contam as histórias que ao olhar Kitsu, viu que esta parecia dizer “monte”. Ele o fez e a raposa retirou-se para o sul. Faz muito sentido, considerando que raposas se entenderiam olhando nos olhos umas das outras. Sentiu apenas uma onda de vento batendo em suas costas, imaginou que “após os ataques disputarem forças devem ter explodido”, e havia acertado. Lembrando-se depois que tinha ainda o dom da comunicação e seu corpo estava inteiro em meio àquilo, ele diz:
– Não achei que tinha uma raposa tão poderosa como aliado.
– Aquilo? Apenas brincadeira. Não subestime o inimigo, depende da derrota dele pra vencer. Nunca pense em subestimar seus amigos, eles podem surpreender você acima do esperado. Por fim e não menos importante, não pense que sou idiota em subestimar seus amigos e nunca tenha a ideia de subestimar uma raposa. Ali acaba o diálogo. Raitun põe seu capuz e segue para o sul, montado na raposa. Enquanto eles caminham livremente, as memórias voltam para o término da conversa das meninas, afinal há mais coisas interligadas nesse mundo do que a rica imaginação de alguns possa imaginar. Essa vai ser uma ligação cármica para toda a vida [ou talvez por toda a morte].
– Nosso chá foi completamente violado. Melhor irmos embora.
– Verdade Louise. Você também Lilith, você deve receber o novato. –Diz Yumi.
– É o forasteiro? – Se intromete Mary.
– O tal famoso forasteiro... Bem coisa fofa, você vai me soltar ou eu quebro sua magia a força? – Comenta Lilith
– Oh, me desculpe. Havia esquecido esse detalhe. – Ao soltar a sacerdotisa essa começa a rir, e seu pingente volta sozinho para o lugar original no pescoço, enquanto Lilith ajeita seu vestido aqui e ali.
–O que, gostou da aura dele? Fofinha não? – Pergunta Yumi, mais curiosa do que as outras em saber o motivo do riso.
– Muito, amo raposas da neve, principalmente em sua... "casa natural", digamos assim. Amo raposas do ártico próximas ao Articus, e adoro usar esses divertidos trocadilhos. – Diz Lilith, fazendo uma breve mesura enquanto seu corpo se desfaz em vários flocos de neve que são levados pelo vento.
Capítulo 20 – Lilith, a segunda lição
Raitun indo cada vez mais para o sul, já começa a ver de longe o templo em moldes orientais e coberto de neve, assim como todas aquelas terras em volta. Avista também uma mulher, segurando um gigantesco arco. Exatamente no instante em que pisca os olhos sente duas coisas afiadas raspando seu rosto em cada lado: eram flechas, que fazem cortes superficiais e retiram seu capuz. Eles percebem que é algo relativamente sério, porém continuam avançando, até que parem em uma posição na qual possam se comunicar/atacar. Talvez o aprendiz não tenha notado esse diálogo a seguir por estar hipnotizado pela estonteante imagem de Lilith.
– Há quanto tempo, raposa. Que rude de sua parte sumir repentinamente e me deixar sozinha.
– Perdoe-me Lilly, mas sabemos que foi necessário. – Neste momento o alienado aprendiz tira as suas espadas das bainhas, parecia realmente não ter entendido o que aconteceu e a familiaridade que havia entre os dois. Raitun e Kitsu fitam o “alvo”, preparando-se para um duelo que parece desigual. Ao trocarem de posição com a agilidade mana em ação, o silencio é quebrado apenas pelo som das katanas gêmeas caindo no chão. O arco vai sumindo aos poucos, até virar o inofensivo pingente do pescoço da elfa noturna.
– Duplo tiro, duplo acerto. Adoro e odeio olhos prateados.
– Interessantes são os olhos das raposas, acompanhando meus movimentos com tanto afinco. – Responde Lilith, com um amável sorriso, enquanto o aprendiz, mesmo aparentando estar envergonhado ou desanimado, dirige suas primeiras palavras à sacerdotisa.
– De nada me adiantam, minha Lady. Meu corpo não consegue acompanhar os meus olhos.
– Talvez o motivo seja o conjunto estar trabalhando de forma errada. Talvez, enquanto o corpo queira lutar, os olhos estejam se focando aqui – Diz isso arrumando seu decote – e não aqui – diz fazendo o gesto de disparar uma flecha, enquanto o aprendiz faz o gesto de esquiva. Esquiva até o olhar após entender as entrelinhas. Ao levantar o olhar para a elfa e os dois se encararem por instantes, o gelo é quebrado quando a raposa derruba o aprendiz das suas costas, o que provoca o riso geral.
– Sua missão é ensiná-lo sobre mana, e algumas técnicas básicas... Depois detalhes aprofundados.
– Por que eu devo aprender sobre mana? – Pergunta o aprendiz. Lilith se prontifica a responder.
– Perguntas... Um ótimo jeito de adquirir informações. Que tal começarmos com uma conversa cheia de perguntas?!
– Eu aceito.
– Qual o seu nome? Refiro-me ao nome que a Yumi lhe deu.
– Omni Raitun.
– É um bom nome. Omni parece ter alguma relação com ômega, e provavelmente tem, olhando as vestes dadas por ela. Ômega pode significar o fim, mas muitas vezes é preciso chegar ao fim para recomeçar, sabia? Raitun me lembra raios, que me lembram tempestades, que me lembram força. Então, seu nome talvez seria algo como “a força do fim”? Só saberemos quando chegarmos lá, acho. Você também pode me perguntar coisas caso queira.
– Qual o seu nome?
– Lilith. Dizem que é um nome raro, e forte, e antigo usado para mulheres fortes.
– Você realmente não parece ser forte, porém, sinto que você é.
– Sente. É um bom começo. Confie em tudo o que sente quando não houver em quem confiar.
– Você sabe por que eu vim parar aqui em seu mundo?
– Talvez eu tenha alguma ideia, porém nem isso eu posso contar agora. Cada coisa tem seu tempo. Você aprendeu isso em seu mundo?
– Sim, muitas pessoas mais velhas dizem isso lá.
– O que mais elas dizem por lá?
– Dizem... “aproveite a juventude”. Dizem que nada dura para sempre, e algumas dizem para aproveitar cada momento que tiver. Também dizem muitas coisas problemáticas e tristes, principalmente tristes.
– Apesar de tudo, parece ser um bom mundo, existem seres que dizem coisas boas. Você havia me perguntado o que mesmo... Ah, “por que aprender sobre mana”. Você está em nosso mundo agora. E como você viu, existe um clã sombrio que vai tentar destruir você se achá-lo por aí. Caso você não fique forte para combatê-los, vai acabar morrendo, e se sua pretensão é voltar para seu mundo e encontrar tudo que procura, você precisa estar vivo e ter poder suficiente para isso. Aqueles que lhe atacaram são meras formigas, existem dragões a espreita para devorar-nos. Um mero inseto pode conseguir muita coisa, mas só se trabalhar muito para isso.
– O que aconteceria se o clã sombrio fosse aniquilado?
– Não sei lhe dizer, mas presumo que os seres daqui iriam continuar morrendo, porém de forma natural e não destroçadas por forças do mal.
– Então, você deve ter ficado forte, e se o fez, foi por um bom motivo. Considerando o que você descreveu, se eu tivesse sido “acolhido” por eles, estaria... Como você disse... “destroçado pelas forças do mal”. Então, acho que devo alguma coisa a vocês. Ficar forte e ajudar vocês é uma boa maneira de pagar a dívida?
– Sim, é um bom jeito de se pagar uma dívida.
– Então, vamos começar.
– Vamos. Talvez se terminarmos com antecedência possa dar uma volta por aí. – Diz ela, enquanto se aproxima lentamente do aprendiz. Lilith passa os dedos sobre as feridas que provocou, e instantaneamente elas cicatrizam deixando marcas em suas bochechas. – Agora ficou melhor – Diz ela, e leva um dedo manchado de sangue à boca, enquanto com os dedos da outra mão ela dá um leve piparote com o indicador na testa do aprendiz. Após isso, continua: – Voltemos ao nosso foco, jovem raposa aprendiz.
– Ok Srta.
– Não, me Chame apenas de Lilith, ou Lilly.
– Tudo bem, grande Lady.
– Que garoto problemático, heim, Kitsu! Bem, você já usou algum “poder estranho” neste mundo ou no seu mundo? – Em vez de palavras, o aprendiz mostra a ela seus olhos de raposa e Lilly acena positivamente com a cabeça, continuando a linha de raciocínio. –Você sente alguma sensação diferente ao usá-los, não sente? É essa sensação que você vai aprender a controlar. O poder verdadeiro vem de dentro de você, da sua alma, e também pode vir de fora, das partículas espirituais ou dos espíritos desse mundo. Existem vários poderes vindos de dentro de alguém, porém, esse em específico, nós chamamos de mana. Não sei o que você sente, porém, tente aumentar a densidade dessa sensação, torne-a pesada, densa e pesada a ponto de sentir cada milímetro do chão abaixo de seus pés. Procure a sua forma de fazer isso. – A explicação talvez não tenha terminado. Caso tenha sido o caso, não houve tempo suficiente, pois a sacerdotisa teve que desviar de um ataque de Raitun, que agora rosnava como uma raposa raivosa, e se apoiava nas mãos e pés. E ela pensa: “Mais problemático do que pensei, como esperado. Cresça, aprenda, e proteja o que é importante.
– Raposa idiota. – Comenta Kitsu.
–Mantenha o foco, Mihawk. – A sacerdotisa atira apenas uma flecha, atingindo o aprendiz. Este agoniza por alguns instantes, e após isso volta ao seu estado normal. Ele se levantaria se uma pata da raposa gigante não tivesse vindo ao encontro do seu peito. Em uma breve conversa de olhares entre raposas, Raitun entende que fez do jeito mais errado que conseguiria.
– Raposas são assustadoras... – Diz quando volta a respirar.
– Assustadoras, ágeis, espertas, exuberantes, “fofinhas” e... Mortais, melhor definindo. – Após uma breve pausa, continua: – Bem, agora aprenda o jeito certo. Raposas usam o seu poder de um jeito ágil e esperto, leve e elegante, esse é o jeito para uma raposa se tornar forte. –Kitsu começa a diminuir e juntar o mana nas patas. Raitun aos poucos, além de sentir, começa a poder ver. Era como se suas patas pegassem fogo. Kitsu sobe em uma árvore próxima, como se estivesse andando pelo chão, e para em um galho fino do topo, que curiosamente não se curva diante de seu peso. Talvez ele se curvasse diante da imponência da raposa. Falando na raposa, esta começa a usar a agilidade mana, parando várias vezes sentada em pleno ar, e uma ultima vez andando atrás da sacerdotisa, sem marcar suas pegadas na neve. Após voltar à sua forma original e ganhar um afago de Lilith, continua o raciocínio.
– Entendeu agora? Concentramos nosso poder na agilidade e força dos membros, sem perder o estilo e porte do qual nos orgulhamos.
– Algo mais?
– Sim, você conseguir fazer isso tão bem quanto ele. Apenas se aprender bem a manejar o mana, logicamente. –Diz Lilly, aparecendo sentada em um dos galhos mais altos da árvore. Sorrindo, continua. – Pode começar, seu trabalho é subir andando pelo tronco até onde eu estou. Boa sorte.
– Uh... Melhor eu me deitar. –Diz a raposa, deitando a cabeça sobre as patas cruzadas, e observando o que vai acontecer. O aprendiz não comenta nada, apenas fixa o tronco da árvore com seus olhos de raposa. Ele tenta subir correndo, mas apenas ganha um impulso para se jogar para trás depois de três passos brutos. Mais tentativas, nenhum sucesso. O aprendiz acaba pausando as tentativas por algum tempo para recuperar o fôlego.
– Ora, se não é um aprendiz sem persistência! Estou vendo um aí embaixo?! Não, ainda não... Achei que aprendizes aprendiam várias coisas, e continuavam sempre aprendendo. Achei que eles aprendiam antes de tudo a não desistir de continuar aprendendo, por isso continuavam tentando. Achei também que eles analisavam as coisas que não davam certo para achar e consertar erros. Analisavam coisas e o ambiente... Bem, que pena que me enganei profundamente... Pelo menos estou comodamente sentada, e está batendo um vento fresco aqui em cima, assim posso aproveitar o tempo. – Diz Lilith, pensando seriamente em se deitar. Após escutar tudo o aprendiz resolve observar melhor a sacerdotisa, sabe-se lá o porquê. E observando melhor a sacerdotisa, ele percebe que ela também usava o mana em volta dela para estar na posição que se encontrava. O olhar entediado da raposa estava apenas contemplando o vento afagar a grama enquanto isso, e observando um e outro, o garoto resolve optar pela “inspiração” que Lilith lhe deu com palavras e coisas para serem observadas, sacando Cumulus de sua bainha. De olhos fechados, movimentando lentamente sua katana, ele começa a se concentrar na sensação, porém mantendo o controle e a serenidade que a sacerdotisa demonstra no topo da árvore. Ele abre os olhos e gira a espada, que agora começa a criar uma aura prateada e brilhante em volta de si. Nota que a aura vem de sua mão, e não da espada. O próximo passo foi manter a concentração, e transferir a aura para os pés e todo o corpo. Fazendo isso, a aura se intensifica, e com movimentos rápidos o aprendiz começa a subir deixando um rastro de mana e leves marcas no tronco da árvore. Para sua surpresa, aproximadamente na metade do caminho ele muda o olhar do topo da árvore para a sacerdotisa, talvez por puro reflexo, e perde a concentração, por que um fio de luz feito de mana vem em sua direção para chicoteá-lo. Isso faz o garoto perder sua concentração, e o custo disso é uma queda. Antes de cair o aprendiz ainda consegue marcar até onde chegou com a katana: aproximadamente metade do caminho. Após um suspiro o aprendiz se levanta e recomeça o ritual, dessa vez com as duas katanas. De armas em mãos e mana em volta de si, o aprendiz começa a subir de olhos fechados dessa vez. Dessa vez a raposa maior abre um dos olhos e resolve observar de onde está. Dessa vez, sem alterações na grama ou na árvore, Dessa vez, com as lâminas das katanas para trás como se ele as arrastasse. Dessa vez, não sobe de maneira corrida como um macaco fugindo de um leão, e sim como uma raposa, a passos lentos e leves, como se estivesse flutuando.
As lâminas tocam tão suavemente a árvore que o único rastro de sua passagem por ali é o brilho da marca feita no meio do tronco. Novamente, a sacerdotisa tenta chicoteá-lo usando o mana de forma pura, porém o aprendiz defende ou rebate usando um método parecido com o da sacerdotisa. Uma das chicotadas quase atinge suas pernas, mas um pequeno salto é suficiente para desviar e ultrapassar a marca no meio da árvore, que se desfaz. É nesse ritmo que o aprendiz de raposa continua, até chegar ao topo, que permanece imóvel mediante sua presença. Sabe-se lá o porquê, mas ele resolve ir além do objetivo, equilibra uma katana em cima da outra [talvez nem ele saiba como] e equilibra-se em cima das katanas, mantendo-se relativamente parado. Após sorrir, ele indaga a sacerdotisa.
– Aqui está bom o suficiente? – E pula de lá com as duas espadas, parando agachado no ar atrás de Lilith com as katanas em volta do pescoço da sacerdotisa – Ou assim é melhor?
– De qualquer uma das maneiras, além de uma enorme falta de respeito, não condizem com sua verdadeira posição. Minha visão mostra que você não será apenas a sombra de uma sacerdotisa, um equilibrista ou bobo da corte.
– Sua visão mostra o futuro?!
– Algo do tipo... Nunca duvide das crenças e do almanaque de uma sacerdotisa.
– A tarefa terminou ou a sacerdotisa-san ainda reserva alguma surpresa para um reles aprendiz?
– Algumas, e o treinamento ainda não acabou. Você aprendeu a usar seu mana, mas use-o para algo de futuro, em vez de ficar apenas atrás de mim!
– Ora, falando desse jeito parece que a sacerdotisa-san não gosta de raposas atrás dela. – Diz Kitsu, com palavras lotadas de sarcasmo.
– Ora, parece que a raposa resolveu sair do estado de tédio e do soninho de beleza somente para me aborrecer! E para melhorar a situação ainda aderiu ao adorável sufixo japonês de tratamento?!
– Acontece, Lilith. Qual a próxima etapa?– Indaga Raitun
– Materialização.