Bote.
Era cheio de vida, bonito e com grande intelecto. Projetos faziam parte de sua vida, até que sua noiva fez questão de destruí-lo como se esmaga um inseto.
O rapaz então, resolveu o impasse colocando suas velhas botas, e pegando seu velho barco, para velejar o mar à fora, sem aviso prévio, ou hora marcada para voltar. Foi remando, enquanto o sol estava alto, até que resolveu parar e deitar um pouco. Era delicioso ficar ali, no meio do Oceano, enquanto as águas movimentavam o barco. Alguém, debruçando-se no bote, balbuciou:
- Adorei seu barco. Leve-me para passear! - E sorriu.
O rapaz levantou-se num sobressalto, e sem ideia de que palavras esboçar, disse:
- Oh! Uma filha do mar. -
A sereia sorriu.
- Adoraria velejar contigo. Eu nunca entrei num barco antes. - dizia, tocando na madeira, e olhando o rapaz firmemente.
- Sempre achei que sereias fossem loiras, e devorassem homens. - Devolveu o olhar, mas com frieza.
- Não somos loiras. Mas sim, devoramos homens.
- E por que não me devorou? - Estava desafiador.
- Quero passear no barco.
- Pensei que sereias fossem sedutoras. - Estava instigando.
- Não cantei para você. Apenas pedi para levar-me contigo no barco.
- Sua cauda pesa demais. Jamais daria para levá-la comigo. E, não quero voltar para casa fedendo à peixe. Xô! - E bateu com o remo perto do rosto pálido da sereia. Ela o olhou com tanto amor, mas com tanta dor, que seus olhos encheram-se de água, e suas maçãs ficaram rosadas. Estava magoada. E, quando percebeu isso, o jovem sentiu-se tão miserável, que tentou se retratar, mas em vão - a sereia havia partido. Ao passo que ouvia a água sibilar, este gritou:
- Volte! Volte! Desculpe-me! Não queria lhe magoar. Volte, sereia! Vamos passear.
Mas a água não sibilava mais, e tudo se aquietou. Parecia que estava sozinho naquele momento, junto de seu barco. Deitou-se novamente, e dessa vez adormeceu. O bastante para não ver as nuvens brancas se acinzentando, e a tempestade caindo. O mar revoltou-se de forma cruel, ao ponto de querer devorar o barco do moço. E, então, ela voltou para resgatar o rapaz, que nessa altura, já estava quase no fundo do Oceano. Quando chegaram à superfície, a sereia nadou freneticamente, até encontrar terra firme. Logo, encontrou o barco junto, com uma parte destroçada. O rapaz acordou numa ilha deserta, e lamentou por todos os deuses, toda aquela infelicidade. Mas antes, a de sua amada não lhe corresponder mais, mas ainda assim, insistir com ele, um casamento que só viria a falir. Amaldiçoou então o vento, o mar, o barco e suas botas velhas. A noiva odiava tudo aquilo.
- Como sairei dessa ilha?! - Exclamou. - Meu barco está destroçado.
- Posso conseguir o que me pedir, e então, sairá daqui. - Sorriu a sereia.
O rapaz a olhou, e viu que ela de fato, tinha sinceridade em seu coração.
- Se me conseguir o que preciso, levo-te para passear em meu barco. - Prometeu, tocando aquele rosto pálido emoldurado por fios negros. Aquilo fez com que um sol irradiasse dentro do peito dela, e assim, esta sorriu, maravilhando-se da bondade do rapaz.
- Nunca velejei. Nunca! E sentir o vento, junto com você, será o maior presente de minha vida! - Estava pela primeira vez, feliz.
- Preciso de martelo e pregos. Vai conseguir naquela praia. Sempre tem pescadores por perto. Então, seu trabalho é trazer-me isso, sem perder. Arrume algo para colocar dentro.
- Entendi. Demorarei um pouco, mas é certo que voltarei. - E piscando para o rapaz, saiu em busca dos objetos. Quando chegou à praia, viu uns pescadores trabalhando, e identificou o que o rapaz pedira. E sem licença alguma, não se fez de rogada; antes, fez uma abordagem amigável, porém sabia que eles iriam embora, deixando tudo para trás. Era a tão temida filha do mar, e assim seguiu-se. Pegou uma pequena sacola, e colocou o martelo e os pregos ali. Foi até o rapaz, entregou à ele, e este colocou-se a trabalhar. Enquanto isso, a sereia ficava observando. Às vezes chegava perto, e sorria. Às vezes, se afastava. E numa dessas vindas, com o último prego em mãos, o rapaz martelou a cauda da sereia, ferindo-a fortemente.
- Por que fez isso? - Chorou a sereia. Não era a cauda que doía - era o peito.
- Eu disse que não queria voltar para casa fedendo a peixe, e não voltarei. Xô! - E, bateu na água, num sinal de violência contra o ser que esteve com ele o tempo inteiro. Óbvio que depois disso, completamente magoada, a sereia foi embora, mas antes de partir, disse com todo ressentimento em sua língua:
- Espero que seu coração inche e exploda! - E voltou para as águas.
O rapaz não se importando, partiu mar à fora, a fim de voltar para sua casa. No meio do caminho, seu peito começou a doer, e quando ia desmaiando, viu cabeças de diferentes cores ao seu redor.
- O que faremos com esse estúpido humano? - perguntou a ruiva.
- Não devemos devorá-lo. Não merecemos degustar tal coisa. - respondeu a loira.
- É, você está enrascado, humano. Feriu uma boa sereia. - disse a de cabelos cacheados.
- Ela é sua irmã? - respondeu o rapaz, atônito, e com a visão um pouco turva.
- Se fosse, você estaria morto. - respondeu uma outra voz, que ele não conseguia identificar.
- Então, por que a defesa? Vocês são egoístas demais para defender uma sereia que não pertence à vocês. - respondeu num tom prepotente e malicioso.
- Errado. Nunca deixaremos humanos imperar no oceano. Machucar aquela bela cauda vermelha realmente não foi uma boa. - disse a ruiva. - Odeio barcos velhos...
- E o que vão fazer? Já que não pretendem me devorar.
- O que faremos, irmã? - perguntou a loira. A ruiva estava sedenta. Mas, aquietou seu desejo ínfimo, e balbuciou:
- Que tal ficar nessa ilha para sempre? Claro, estaremos sempre por perto, para que você não escape. Mas, vejo que o desejo daquela boa sereia de cabelos escuros, está se realizando. Mesmo te amando, ela é danada!
O rapaz sentiu seu coração doer mais, e quando estava perto de explodir, gritou por socorro. Ouvindo isso, a sereia voltou e disse:
- Desfaço meu desejo. Vá em paz. Volte para casa.
- Irmã! - disse a de cabelos cacheados. - Sua cauda está ferida. Não mais que seu coração. Vai deixar esse humano escapar e voltar para aquela mulher infame que suja nossas areias com seus amantes?
- Irmã... - disse em tom baixo, a sereia ferida. - o erro foi meu. Ele nunca me quis, mas eu insisti. No final, acabei assim.
As sereias olharam para aquela que estava adiante, e com os olhos embotados de dor e vergonha, foram embora.
- Elas se foram. Se foram! - gritou o rapaz, mal acreditando no perigo do qual havia sido liberto. - Obrigado por me ajudar! Suba no barco. Levo-te para passear.
- Não. - respondeu com o rosto duro, a sereia.
- Mas por que?! - bradou o rapaz, sem entender mais o que ela queria.
- Eu lhe dei a oportunidade de conhecer o Oceano ao meu lado, sem tragar-te para o fundo do mar. E como resposta, você me fere.
- Eu estava com medo. - Tentou se justificar, como qualquer homem faria.
- Não, não estava. Você se aproveitou do meu amor e de minha boa vontade, e fez o que quis. Reconstruiu seu bote, e quando ele estava pronto, mandou-me embora com uma martelada. Se seu coração tivesse explodido antes delas virem, eu jamais saberia. Mas, sereias não sabem ser cruéis de forma quieta. Ouvi-as do fundo das águas. E você não sabe o que elas são capazes de fazer.
A sereia virou as costas para o moço; o ego estava ferido.
- Volte para casa, e para sua humana. Talvez agora você entenda a maldade dela. Pois você é tão ou mais cruel que sua bela noiva. - E dizendo isso, partiu.
O jovem voltou para casa, mas ao invés de ver sua noiva, passava horas na areia, esperando a sereia ir até ele, pedir para passear em seu velho barco. Mas a criatura não vinha, nunca. Até que um dia, depois de muitos anos, seu coração inchou e explodiu. Pobre humano! Seus belos olhos azuis não foram o bastante para fazer aquele órgão voltar à sua forma normal. E, pelo o que a Sereia percebeu, o rapaz já estava envenenado há tempos. Mas, ainda assim, ela lamenta, todos os dias, que o rapaz que tanto quis, tenha partido para sempre. E você sabe - sereias são seres incríveis, até mesmo quando a mágoa corrói o peito, a língua e os dedos."