O Ritual
Os sussurros e gemidos que escapavam daqueles lábios rubros e obscenamente belos, rasgavam a noite como adagas afiadas dilacerariam a frágil carne de um corpo. Eles eram como um mantra, um ritual de depravação e decadência que conspurcava o local em que outrora uma alma pura dera seu último e ínfimo suspiro.
Os cabelos dela eram como milhares de grãos de trigo desfiados em longos fios, e a luz do luar que incidia sobre ela tornava-os transcendentais e platinados, e sua pele branca reluzia palidamente conferindo a ela o ar etéreo daqueles que não pertencem a esse mundo.
Com um fraco para a teatralidade, vestia uma roupa digna das noivas de Drácula. Um vestido que se fundia com a noite e revolvia em torno de seus pés com a brisa de outono que bailava em uma sinfonia fúnebre. Diferente de outros tempos, os olhos azuis de Ermina eram opacos e pareciam trazer a tona a morbidez do próprio tártaro purgatorial.
Suas mãos seguravam firmemente um cálice redondo e prateado elevando-o acima de sua pálida tez, como se o reverenciasse enquanto entoava aquele canto maldito e perverso destinado a desafiar leis que humano nenhum deveria desafiar. Mas não havia dúvida no vocabulário de Ermina, a certeza sobre o que desejava era a única coisa certa em sua vida repleta de erros e fracassos. Ela precisava fazer isso, era o melhor que ela poderia fazer, um papel que somente ela, com sua paixão ilimitada, teria coragem de desempenhar.
Com um movimento suave, ela abaixou-se e pegou uma pequena caixinha de sapato, que abriu com cuidado reverencial e de lá tirou o que parecia ser um dedo médio em estado de avançada decomposição. Sorrindo de forma cândida ela levou aos lábios aquela coisa putrefata e beijou, um beijo cuidadoso e gentil - voltado ao mais doce dos amores - e colocou-o cuidadosamente dentro do cálice.
O tom de sua voz descia e subia em uma cadência ritmava que lembrava o som de tambores a vibrar pela noite. Ao mesmo tempo, com um gesto suave e exultante ela pegou de dentro do decote um pequeno frasco transparente, dentro dele um líquido espesso e vermelho e despejou-o no cálice.
Inicialmente, nada mudou e a noite continuou enluarada e tranquila, mas conforme o canto continuava – agora acompanhado de uma dança ritmada e eloqüente – e o ar pareceu parar, era como se o mundo prendesse a respiração enquanto aguardava o que viria a seguir naquele ritual demoníaco. Era como a calmaria que antecede uma tempestade gigantesca e no horizonte, nuvens negras começavam a surgir rapidamente, em pouco tempo a lua desapareceu, e a escuridão tomou conta de tudo. O próprio nada parecia estar personificado naquele bosque, e as luzes dos postes próximos pareciam ter desaparecido. Uma nova dimensão parecia ter-se aberto e engolfado tudo em seu ventre. Era o nada, o fim, o começo.
A voz dela cessou com um longo suspiro exausto e seu corpo em transe balançava como um pêndulo sobre seus pés, sem firmeza alguma, sua energia estava esgotada e com um último esforço, ela abriu os olhos novamente.
Uma única lágrima escapou de seus olhos quando notou o que havia feito. Com um sorriso nos lábios vermelhos, ela estendeu as mãos em direção àquilo que ela mais queria nesse mundo.
No chão uma pequena forma de pouco mais de um metro e meio de comprimento se encontrava enrolada em si mesma, seu corpo contraia-se em pequenos espasmos e baba branca escapava de seus pequenos lábios roxos. Seus olhos negros e nebulosos fixavam-se em Ermina, como se guiados por um fio invisível, sem ao menos piscar. Os cabelos, do mesmo tom dos de Ermina, caiam-lhe na fronte e cobriam-lhe o corte ensangüentado que lhe tirara a vida. Confusa, ela estendeu a mão tentando agarrar a mão que a fada da noite lhe estendia.
- Ermina. - O som de sua voz era seco e rouco, como se a muito não tivesse uso.
- Melina.
As mãos quase se tocavam agora, mas elas pareciam presas ao chão, duas criaturas tão parecidas e ao mesmo tempo tão diferentes.
- Senti tanto a sua falta – começou a mais velha das duas com a voz lastimosa – tanta... Tanta.
- Eu também.
- Nada mais é igual, eu sento sua ausência como se me tivessem tirado uma parte de meu próprio corpo...
- Não devia ter feito o que fez.
- Eu precisava! Eu não podia! Não podia suportar! Era... O fardo era demais para suportar! – seus punhos erguiam-se enquanto ela gesticulava freneticamente e gritava a todo fôlego.
Lágrimas de desespero borravam seu rosto maquiado de preto e tingia sua face do negro da morte.
- A morte não é o fim, Ermina. Você não deveria ter interferido nas leis do universo. Da ultima vez que foi imprudente as conseqüências foram graves...
- Não me importo! Com nada! Eu faria qualquer coisa por você! Destruiria o mundo todo, renegaria a tudo e a todos se pudesse te trazer de volta! Você é minha irmãzinha, não há nada que eu não faria por você, por você tudo é pouco! – gritou ela com a voz embargada pela emoção.
O choro de Ermina cortava a noite silenciosa e parada como o sussurro dos mortos na noite de Samhain. Eram como ruídos impertinentes, uma afronta a ordem cósmica.
- Deveria... Oh Ermina, porque sempre faz isso?
- Não! Não diga isso, não foi minha culpa!
A essa altura Melina se encontrava em pé de frente a Ermina, seu corpo possuía um tom doentio e roxo e seu vestido de cetim branco se encontrava carcomido em muitos pontos deixando a pele em estado de decomposição aparecer.
- Se não se sentisse culpada, não teria feito o que fez. Ermina, isso precisa parar.
- Eu só queria você de volta, porque me trata assim, irmã? Não me ama mais? Seu amor por mim foi-se junto com sua vida?
- Só não queria que tivesse feito o que fez, meu amor por você jamais mudará, por toda a eternidade será forte e belo, como sempre foi. Mas...
- Você jamais poderá me perdoar...
Com um suspiro, Melina abaixou a cabeça e pôs-se a chorar, os soluços que vazavam de sua garganta eram o som mais triste que já se ouviu na face da Terra.
- Pensei que você entenderia... Eu... Eu pensei que você soubesse que eu nunca magoaria você, que tudo o que fiz foi por amor.
- Mas o amor não justifica tudo e por causa do seu amor, minha vida acabou. Deixe-me descansar Ermina, não deveria ter mexido no que desconhece, você pagará por isso, só espero que o preço não seja alto demais.
- Que seja alto! Que seja infinito! Não me importo, quero morrer.
- Não diga isso, você não sabe quão triste é a morte, estar entre os véus insondáveis, isolada da vida terrena... Sozinha... Ah, a escuridão... É desesperadora...
- Queria poder trocar de lugar com você...
- Mas não pode. Não deve. Agora me deixe descansar, eu lhe imploro.
- Tão cedo... Tão jovem... – com um passo curto, ela aproximou-se da irmã e acariciou sua face gélida e fétida – Oh Deusa, por que!?
- Não culpe a Deusa por suas escolhas. Foi nossa vaidade que nos trouxe onde estamos hoje – Melina segurou as mãos da irmã e beijou-as.
- O preço foi alto demais...
- Mortais não devem mexer com os segredos dos deuses, há coisas que devem permanecer ocultas...
Por alguns segundos a noite permaneceu em completo silêncio, como se o próprio tempo tivesse parado e aquele instante fosse durar para sempre. Mas o pio de uma coruja soou ao longe e uma brisa fria carregada de neblina começou a invadir o bosque escuro em que somente duas figuras eram visíveis.
- Melina, não vá! Oh não, não me deixe novamente, não posso suportar! Oh Deusa, leve-me...
- Ermina... für immer... Lembre-se disso.
- Não!
E com um leve farfalhar Melina desapareceu no ar. No mesmo momento, a lua incidiu novamente sobre o local onde as duas irmãs tiveram seu adeus definitivo, mas não havia mais nada lá, somente um cordão com duas rosas enlaçadas.
***