A BABEL DA TORRE

Com as bênçãos de Deus, Noé e seus descendentes ocuparam toda a região que fora encharcada pelo longo período de chuvas. Contam-se dezenas de gerações que, após o dilúvio, espalharam-se por toda a região: da Assíria a Nínive, desde Gaza, às margens do Mediterrâneo, até Sodoma e Gomorra.

Ora, em toda a terra habitada pelos descendentes do construtor da arca, havia, no princípio, apenas uma língua e todos se entendiam perfeitamente. Séculos de convivência pacífica entre as diversas tribos e nações não impediram que costumes, hábitos e a linguagem tomassem rumos diferentes. As tribos cresceram e prosperaram, o comércio entre elas se tornou intenso pelo escambo de mercadorias diversas. Cidades surgiram, com as bases de uma vida comunitária intensa. Forças armadas foram organizadas, as quais logo se transformaram em poderosos exércitos.

Uma das tribos da nação de Deda, no extremo Oriente das terras habitadas pelos descendentes de Noé, emigrou rumo ao Ocidente. Liderada por Ninrode, a tribo que realizou o primeiro grande êxodo da história bíblica era uma multidão de mais de duas mil famílias. Calcula-se que camelos, carneiros e outros animais somavam mais de cinco mil. À sua passagem, uma nuvem de pó se elevava e criava nuvens fantásticas no céu.

Ninrode, o chefe da marcha, era um exímio caçador e líder nato, conhecido e estimado por todos. Organizador competente, separou seus liderados em diversos grupos de duzentas famílias, cada qual com seu chefe e seus encarregados da segurança. Partindo do Oriente, a grande coluna caminhou por semanas e semanas, até chegar a uma imensa planície já conhecida de alguns por Terra de Sinear.

Estendendo-se a perder de vista, a Terra de Sinear era em tudo semelhante ao mitológico Éden, cuja história era passada oralmente através das gerações, desde tempos imemoriais. Mais algumas semanas de caminhada e eis as grandes caravanas no centro dessa terra, que pareceu boa a Ninrode e seus principais ajudantes. Ordenou, pois, uma parada de todos os grupos e convocou os líderes para uma reunião.

— Esta terra me parece fértil e apropriada para estabelecermos nossas famílias. Que vocês acham? — Procurando um consenso, Ninrode avaliava a capacidade dos chefes, seus liderados.

— Temos de explorá-la mais. O que vimos é apenas uma faixa ao longo de nosso caminho. Não existe sequer uma elevação, um monte, do qual poderíamos divisar toda a região. — O comentário de Zerminã era justo e foi aceito por todos.

— Vamos acampar e mandar caçadores e os nossos melhores homens em todas as direções. Quero que tragam todas as informações sobre a terra, os rios, as matas, os locais apropriados para agricultura, e qualquer notícia a respeito da existência de outros habitantes. Enfim, tudo o que for de utilidade para nosso estabelecimento. — Tais foram as ordens de Ninrode.

A fim de melhor orientar os homens que iriam explorar as terras, Ninrode ordenou a construção de um monte artificial. Cada tribo contribuiu com operários que, usando de processos rudimentares de transporte e construção, ergueram um rústico amontoado de terra. À medida que o morro aumentava em altura e adquiria a forma de uma pirâmide, um caminho ao redor da construção permitia a subida e descida dos trabalhadores. Quando a elevação estava com trinta côvados de altura (o que correspondia a quatro homens, em pé, um sobre os ombros do outro), a obra foi dada como terminada.

— Do topo deste zigurate pode-se ver bem longe. Dá pra perceber os sinais de fumaça convencionados e vigiar toda a região contra possíveis ataques de inimigos. — Nimrode declarou, satisfeito, instalando-se num banco rude no cimo da construção. Visto de baixo, era como um rei no seu trono imponente. Todas as manhãs e todas as tardes, ele subia até o topo da elevação, sentava-se no banco e examinava o horizonte. Sua figura, iluminada pelos raios do sol nascente ou poente, tornava-se dourada e impressionava a multidão, embaixo.

— Vejam, nosso rei vigia por nós. Demos graças por sua existência. Hosana a Ninrode!

Comentavam e agitavam-se alguns das tribos. O que era a princípio admiração e respeito, transformou-se rapidamente em veneração e, em seguida, adoração. Ninrode agora substituía Deus nas mentes e nos corações de muitos habitantes dos acampamentos.

Ninrode ficou sabendo desse movimento e, no intuito de acabar com a idolatria, chamou o rústico monte artificial de Balilu, que significa “Portão de Deus”. O que resultou justamente no contrário de sua vontade. Com o nome de Deus acrescentado à rústica pirâmide, mais e mais adeptos de Ninrode-Rei-e-Deus foram aparecendo. O culto de adoração — reunião dos adeptos no sopé do zigurate de manhã e ao entardecer, para cantarem loas ao Rei-Deus — cresceu em adeptos e em importância.

Chegaram os exploradores, de volta de suas incursões para oeste, norte e sul. Trouxeram notícias de terras férteis, bosques e matas abundantes de caça e árvores de boa madeira, rios mansos e plenos de peixes. Não havia indícios, até onde os exploradores chegaram, de outros habitantes. A região era virgem e aparentemente jamais tinha sido habitada.

O sagaz organizador Nimrode determinou a distribuição dos cinco grupos de famílias.

— Arfarã irá para o Norte. Héberje habitará as terras do Oeste. Abimael vai morar, com as duzentas famílias que lidera, nas terras do Sul. Assur ocupará as terras do Leste. E Jobabe fica aqui, na região central. Neste local construiremos uma grande cidade que será o centro de nossos estabelecimentos.

As colunas se dispersaram por toda a região. Uma se estabeleceu às margens de um grande rio, a leste de Balilu. Arfarã e seus liderados foram para uma região que chamaram de Siriam, ao norte. Para o sul foi Abimael, que colonizou uma região batizada de Sinaiel. Hérberge dirigiu-se para oeste, até encontrar um rio e um grande lago de água salobra. Ali pararam e iniciaram a colonização.

Balilu, o Portão de Deus, ficou sendo o local de referência para todas as tribos, por onde convergiam os viajantes e comerciantes. As tribos prosperaram e foram erigindo novas vilas que se espalharam por toda a região. Balilu cresceu em tamanho e importância, muito mais do que as outras vilas, e logo era uma cidade. Nas imediações, foram encontrados metais e principalmente, ouro. Ninrode tornou-se governador da cidade e, consolidando sua influência, administrava os interesses de todas as vilas construídas pelo seu povo.

A guarda pessoal de Nimrode, que o acompanhava nas suas visitas às vilas e às pequenas urbes, tornou-se núcleo do exército de Balilu. As vilas e cidadelas contribuíam com os homens para o exército de Ninrode. Na convocação de homens para a formação do exército, já se notavam pequenas alterações no linguajar dos elementos das diferentes regiões, principalmente entre os mais jovens. Balilu começou a ser chamada também de Bilbel (que significava também “confusão”) ou de Babel, por soldados e comandantes oriundos das cidades mais distantes. .

O zigurate, construído para servir de posto de observação, tornou-se local de práticas religiosas. No seu topo foi acrescentada uma pequena construção que protegia Nenrode nas ocasiões em que lá subia, agora para recolher-se e meditar. Essa contrução foi logo identificada como um templo pelos fanáticos adoradores do Rei-Deus Nimrode.

Ninrode avançava em idade, em sabedoria e poder. Seus exércitos, municiados pelo ouro que saía de suas minas, foi usado para diversas campanhas de conquistas e para submeter outras cidades além de seu território. Aos oitenta anos, ainda exibia uma juba negra, força inigualável entre os mais fortes homens sob seu comando.Planejou e consumou novas conquistas, sempre ampliando seu poder e influência. De suas campanhas militares chegavam cada vez mais riquezas em ouro, jóias, escravos e belas mulheres, incorporados ao seu tesouro e às suas posses.

Ora, acontecia que o zigurate lhe parecia agora de modestas proporções. Um sonho passou a ser costumeiro em suas noites inquietas: a construção de um enorme zigurate, dez, cem vezes maior do que a primitiva pirâmide. Seria tão alta que ultrapassaria as nuvens, atingiria o céu. E no topo dessa construção, o seu palácio seria erigido e de lá divisaria todo o mundo. Teria, assim, a visão mais ampla e abrangente de todo o seu império.

Reuniu os chefes de todas as cidade e vilas de seu império e comunicou-lhes seu desejo.

— Vou construir o mais lindo edifício que se possa imaginar. Será tão lindo que terá jardins elevados. Fontes e cascatas descerão das alturas e será tão alto que ultrapassará as nuvens.

— Majestade, este empreendimento exigirá muito material e mão-de-obra, de que não dispomos em nossa cidade. — A observação judiciosa de Jobabe, elevado à condição de ministro e conselheiro particular de Ninrode, foi sobrepujada pelas ordens objetivas do rei.

— Mande construir cerâmicas e olarias, que farão tijolos, muitos tijolos, para a elevação da torre. Abra poços onde encontrará betume para unir os tijolos. Reúna a maior quantidade de escravos, que passarão a trabalhar no local da construção. Contrate artesãos, artífices, onde eles estiverem. No meu império e fora dele. Traga trabalhadores de todas as regiões, cada qual, dentro de sua especialidade, ajudando na construção.

— Será um empreendimento vultuoso, Majestade. Mesmo com trabalho escravo, exigirá muito ouro.

— Coloco todo o meu tesouro na consecução deste projeto.

Diante de tal determinação, não restou ao ministro senão tomar todas as providências necessárias para iniciar o projeto e alimentar a fantasia do seu amado rei. A escolha do terreno foi feita pelo próprio Nenrode.

— Vamos erigir a Torre às margens do grande rio que passa a leste de Balilu. Um porto facilitará a chegada dos operários e do material.

Nenrode queria, ele próprio, determinar todas as fases da construção. Mesmo nos assuntos dos quais pouco entendia, a última palavra era sua. A própria escolha do local foi objeto de ponderações por parte dos construtores.

— Majestade, os encarregados da construção da fundação da Torre encontraram um terreno mole, frouxo. Acham que o terreno não suportará a gigantesca estrutura.

— Que façam as escavações mais profundas. Escavem até encontrarem terreno firme.

Enquanto profundos fossos eram escavados, a fim de chegar a terreno apropriado para os alicerces, centenas de olarias começaram a funcionar. Por orientação de Nenrode, o processo de fabricação de tijolos passou por notável melhoria: pela primeira vez na história, os tijolos passaram a ser queimados em fornos, o que lhes conferia extraordinária dureza, assemelhando-se a pedras, e com a vantagem de serem todos de formato uniforme. Ao mesmo tempo, trapiches foram construídos ao longo da margem do rio e uma frota de navios foi alocada exclusivamente para transporte de material — tijolos, betume e madeira — e dos trabalhadores.

Uma multidão de mais de cinco mil homens foi arregimentada para dar início aos trabalhos. Escravos foram requisitados de todas as cidades do império de Nenrode e traficados de outras regiões que estavam sob seu domínio. Trabalhadores especializados, como pedreiros, carpinteiros e capatazes das muitas turmas foram ajustados, mediante remuneração, onde quer que se encontrassem.

Além do esforço concentrado na área da construção, exigiu-se de todo o império maior produção de alimentos, a fim de abastecer os armazéns do rei e manter em boa forma todos os trabalhadores. As províncias foram obrigadas a aumentar seus tributos, quer sob a forma de ouro e materiais, quer sob a forma de fornecimento de mão-de-obra, escrava ou livre. De todas as regiões conhecidas vieram magotes de trabalhadores, que tinham de ser alojados preferencialmente nas imediações da Torre. A cidade de Balilu cresceu de maneira espetacular. Não havia mais limites entre as construções da própria cidade e as dos alojamentos dos trabalhadores.

Cada grupo estrangeiro procurou se estabelecer em local próprio e não havia mistura entre os diferentes grupos, além da convivência obrigatória durante o trabalho. Residiam em bairros separados, mantendo suas festas, tradições, e linguagem. E à medida que a Torre ia se elevando, apontando para o céu, aumentava a quantidade desses artesãos estrangeiros na grande cidade. Em conseqüência da necessidade de se entenderem, um grande número de palavras passou a ser compreendido por todos os trabalhadores, dando a impressão, por vezes, de que falavam uma só língua. O próprio nome da Torre adquiriu uma denominação comum, quando passou a ser chamada por todos de Torre de Babel. Contudo, ao mesmo tempo em que as poucas palavras e expressões no canteiro de obras se tornavam universais, persistia nos bairros o uso dos idiomas próprios de cada nacionalidade.

Alguns anos foram consumidos na construção das fundações e dos primeiros níveis da Torre de Babel. As previsões veladas de Jobabe, com relação aos recursos que seriam drenados de todo o império para a construção da Torre, tornaram-se reais por volta do décimo ano de atividades. Das regiões dominadas por Nenrode vinham sinais de descontentamento. Não suportavam mais tantos encargos, sob a forma de tributos, de alocação obrigatória de mão-de-obra ou de fornecimentos de escravos. Os comandantes das guarnições militares mantidas nas regiões sob domínio de Nenrode davam notícias cada vez mais constantes das dificuldades em arrecadar os impostos.

Uma dificuldade adicional surgiu no local de construção: os trabalhadores e escravos passaram a recusar o uso do pequeno vocabulário comum que haviam desenvolvido. A noção de nacionalidade tornou-se forte e até os escravos de diferentes origens e etnias se rebelaram, através deste artifício que causava confusão e atraso no ritmo da construção.

— Majestade, há uma forte onda de desentendimento entre os trabalhadores, escravos e nossos capatazes. Eles não se entendem mais. Cada grupo só aceita ordens e instruções na sua própria língua.

— Procure treinar os capatazes para usar os idiomas dos trabalhadores.

Nenrode determinou, assim, a criação de um grupo de instrutores que deveria ensinar todos os idiomas aos capatazes e mestres-de-obras. O que se revelou, ao cabo de pouco tempo, inútil. Os capatazes e mestres-de-obras, competentes em seus afazeres, não tinham tempo nem disposição de aprender as outras línguas. E tantas eram as línguas faladas, que não havia professores para cada uma delas.

Aconteceu, pois, que estando a Torre no seu trigésimo quinto pavimento, a uma altura de cem côvados, os acontecimentos se precipitaram.

— Estamos com dificuldades na Torre, Majestade. Ela está se inclinando e corre o risco de tombar sobre o rio.

— Convoquem os especialistas. Mandem vir engenheiros de onde quer que seja. A construção tem de continuar!

Nenrode já atingira a idade centenária. Sua lucidez, entretanto, era intercalada com momentos de evidente dubiedade, devido à sua obsessão pela Torre que deveria chegar aos céus. A obra, que ele pretendia fosse a consagração de seu império, poderia, a qualquer momento, constituir-se no maior fracasso e fiasco de sua administração. Em virtude da complexidade da construção que seria, com seus jardins suspensos, a maravilha do mundo, os problemas se multiplicavam. As ordens emanadas do palácio imperial demoravam a ser cumpridas e nem sempre chegavam a ser efetivadas. A confusão das línguas aumentava sempre e os grupos étnicos agora se encontravam em franco antagonismo. Muitas brigas aconteciam nos bairros, entre populações de origens diversas e até mesmo no recinto da Torre. Escravos se rebelavam e nem sempre eram punidos à risca.

O tesouro do rei chegou ao fundo. Novos aumentos de tributos às nações vassalas foram insuficientes, mesmo porque a recusa em pagar novos impostos era generalizada e os comandantes não exerciam o poder com mão-de-ferro, como era de se esperar. A corrupção passou a ser prática vigente, sob a forma de uma vida fácil, com sedutoras mulheres amolecendo o espírito e a força de vontade dos militares nas províncias.

Com a falta de pagamento, os operários livres se rebelaram. Os escravos, devido à fome e aos maus tratos tornaram-se indolentes e o rendimento no trabalho caiu pela metade. Os mestres-de-obras e capatazes, também sem remuneração em dia, abandonaram o trabalho e voltaram às suas cidades. Ao redor da Torre de Babel permaneceram, pois, os estrangeiros e os escravos. Os primeiros, impedidos de retornarem às pátrias de origem, provocavam confusões e entravam em choques com freqüência cada vez maior. Os escravos, agora sem capatazes para forçá-los ao trabalho, vagavam pelos bairros dos estrangeiros e pela própria cidade de Babel, ou Balilu, nome quase que já em desuso.

Uma confusão sem precedentes tomou conta da capital do império de Nenrod. Ao rei, cada vez mais obcecado pela idéia da Torre Das Nuvens, eram sonegadas as informações da calamidade que se abatia sobre a sua cidade. Ocorreu-lhe, pois, uma idéia desastrosa.

—Vou morar na Torre. Assim, poderei eu mesmo administrar a sua construção.

—Majestade, a Torre não tem condições de ser habitada. — Jobabe explicava, paciente, ao rei, cuja lucidez já não era predominante em seu espírito.

Nenrod não deu atenção às palavras de seu ministro. Mandou que o pavimento superior da Torre de Babel fosse preparado para recebê-lo e à sua família. Com os últimos trabalhadores e os recursos finais de seu tesouro, vários aposentos foram preparados para a morada do rei e a família. Como a inclinação da Torre não fora corrigida, o andar todo era desnivelado. O desnível persistiu nos aposentos reais.

A mudança do rei para o topo da Torre inacabada foi cercada de pompa. Enquanto a realeza subia os milhares de degraus, uma turba se ajuntava ao redor da Torre. Homens, mulheres, crianças, todos os que estiveram empenhados até pouco tempo na realização do sonho e da fantasia de Nenrod, se reuniram para apreciar a subida. Havia um misto de admiração e de ódio no ar. Os trabalhadores livres, os escravos, os capatazes, os mestres-de-obras estavam ali reunidos para presenciar aquele ato de vaidade, de teimosia e de demência do Rei: a ocupação da Torre de Babel.

Embora o desentendimento e a incompreensão entre os diversos gentios tivessem atingido níveis insuperáveis, todos agora mantinham um forte sentimento em comum, com relação ao Rei e sua corte: um ódio profundo, que não podia ser manifestado senão em palavras de maldição, que se transformaram em um clamor profundo, em apupos e vaias e num crescente movimento rítmico de bater os pés nos chãos. Milhares e milhares de pés batendo em uníssono, uma dança rústica, a maneira usada por muitos povos para manifestar desaprovação.

Ou porque a torre tivesse sido construída em terreno movediço; ou porque a sua construção tivesse sido sistematicamente sabotada pelos trabalhadores estrangeiros e pelos escravos; ou porque estivesse destinada ao fracasso, desde a sua concepção, devido à pretensão de chegar ao céu, ninguém poderá jamais explicar o que sucedeu.

Enquanto a corte real subia, passo a passo, pelas escadas externas da Torre de Babel, o povo rugia em baixo. E batia com os pés. O som cadenciado elevava-se cada vez mais, um tam-tam que foi subindo, atingindo alturas imensuráveis e oitavas sonoras não perceptíveis aos ouvidos humanos, mas de efeitos jamais sonhados pelos protagonistas de tão marcante evento. A força destruidora da cadência maldita encontrou ressonância nas paredes, colunas, entrou pelos corredores e atingiu o ápice da estrutura. Fez-se sentir por um aumento notável na inclinação da Torre na direção do rio. A imensa estrutura se inclinava cada vez mais e mais enquanto a procissão real subia pela escadaria interminável. Será que não notaram, do alto da Torre, que ela estava se inclinando perigosamente?

De repente, enquanto a inclinação atingia um ângulo insustentável, o barulho dos pés se acelerando, próximo a um paroxismo telúrico, toda a estrutura desaba. As águas do rio se abrem para receber os milhares de tijolos, as pranchas de madeira, o material da construção da imensa Torre de Babel. O povo, atônito, foge em todas as direções. Uma poeira se eleva dos escombros, logo espalhada por forte vendaval.

Passada a rajada de vendo, no solo só restam poucas marcas da Torre. O rei e seus acólitos são esmagados no desabamento e engolidos pelas águas do rio.

O registro de tão portentoso acontecimento ficou na memória de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, participaram da construção e da destruição da Torre de Babel. Apenas na memória. Foi passada através dos séculos e nos chega hoje como uma lenda de poder, glória, orgulho e desafio às forças do Universo.

Antonio Roque Gobbo

Belo Horizonte 6 de julho de 2001.

CONTO # 101 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 29/03/2014
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