O GÊNIO DA LÂMPADA

Onze horas da manhã de um tranqüilo dia da eternidade. O Escritório Cósmico de Artes e Ofícios está vazio, o expediente de pouco serviço e o pacato burocrata carimba com vagar os últimos papéis despachados pelo Chefe. Tem pouco trabalho o organizado Charid Bon-Aarki Vista, nomeado pelo Chefe em função da eficiência no serviço.

O serviço tá diminuindo muito. Se continuar assim, essa repartição em breve será fechada. E eu fico sem meu emprego. — Pensa Bon-Aarki — Ninguém está a fim de registrar aqui suas queixas, todo mundo está na Internet, o Bill Gates é o deus desse pessoal maluco lá embaixo.

O ECAOs existe para garantir a qualquer cidadão e a todas as entidades o direito ao nome, registro de profissão, de habilidades, invenções, etc. Isto, em caráter universal, cósmico, de forma a garantir uma marca per ominia secula seculorum.

Muita gente admira-se do descuido de Santos Dumont, um brasileiro que inventou o avião e não patenteou seu invento. Mas ele está arquivado no ECAOs, eis porque nenhum americano conseguiu registrar a patente para os irmãos Wrigth. É para isso que existe o ECAOs.

Charid está profundamente imerso em seus pensamentos, preparando-se para a oração do meio-dia. Como bom muçulmano, deve se orientar em direção à cidade de Meca, postar-se de joelhos e fazer sua oração. Mesmo estando numa região muito distante do Planeta Terra, deve manter-se fiel aos ritos de sua crença.

É interrompido pela entrada repentina do Gênio da Lâmpada. Sua figura imponente, aumentada ainda mais pelo alto turbante vermelho que usa desde sempre, assusta Charid.

— Então, o CAOs é aqui?

— ECAOs, por favor. O nome é Escritório Cósmico de Artes e Ofícios. Sim, é aqui o ECAOs.

— Deixa de me embromar, já tou cheio de enrolações. Vim aqui para fazer um pedido.

— Um requerimento, quer dizer?

— Pedido, requerimento, qualquer coisa. Assino qualquer papel pra mudar de profissão.

— Quer mudar de profissão?

— É, quero sim. Já estou de saco cheio de ser o Mágico da Lâmpada.

— Bem, não é fácil conseguir uma tal mudança. O senhor sabe, já tem muito tempo de serviço nessa atividade, o pessoal já está acostumado.

— Faço qualquer coisa pra deixar de ser o Mágico da Lâmpada.

— Bem, primeiro, tem que preencher este formulário. Nome, idade, estado civil, nacionalidade. Coisas assim.

— Ta bom, me dá o formulário.

— Depois, tem o requerimento. Este é fácil, já vem impresso, é só preencher as linhas em branco.

— Me dá esse também.

— Depois, tem a sua justificativa. Pode ser por escrito ou em entrevista com o Chefe.

— Falo com o Chefe.

Pega os papéis, que vai preenchendo ali mesmo, em cima do balcão, sob as vistas do atento Charid. Faz tudo rapidamente, com decisão. Está muito ansioso para ser liberado do encargo de Gênio da Lâmpada.

Devolve a papelada ao funcionário. Este confere todos os itens. O Gênio é bom em formulários, pensa Charid. Também, com milhares de anos como Gênio, tem de ser bom em tudo — ou quase tudo.

— Ta legal, tudo dentro dos conformes. — Carimba os papéis com diversos carimbos, apõe sua rubrica em cada folha. — Tudo bem, volte amanhã para a entrevista. Às duas da tarde.

No dia seguinte, quando O Gênio chega ao ECAOs, o tempo não está tão bom: trovões e relâmpagos anunciam uma tempestade. Exatamente às 14 horas, Charid convida o gênio para entrar no escritório do Chefe.

O Gênio da Lâmpada entra e se surpreende. O Chefe é um monge budista, cabeça raspada, vestes espalhafatosamente alaranjadas, e o indefectível sorriso untuoso nos lábios.

— Vejo que Gênio da Lâmpada quer mudar de ramo. Por que deseja mudar, após tantos anos de bons serviços?

Sem ser convidado, o Gênio assenta-se no chão, ficando tete-a-tete com o gordo monge.

— Cansei de ser o Gênio da Lâmpada. Ou melhor, cansei de bancar o palhaço. Nos últimos tempos, só tenho caído em mãos de idiotas, gente que não dá valor aos próprios pedidos.

— Explique-se melhor, sr. Gênio.

O Gênio se acomoda melhor e relata.

OS DESEJOS DE UM FANHOSO

“Estava a Lâmpada Mágica em um navio que naufragou nas costas do Brasil. Um país de idiotas, se quer saber. A Lâmpada (e eu dentro dela) ficou sob as areias da praia algum tempo, após o que foi achada por um camarada fanhoso. Estava muito triste quando lhe apareci, pois esfregara com vigor a lâmpada, na ânsia de verificar se era mesmo de ouro.

Falei-lhe dos três pedidos e ele me contou sua história.

— Fui soldado na ...erra, uma bala estorou meus ...ulhões, não sou mais homem. — E desanda a chorar.

— Faça seus pedidos. Três desejos.

— Por ...avor, me dê um ...into novo.

Imediatamente dei-lhe um lindo cinto, muito bonito, de couro, branco, com fivela dourada. Quando lhe entreguei o cinto, o camarada ficou mais triste, chorou mais alto. Chorando e fanhoso, fez seu segundo pedido.

— Quero um ...ênis novo.

Dei-lhe um par de tênis, novinhos em folha, de marca famosa. Aí sim, que o fanhoso ficou triste, e chorava mais e mais. Com muito custo, fez seu terceiro pedido.

— Ai, ...elo amor de Deus, me dê um ...aralho novo!

Logo fiz aparecer não um, mas dois baralhos completos, plastificados, num estojo próprio para viagem. O homem se desesperou, mas, tendo cumprido minha missão, entrei na lâmpada e fiquei esperando o próximo felizardo”.

OS DESEJOS DE UM MINEIRINHO

“Aconteceu que a lâmpada (e eu dentro dela) foi jogada de novo na praia. Foi encontrada por um matuto de interior, um mineiro que tropeçou na lâmpada.

— Ai, ai, ai. — Saiu pulando num pé só, o dedão machucado. Ao ver o brilho dourado, voltou e apanhou a lâmpada. Esfregou e apareci. Falei ao capiau a respeito dos três desejos a serem satisfeitos.

— Posso pedir qualquer coisa?

— Claro! Jóias, dinheiro, carro. Pense grande, peça tudo o que desejar.

O matuto ficou pensando por uns minutos.

— Óia, o sinhor sabe, eu sou mineiro lá do sur de Minas, tou aqui no Rio de Janeiro já faz mais de 10 anos, nunca que voltei na minha terra. Tou cuma saudade danada da fazendinha onde morava, do queijinho fresco que minha mãe fazia. Ai, que vontade de ter aqui na minha mão um queijo fresquinho.

No ato coloquei na sua mão um queijo fresco, tal qual ele estava querendo. O matuto sacou de um pequeno canivete, desses usados pra picar fumo e fazer cigarro de palha, e sentado ali mesmo na areia da praia, começou a comer o seu queijo. Quando terminou, falei-lhe do segundo pedido.

— Nossa Virge, cumo tava bom o queijinho. Tou querendo outro.

Vi logo que o paspalho não sabia o que tava deixando de ganhar. Mas o pedido estava feito, só tive que providenciar outro queijo, que imediatamente apareceu nas mãos do caipira. Da mesma forma que devorou o primeiro, manducou o segundo queijo. Eu ali, esperando. Acabada a comilança, falei do terceiro pedido.

— Uai, tem mais? Puxa vida, que coisa boa. Bem... — Coça a cabeça, olha para um lado, para o outro, desconfiado. — Baõ, intão quero agora uma muié. Uma loira bem boazuda, dessas que aparece na televisão. Peituda e de bumbum arrebitado.

Sem mais aquela, fiz aparecer a loira dos sonhos do mineirinho, o qual, sem pestanejar, foi agarrando a loira, nos primeiros amassos. Fiquei intrigado com a seqüência dos pedidos do caipau, daí perguntei-lhe porque havia pedido dois queijos e a loira.

— Óia, seu gênio, negócio seguinte: eu tava mesmo era cum vontade de pedir outro queijo, mas fiquei cum vergonha. “

OS DESEJOS DOS TRÊS NÁUFRAGOS

“Novamente a lâmpada (e eu dentro dela) estava num barco que naufragou. Desta vez foi no meio do oceano, num lugar ermo pra burro. Só três passageiros conseguiram se salvar, nadando até uma ilha muito pequena. A Lâmpada também boiou até a praia da ilhota, mas ali permaneceu por muito tempo. Os náufragos tiveram que sobreviver comendo coco e bebendo água de coco, era só o que havia na ilha. Eram um americano, um francês e um português. Sofreram juntos, tornaram-se muito amigos e tinham até construído uma pequena cabana, onde moravam. Um dia, o francês encontra a lâmpada.

— Mais, oui, c´est la lampe merveilleuse!

Aflito, esfregou a lâmpada e apareci. Como eram três pobres desgraçados, propus satisfazer um desejo de cada náufrago. O francês, que estava super-excitado, foi o primeiro.

— Ah, Mon Dieu! Quero voltar parra Paris, ver de novo Les Follies Bergères, Le Moulin Rouge. Ah! Paris, Paris !

Nem bem terminou de falar a última palavra, e já estava na Cidade Luz, bem debaixo da Torre Eiffell. Seguiu-se o americano, que, lacônico, pediu:

— Well, querro ir imediatamente parra New York.

Não teve tempo nem de piscar, e já estava na Broadway. Assustado com a eficiência de meu serviço.

Finalmente, o português manifestou seu desejo.

— Raios! Que decisão difícil. Olha, sinhor gênio, a gente vivia tão bem juntos, aqui na ilha, que não vou acostumaire com a ausência dos amigos, não sinhoire. Quero que os traga de volta para a ilha”.

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O Monge. Que ouvia atentamente as histórias do gênio decepcionado, disse:

— É, de fato, a Lâmpada só tem sido encontrada por pessoas idiotas.

Então, como Chefe da ECAOS, decidiu:

O seu pedido vai ser aceito. Entretanto, não pode se aposentar, o senhor é um personagem folclórico, é indestrutível.

— Aceito qualquer serviço, trabalho, tudo, menos continuar sendo o Gênio.

Folheando um livro grosso, mais parecido com uma lista telefônica de cidade grande, o Chefe abre numa folha qualquer.

— Vejamos. Temos aqui uma vaga de Inspirador de Contador de Histórias. Serve?

— Ótimo! Aceito!

É por isso que estou aqui.

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As palavras e frases em cor verde, acima, foram introduzidos para a publicação no Fanzine Milistórias # 5.

Final acrescentado para a edição # 5 do MILISTÓRIAS FANZINE: (Substituindo a frase final “è por isso que estou aqui” pelo parágrafo abaixo.

De Volta à Terra, o Gênio começou a inspirar os escritores para que criassem os melhores contos e histórias pelos tempos afora. Entretanto, chegou um tempo, lá pelo final do século XX (numeração de anos adotada por uma grande parte da humanidde) que os escritores se recusaram a receber a inspiração do Gênio.

As histórias e contos foram ficando banais ou incompreensíveis. A idiotice tinha atingido também os escritores. Repetia-se o fato: o Gênio a serviço da mediocridade.

Desgostoso com essa situação, o Gênio resolveu, ele mesmo, a escrever histórias, contos e causo.

E foi assim, num passe de mágica do Gênio, que apareceram as MILISTÓRIAS.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 16 de fevereiro de 2001

Conto # 73 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/03/2014
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